Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Sugestão de leitura (Page 2 of 3)

O manual dos inquisidores, de António Lobo Antunes.

Gosto de escrever pela manhã. Mas terminei de ler O manual dos inquisidores agora e já é noite. As impressões estão fortes na cabeça, talvez não deva perder a oportunidade, mesmo que saia mal pensado e apressado.

Há dois anos,  mais ou menos, o Miguel me dizia da leitura do Lobo Antunes que era difícil. Eu enchia a paciência dele a perguntar de autores portugueses, que exceto por Eça e Saramago pouca coisa tinha lido. Com a paciência de quem gosta do assunto, Miguel falava de um e outro. Do Lobo Antunes lembro-me da advertência.

Tanto que ficou muito para depois o Lobo Antunes, para agora. O homem facilita a percepção de que ele seja meio louco, diz que escreve talvez para remediar-se. Que escrever e ser psiquiatra são coisas próximas. E fica a parecer real, porque muito psiquiatra é médico para tratar de si mesmo. Mas, deixo isso para lá.

Não andei em busca de críticas e resenhas do livro, apenas li aquelas bobagens que vêm nas orelhas e nas contra-capas. Sempre são bobagens, é impressionante. O lugar-comum é decadência, embora ninguém saiba o que é isso. Querem significar com isso tempo, história?

Devem querer dizer história, porque é a coisa mais difícil de perceber que existe e, por isso mesmo, a que é chamada por mais nomes diferentes é multi significantes. As personagens envelhecem e ficam decrépitas, é isso, acho, que leva o comentador a falar em decadência. Ora, decadência sempre há, não pode ser o elemento distintivo de alguma coisa.

O bom autor Lobo Antunes fala de história, é claro. Muito mais que de histórias particulares das personagens, mas da história de um período: o salazarismo do meio para o final. A história apreendida nas suas expressões em cada camada social, porque o quadro completa-se com as realidades múltiplas.

O formato do livro é quase destituído de surpresas, exceto para quem entenda linearidade como evolução cronológica ritmada. A linearidade narrativa do livro está na integração evidente das idas e vindas do tempo contado ao depois. Os episódios são perfeitamente necessários, uns aos outros.

Os relatos e comentários, partes que sempre se sucedem, são mudanças de ponto de vista, como fotografias de uma coisa tiradas a partir de locais diferentes e dão idéia de profundidade, porque assim pode-se relacionar as percepções diferentes de um episódio. É algo diferente de versões, devo apontar, são visões distintas de um mesmo processo.

Um processo que evidencia algo terrível e tão terrível que muitos ignorarão, porque somos treinados desde cedo para não ver esse ponto essencial. Nos processos históricos e mesmo naqueles que têm grandes mudanças políticas e rompimentos, há um grupo que nunca perde.

Há um grupo que sofre, aqui e acolá uns problemas, mas sempre arruma-se, pemanece quase que acima da história. Por isso mesmo, é superficial falar em decadência ou, talvez, fale-se em decadência muito superficialmente. Ela acontece para os grupos movidos e para os indivíduos particularmente, mas não para um grupo. No livro, isso é claríssimo e, de tão terrível, ocupa somente uma porção inicial dele.

Por outro lado, a grande personagem do livro fez-me lembrar outro livro, por conta de uma associação bastante livre, que não é propriamente literária. Falo do Médico e o Monstro, de Stevenson, que geralmente é visto como algo meio extraordinário no sentido de ficcional, ou de algum terror.

O livrinho de Stevenson é das mais profundas análises da alma humana que se fizeram. Eles convivem em todos, o médico e o monstro, é questão de despertá-los. E convivem até pacificamente, é questão do médico perceber o monstro ou de não o perceber em absoluto. Se eles entendem-se razoavelmente, superficialmente, aí é que a convivência é conflituosa.

O Ministro do livro, o Ministro de Salazar que vai de poderoso a velho de sanatório, não percebe o monstro absolutamente. Até ao final ele não se vê além de como sempre se viu, então ele conta o que torturou por mandar, o que matou por mandar matar, o que comprou de gente por comprar e simplesmente conta.

Ele é a figura vulgaríssima de pessoa com apetites e meios para satisfazê-los, com apetites e sem meios para satisfazê-los;,mas sempre com apetites. O que muda são as disponibilidades dos meios o que equivale a dizer tempo. Ele é só ele, não tem propriamente pensamentos, mas recordações e apetites. Não tem crítica, mas imagens que se referem a ele e só a ele.

Um morto ou vários mortos, um morto na frente dele morto por ordem dele é um elemento de recordação que faz sentido na lembrança de toda sua vida, que é muito bem alinhavada na narrativa, a despeito das idas e vindas cronológicas e do texto sem vírgulas. Uma vida extremamente coerente, diga-se, quase uma vida de coerência da razão de Estado.

E as outras personagens, subsidiárias, evidentemente, são a mesma coisa. Claro que são coisas socialmente diferentes, mas fica evidente que feitas da mesma matéria. Elas são as suas posições sociais, enfim, são móveis de pouca ou nenhuma liberdade. O livro, e aqui devo dizer, é terrível para quem acredita em liberdade.

A única liberdade que há é de lembrar-se e de querer, de ter apetites. De tê-los e satisfazê-los, de tê-los e não os satisfazer, de continuar a tê-los e não os poder mais satisfazer, pouco importa. O que houve, todos os fragmentos, foram somente partes de uma trajetória, não implicam qualquer coisa que não se refira a si mesmo.

Várias personagens ligadas, como é de um romance ou novela, com vidas ligadas, deixam claro que as ligações são muito menos que cada um. Que cada um percebe o mundo em si e vai até ao final assim.

 

A manhã passada com Mário de Sá Carneiro.

Acordo cedo, às vezes muito cedo. Agrada-me esse hábito, embora desagrade-me bastante ter que sair de casa cedo, porque não me acordo cedo para isso. Apraz-me ler, pela manhã, e hoje As confissões de Lúcio esperavam-me. Não sei se devia ter lido todo o volume de uma vez, porque um texto pequeno não é necessariamente um para ser lido de um fôlego só.

Talvez conviesse ter lido uma parte, ter saído, almoçado, trabalhado, jantado e voltado à casa. E ter lido o restante amanhã. Mas, não, deixei-me seduzir pela prosa de novela afrancesada, fin-de-siècle, psicológica, fluída, boa de ler, enfim.

Seria possível identificar suas condicionantes cronológicas sem se saber qualquer coisa sobre o autor, nem mesmo as datas próximas de nascimento e morte; muito próximas. Seria possível perceber a proximidade dessas datas a partir do texto.

Claro que as pessoas são, entes de mais algo, elas mesmas. E que, nada obstante, essas pessoalidades também são dos seus tempos. Aqueles tempos foram de aceleração espiralada, vertiginosa, como são todos antecendentes a grandes travadas históricas.

Mas, não se trata de aprisionar Sá Carneiro nas circunstâncias temporais, que a psicologia na obra revela mais que um tempo e mais que um morredor breve. Pareceu-me revelar uma personagem levada pelo tempo ao que deveria visitar e ao que deveria compreender, porque afinal compreende.

A psicologia é, talvez, o xamanismo, como diz Levi-Strauss cientificamente. A tragédia não-trágica da culpa com culpa; a proposta da redenção sem imortalidade.

Lúcio, a personagem confitente, explica porque foi encarcerado por dez anos, condenado por homicídio. Explica depois de cumprir a pena, porque não se animou a explicar-se ou a defender-se no julgamento. E não o teria feito por perceber a inutilidade disso,  ou por simples desprezo pelo tribunal, que Lúcio não foi Mersault.

Talvez não o tenha feito tampouco por julgar-se afinal inocente ou apenas parcialmente culpado. Fica a parecer que deixou-se inerte por assombro, por incompreensão ou por pura inocência material conjugada com culpa eficiente. Lúcio, acho-o eu, não percebeu o que se disse por palavras claríssimas que, todavia, não lhe soaram assim. E não cuida de rearmar um quebra-cabeças, ao depois.

Parecia embrigado pela fada verde, ele que também parecia muito lúcido nos seus escritos. Não convém confundir Lúcio com Mário, todavia; confusão bastante fácil de ocorrer se uma e outra circunstância da vida do escritor é conhecida. Mário é um escritor finíssimo, que mereceu de Fernando Pessoa o elogio com as palavras de Plauto: Morre jovem o que os Deuses amam.

Conversações com Dmitri e outros fantasmas, de Agustina Bessa Luís.

Já faz uns dias que terminei de ler Conversações com Dmitri e outros fantasmas, mais uma oferta preciosa de Miguel. Antes, nada tinha lido de Agustina Bessa Luís, embora me recorde de ter visto um e outro volume da autora. É facílimo e seguro de recomendar, porque é um bom livro. Despertou-me imensa curiosidade pela obra de Agustina que, andei pesquisando, é muito vasta.

Essas conversações são contos, o último um conto grande, quase uma pequena novela. Têm algo que me lembrou o chamado realismo fantástico, qualificação inexata que tem servido para a obra de Garcia Marquez. Inexata pela inexatidão de todas essas tentativas de apropriação de um estilo por uma ou duas palavras e também porque não há mesmo proximidade com aquilo que ensejou a utilização desses nomes.

Todavia, assim pareceu-me. Talvez mais herméticos que fantásticos. Diretos e econômicos de palavras e explicações para situações aparentemente inusitadas. Aparentemente porque o inusual pode ser um efeito estilístico obtido pelo autor, que trata na verdade de coisas absolutamente triviais.

Outra coisa chamou-me bastante a atenção: a elegância sóbria da escrita. Aqui, convém apontar algo que não deve ser tomado na conta de estabelecimento de relação de causa e efeito e a advertência não é inútil, porque é fácil interpretar o que segue erroneamente. Trata-se da facilidade de perceber-se a extração social da autora. Ela é nobre e culta.

Ser-se de origens nobres ou plebéias não está na origem do bom escritor, nem do escritor excepcional, bastando lembrar de Saramago. Ter cultura formal ampla já é quase um presuposto, mas também não depende necessariamente das origens sociais. O caso é que se podem perceber as origens do escritor bom.

Não é uma questão da elegância do texto – insisto que isso não depende de origens – mas de um estar-se à vontade com certas descrições e abordagens. De ser natural e sem afetação na utilização de personagens de todos os tipos e origens sociais, geográficas e históricas. De manejar sem cerimônias mitos e referências verdadeiramente eruditas e estórias de memórias pessoais a envolverem, inclusive, diferenças sociais profundas.

Enfim, ela, Agustina, é uma autora a ser vivamente sugerida. Eu, de minha parte, aguardo também sugestões de outras obras dela, que são muitas e não sei qual escolher.

Antigas e novas andanças do demônio, de Jorge de Sena.

Gosto muito de contos, que reputo um gênero difícil. Ele não admite facilmente o razoável, oscila entre o bom e o ruim, é traiçoeiro com escritores mal-dotados.

Achei de conhecer Jorge de Sena, muito tardiamente, pelos contos reunidos nas Antigas e novas andanças do demônio. As diferenças entre as duas partes do volume são nítidas, até porque eram dois livros diferentes. Posteriormente, o autor resolveu publica-los juntamente em um só livro.

Ele escreve prosa como um poeta. Não que traga consigo uma métrica que sempre insinue a poesia, mas que se percebe ser principalmente poeta. Um prosador que não faz poesia também tem um caráter singular, que se percebe. Todavia, é muito interessante notar isso em um autor lusófono, porque nesta língua poucos são os que não escrevem nas duas formas.

Algumas coisas nas andanças do demônio, alguns contos, enfim, lembraram-me Guy de Maupassant, o maior contista que já li. Há um traço de extraordinário lúcido e, ao mesmo tempo, apaixonado. Há uma profunda erudição e conhecimento histórico em linhas simples, concisas e quase herméticas.

Houve uma lembrança de algo que fazia quatorze anos que ouvi. Uma estória, ou um mito, que é cara à gênese do cristianismo está mencionada no conto A noite que fôra de natal. Um mito ou episódio caro a esta gênese, mas pouco falado e relativamente pouco conhecido. Plutarco conta o episódio.

Um autor que a ponha em ficção, em um formato menor que a novela ou o romance, com resultado bom, é um autor invulgar. O grande Pã morreu, dizia-se no Egeu. Dizia-se, ou antes ouvia-se, em vozes cavas, chorosas, vozes sem falante, que os pescadores ouviram.

Essas vozes falaram-se ou ouviram-se na época em que Tibério era Imperador. Época que se convencionou dizer do nascimento de uma nova religiosidade e morte de uma anterior. Ninguém sabe se foram mesmo faladas e se foram ouvidas. Não chegou a ser constatado, embora Tibério tenha ordenado investigações.

Uma estória dessas, pouco importa que seja verdadeira ou falsa. Falar dela em ficção importa talento.

Os amigos de Hitler, um texto de Eduardo Galeano

Esse texto é um fragmento do livro Espejos: uns historia casi universal, do uruguaio Eduardo Galeano. Vale à pena a leitura. Transcrevo em castelhano, porque talvez seja melhor que uma tradução livre e precária feita por mim.

Los amigos de Adolf Hitler tienen mala memoria, pero la aventura nazi no hubiera sido posible sin la ayuda que de ellos recibió.
Como sus colegas MussoliniFranco, Hitler contó con el temprano beneplácito de la Iglesia Católica.
Hugo Boss
vistió su ejército.
Bertelsmann
publicó las obras que instruyeron a sus oficiales.
Sus aviones volaban gracias al combustible de la Standard Oil [hoy Exxon y Chevron] sus soldados viajaban en camiones y jeeps marca Ford.
Henry Ford
, autor de esos vehículos y del libro El judío internacional, fue su musa inspiradora. Hitler se lo agradeció condecorándolo.
También condecoró al presidente de la IBM, la empresa que hizo posible la identificación de los judíos.
La Rockefeller Foundation financió investigaciones raciales y racistas de la medicina nazi.
Joe Kennedy
, padre del presidente, era embajador de los Estados Unidos en Londres, pero más parecía embajador de Alemania. Y Prescott Bush, padre y abuelo de presidentes, fue colaborador de Fritz Thyssen, quien puso su fortuna al servicio de Hitler.
El Deutsche Bank financió la construcción del campo de concentración de Auschwitz.
El consorcio IGFarben, el gigante de la industria química alemana, que después pasó a llamarse BayerBasf oHoechst, usaba como conejillos de Indias a los prisioneros de los campos, y además los usaba de mano de obra. Estos obreros esclavos producían de todo, incluyendo el gas que iba a matarlos.
Los prisioneros trabajaban también para otras empresas, como KruppThyssenSiemensVartaBoschDaimler BenzVolkswagenBMW, que eran la base económica de los delirios nazis.
Los bancos suizos ganaron dinerales comprando a Hitler el oro de sus víctimas: sus alhajas y sus dientes. El oro entraba en Suiza con asombrosa facilidad, mientras la frontera estaba cerrada a cal y canto para los fugitivos de carne y hueso.
Coca-Cola
inventó la Fanta para el mercado alemán en plena guerra. En ese período, también Unilever,WestinghouseGeneral Electric multiplicaron allí sus inversiones y sus ganancias. Cuando la guerra terminó, la empresa ITT recibió una millonaria indemnización porque los bombardeos aliados habían dañado sus fábricas en Alemania.

Padre Cícero, livro biográfico de Lira Neto.

Padre Cícero Romão Batista


Um texto de Andrei Barros Correia.


Alcides ofereceu-me o livro Padre Cícero, escrito por Lira Neto, com entusiasmada recomendação de leitura. Disse-me que a prosa do autor é boa e o livro baseado em ampla pesquisa documental. Acabei de ler a obra e corroboro as impressões dele, o livro realmente é bom, o estilo simples e direto, as bases documentais apresentadas de maneira fácil.

Já havia lido uma obra sobre o Padre Cícero e os eventos supostamente milagrosos sucedidos no Juazeiro, na segunda metade do século XIX, um livro do acadêmico norte-americano de Columbia Ralph Della Cava, chamado Os milagres do Joaseiro. Esse é um interessante estudo, de alguém completamente estranho ao ambiente dos acontecimentos. Mas, é uma obra nitidamente de pesquisa acadêmica e, ademais, traduzida para o português.

O livro aqui comentado não sugere que os milagres tenham ocorrido, nem que se tenha produzido um embuste. Não promove o Padre Cícero a santo, nem afirma que foi um bandido. Não põe toda ênfase na religiosidade do Padre, nem na atividade política por ele desenvolvida. O autor – e isso é admirável – conta a história da personagem sem acusá-la ou santificá-la e, mais que isso, sem incorrer na aparente neutralidade de formato acadêmico.

Socorre-se da farta correspondência epistolar e telegráfica mantida na época, entre o Padre e vários interlocutores, nomeadamente os bispos, os cardeais inquisidores, os amigos e apoiadores, os políticos, inserindo-a exitosamente na narrativa. Muitas cartas e telegramas estão transcritos na obra, com pertinência cronológica e sem tornar cansativa a leitura. Preciosa correspondência! Tive reforçada a impressão de que o Padre viu-se em meio a uma situação que ele propriamente não criou mas, que depois de iniciada tampouco podia ser travada.

Punido pela igreja – sempre temerosa das manifestações de religiosidade mística popular – viu-se na contingência de defender-se como podia. E o fez pelos meios ortodoxos, frente ao tribunal do Santo Ofício, a Inquisição, e também por meios heterodoxos, pois tornou-se político. De fato, nem sempre é razoável esperar que um homem acuado e convicto de não estar a cometer delitos resigne-se às punições e indignidades que se lhe impõem.

Cícero Romão Batista nasceu na cidade do Crato, na região do Cariri, situada no extremo sul do Estado do Ceará, próxima às divisas com os Estados da Paraíba e de Pernambuco. Região inserida no sertão nordestino, assolado por períodos secos realmente trágicos e local de práticas religiosas tendentes a um misticismo próprio. Pobre e católica à sua maneira, enfim.

O padre estudou, quando jovem, em uma espécie de pré-seminário mantido na cidade paraibana de Cajazeiras pelo famoso padre José Maria Antônio Ibiapina, uma figura interessantíssima. Homem nascido em família remediada, Ibiapina foi advogado e deputado e abandonou a vida profissional e política para tornar-se missionário católico nos sertões nordestinos e sair a construir capelas, escolas, cemitérios, açudes e outras obras.

Posteriormente, Cícero ingressou no seminário de Fortaleza e ordenou-se sacerdote. Retornou à sua terra natal, o Crato, e terminou por instalar-se em uma pequeníssima e paupérrima freguesia chamada Joaseiro, a leste do Crato. Passou a cuidar da capela do local e a reunir uma comunidade piedosa, onde antes todos eram considerados vagabundos, bêbados e desordeiros.

Rapidamente, Cícero tinha ao seu redor um grupo de beatas, a viverem em função dos modelos religiosos então em voga: trajes próprios, intermináveis períodos de orações, comportamento litúrgico próprio e vida em comum. Esse formato comunitário agregava em torno à religiosidade e ao padre pessoas que não dispunham de estruturas familiares tradicionais, basicamente por conta do fator desagregador que é a pobreza da região.

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Padre António Vieira: um negreiro tomista e meio poeta.

Padre António Vieira

Esse texto é uma sugestão de leitura de O Trato dos Viventes, Formação do Brasil no Atlântico Sul, de Luiz Felipe de Alencastro, um livro muito bom. Mas, não é apenas uma sugestão, e faz-se em formato bastante livre. O que se refere a jesuitismo e reformismo é da conta minha, embora a maior parte da informação tenha sido recolhida na obra, notadamente as transcrições dos padres Barreira e Vieira.

Vieira foi um dos próceres da Sociedade de Jesus nos seiscentos. Realmente, os jesuítas estiveram na liderança ideológica do colonialismo luso até Pombal fartar-se de tanta política, tanto poder e tanta hipocrisia e encontrar a única solução possível: a proscrição que, no entanto, deu errado. Os jesuítas e o jesuitismo ganharam, afinal, e não apenas em Portugal e no mundo lusófono. Se é muito difícil definir concisamente o que é o modelo de pensamento europeu ocidental moderno, quem arriscar uma única palavra pode estar no caminho certo: jesuíta.

Alguém poderá objetar com a reforma e suas resultantes européias e norte-americanas. Todavia, a reforma, que encontrou antagonismo aberto na inquisição e nos carmelitas, encontrou o verdadeiro antagonismo no jesuitismo, que a moldou de fora para dentro. A forma histórica por excelência, o jesuitismo, pôs a forma anti-histórica, o protestantismo, a seu serviço ideológico, por razões fáceis de perceber. A dinâmica não é aprisionada pela estática.

A história não são os fatos, nem as pessoas, isoladamente. São fatos produzidos por pessoas que os querem e precisam justificar, porque são maioritariamente fatos criminosos. Daí, a máxima conformação histórica é a justificação de tudo, consoante acontecem as coisas. Claro que um ambiente em que domine a ideologia reformada tem tantos fatos – e tantos criminosos – quanto qualquer outro ambiente. Porém, nele, a contradição ideológica é permanente e não se socorre da fantástica idéia que é a graça, a maior criação intelectual do cristianismo.

Em um ambiente jesuítico as contradições existem na mesma quantidade – que afinal de homens trata-se – mas elas são constantemente lubrificadas pelo óleo que reduz os atritos das engrenagens cerebrais, a hipocrisia sistematicamente teorizada e praticada.

Nos seiscentos e setecentos, o Brasil, Portugal e Angola formavam um sistema econômico-mercantil. O primeiro produzia, primeiro apenas assúcar e depois minérios e café, o segundo recebia a produção e o terceiro fornecia pretos para as empresas assucareira, mineira e cafeeira. Por isso, ter Salvador, Recife e o Rio de Janeiro sem ter Luanda e Benguela era ter nada e o inverso também era verdadeiro. Sem engenhos, não havia para quê vender escravos e sem escravos não havia como funcionar os engenhos.

A Sociedade de Jesus – SJ estava dos dois lados do Atlântico, como empresa bem estabelecida, prestando contas ao Reino e à cúpula, em Roma. Os escrúpulos da SJ com relação à servidão dos índios brasileiros chamam bastante atenção. Eles rejeitavam veementemente a captura e escravização de indígenas, exceto daqueles a seu serviço. Essa resistência ajudou a construir toda uma mitologia da defesa dos índios brasileiros e de outros mitos laterais, como o da preguiça e da inaptidão essencial do índio para o trabalho servil.

Do outro lado do Atlântico, na Mina, no Congo, na Costa do Ouro, do Marfim e em Angola, os escrúpulos da SJ eram outros, pois articulavam-se muito bem ao próspero negócio do tráfico de africanos para a América do Sul e, residualmente, para o Reino e as conquistas asiáticas. Os jesuítas fizeram mais que fornecer o discurso de justificação do tráfico de negros da África para as Américas, eles tomaram parte ativa no empreendimento.

A parte propriamente comercial é menos interessante que as justificações constantemente renovadas pelos jesuítas, variando entre os pólos extremos do discurso aberto de um Baltazar Barreira e a colecção de eufemismos vertidos em prosa e verso de um António Vieira. Em certa altura, o sistema de captura em prática em Angola é posto em questão, inclusive com argumentos propriamente ideológicos como a legitimidade da posse de um cativo. Questionava-se a legitimidade a partir da cadeia de aquisições, mais ou menos como se faz com imóveis hoje.

Em réplica à objeção, Baltazar Barreira, que foi superior da SJ em Luanda, tem ocasião de lançar a seguinte frase, absolutamente destruidora das aparências e até estranha ao pensar jesuíta: O que em geral se pode dizer por parte dos negros que neste Guiné chamado Cabo Verde se vendem e compram, é que nenhum exame se faz sobre o título do seu cativeiro, nem há quem pergunta por ele.

O padre parece estar enfadado de discutir legitimidade de cativeiro, quando, em um negócio essencialmente ilegítimo, ninguém está realmente preocupado com isso. Sincero, o jesuíta Barreira, como se quisesse deixar claro que negócio sujo começa e termina assim, não se presta a entrar no labirinto das justificações, limitando-se a dizer que as coisas sempre foram daquela maneira.

Ele vai mais além e – no que me parece uma declaração de incompatibilidade com a SJ – utiliza o discurso do tudo ou nada. Instado a falar sobre os negócios negreiros da sociedade – que intermediava a compra e venda de escravos com os aprisionadores angolanos – afirma que, ou se mantém as coisas como vão, ou se suprime o tráfico: No que toca ao cativeiro destes negros, matéria tão cheia de dúvidas pro utroque parte, que não é possível tomar-se outro assento nele senão que, ou corra como até aqui, ou de todo se proíba esse trato.

O padre Baltazar Barreira, depois de décadas a serviço da Sociedade de Jesus, do Reino e do comércio do fator de produção que eram os escravos de África, morreu pobre e esquecido. Era um infame, mas nitidamente pouco jesuíta.

António Vieira adotava a mesma ideologia de Barreira, mas fazia-o com circunlóquios, volteios e alguma poesia. Era, enfim, um jesuíta prototípico. Cuidou de ser coerente com a tese de que o cativeiro era menos ruim que a permanência na ignorância do cristianismo. Ou seja, a escravização de negros africanos era, no fundo, uma oportunidade a eles dada de conhecerem os ensinamentos cristãos, uma benção de agradecer-se a Nossa Senhora do Rosário!

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Legados:

1: Tanga (Angola):  Pano, capa. (dicionário Kimbundu-Português coordenado por J.D. Cordeiro da Matta)
Tanga (Brasil): Espécie de avental com que certos povos primitivos cobrem o corpo desde o ventre até as coxas. (dicionário da língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira)

2: Kitanda (Angola): Feira, mercado. (Dicionário de Kimbundu-Português coordenado por J.D. Cordeiro da Matta)
Quitanda (Brasil): Pequeno estabelecimento onde de vendem frutas, legumes, cereais,etc. (Dicionário da Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira)

3: Mbunda (Angola): Trazeiro, nádegas, saracoteio. (Dicionário de Kimbundu-Português coordenado por J.D. Cordeiro da Matta)
Obs:O N e o M antes de consoantes, tem somente a função de anasalar estas consoantes.
Bunda (Brasil): As nádegas e o ânus. (Dicionário da Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira)

Todos direto do site de Dulce Braga, uma angolana que passava férias de verão em Portugal, radicada no Brasil dois meses depois da Revolução dos Cravos em Portugal, e dois meses antes do dia da independência de Angola. Que acaba de escrever um livro contando parte dessa história, Sabor de Maboque, uma fruta que tem um aspecto interessante e sem dúvidas, dá vontade de provar…

Maboque

Maboque

A Queda, de Albert Camus.

Camus escrevia teatro, e bem. Basta considerar seu Calígula, uma magnífica peça teatral. Creio que a técnica do monólogo foi bem empregada n´A Queda por conta desse domínio do teatro. Não é fácil estruturar uma narrativa de romance a partir da fala apenas de uma personagem condutora, ou seja, sem diálogos. Todavia o livro é fácil de ler, não é chato e a tradução da edição brasileira é boa.

O juiz-penitente é a personagem única desse conto alongado. Única porque seu interlocutor não chega a ser verdadeiro partícipe, senão um atento ouvinte do monólogo, a evitar que sejamos nós os destinatários em linha reta dessas penitências acusadoras.

O autor ousou ser original e não alinhado às correntes intelectuais e literárias dominantes na época e foi impiedosamente julgado pelos deuses e anjos da intelectualidade engajada. Não o podiam acusar de covardia na luta pela nação, que ele fez parte da resistência francesa, e isso deve ter redobrado a raiva. Ora, o fulano não era atacável no flanco mais óbvio. Então, merecia sê-lo como cismático do monolito parisiense-frankfurteano.

Ele tinha escrito o Homem Revoltado, uma obra que o ego de Sartre fê-lo perceber como uma acusação contra ele, Sartre. Talvez esse último exagerasse sua importância, pondo-se na condição de atacado, mas os juízes do mundo tendem a proceder assim, pois são o centro do  cosmos e da verdade e, portanto, os destinatários de todos os ataques. De minha parte, vejo no Homem Revoltado ataque a ninguém especificamente e sim uma grande obra.

A Queda é mais precisa e mais densa que o Homem Revoltado. É a penitência de todos por meio de uma só. O juiz-penitente diz o que ele é e, consequentemente, o que são potencialmente todos os homens. Lembro-me, a este propósito, de um episódio que se teria passado em Atenas, quando vivia Sófocles.

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Zorba, Kazantzakis e a Páscoa.

Não temo nada. Não espero nada. Sou livre. Inscrição na lápide de Kazantzakis.

Afinal, reli Zorba, de Nikos Kazantzakis. Nesse caso, minha memória estava já meio puída e as lembranças não foram tão precisas. Foi próxima a uma primeira leitura, com todas as vantagens e desvantagens que dai decorrem. Uma terceira ocasião será quase a segunda, há tempo.

Não é possível aprisionar uma obra ou o seu autor nas circunstâncias temporais, geográficas e culturais que os rodeiam. Tampouco é possível vê-los de maneira puramente abstrata e desligados totalmente dessas circunstâncias. Ora, Kazantzakis era grego, cretense, pariu Zorba em 1943, em sua lingua repleta de coloquialidades cretenses. Fê-lo no período da segunda guerra, após a dura retomada de partes da Grécia dos turcos.

O autor viu-se excomungado pela Igreja Ortodoxa Grega em função de A última tentação de Cristo. A excomunhão é muito reveladora de seu âmbito de pensamento, dele e da Igreja Ortodoxa. Ela faz sentido inserida em um movimento que, iniciado em Nicéia, passa por Calcedônia e permeia a história da ortodoxia: a preocupação extrema e constante com as naturezas do Galileu. Assim, Kazantzakis não escapou à preocupação ortodoxa nesse seu A última tentação. Zorba tem ligações com essa fonte, até porque liberdade e contingência podem ser vistas a partir desse prisma.

O macedônio Zorba coloca a liberdade e a contingência fora da apreensão intelectual e não se lança como exemplo ou proposta de compreensão. Não é subversivo nem conformista, ele é ele e sua vida de cada instante, inserido nas identificações que estão à volta.

A personagem é um viajante, embora não propriamente um aventureiro clássico, e os seus destinos confirmam um forte elemento de identidade cultural entre os lugares visitados. Não se deve desprezar que os países onde esteve, a Rússia, a Macedônia, terra natal, Creta, a Sérvia, a Bulgária têm um ponto em comum, além do alfabeto: todos são ortodoxos. Mas ele não é minimamente religioso!

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