Este texto foi publicado originalmente em maio de 2013 e refere-se especificamente a Machado de Assis porque, na época, chamou-me atenção a insistência de um crítico em ver aspectos biográficos ocultos nas obras do autor. Como se as obras fossem peças de um código para se decifrar a psique enigmática do autor.
Esse fetichismo vem aumentando desde então e espraiando-se para subcelebridades como jogadores de futebol. Por isso, achei interessante a republicação.
Autor e
obra são coisas diversas e, exceto por quem gosta mais de fuxicos que de arte,
o segundo é importante e o primeiro quase o não é. Talvez a contundência dessa
afirmação deva-se ao paroxismo a que chegou o interesse por descobrir detalhes
biográficos dos autores, numa atividade de investigação obstinada e fetichista
em busca provavelmente de nada.
A
biografia do autor é algo fundamental como referência histórica e isso vale até
para artes que se pretendem abstratas.
Machado
de Assis é tido como o maior escritor brasileiro e, particularmente, concordo
com a opinião. Assim, é frequente a busca de um Machado que se revelaria
fugazmente nas suas obras, numa espécie de jogo ambíguo do fino esteta que,
dizem, era muito reservado com relação a detalhes de sua vida. Parte da crítica
abandonou a crítica e passou a buscar a reconstrução de uma personagem a partir
de várias.
Buscar
conhecer as circunstâncias sociais e históricas de um autor é interessante,
porque, afinal, sociologia e história são interessantes. Fazê-lo como
investigação de causas e efeitos é, por seu turno, exercício de ficção ruim em
segundo grau.
O fetiche
está em crer que a obra é um jogo de chaves semi-ocultas para o próprio autor,
mesmo que ela obra esteja lá, bela, imensa, válida por ela mesma e totalmente
distante de ser um místerio de chaves subjetivas. Se as obras fossem sempre
essas hagiologias de si mesmo, enigmas que conduzem ao psicológico do autor,
seriam religiões iniciáticas e não peças de arte.
Por outro
lado, é claro que as circunstâncias do autor descobrem-se nas obras, porque ele
não é atemporal e porque o conhecimento imediato não é imediato, posto que
ainda mediado por linguagem. O autor fala da única forma que pode, ou seja, a
partir do que lhe fizeram seu tempo, sua classe social, sua educação, seu
lugar.
Há pouco
li um livrinho de Machado interessantíssimo: Casa Velha. A obra não foi
publicada em forma de livro em vida de Machado. Ela surgiu em fascículos
semanais ou quinzenais que saiam em períodicos, como se deu com outras obras
dele. Todavia, somente foi editada em livro na década de 1940, trinta e tantos
anos depois da morte de Machado.
Inicialmente,
a crítica fez o que mais gosta: debruçar-se sobre uma lateralidade. A
controvérsia era se Casa Velha era romanca pequeno ou conto grande. Pouco
importa o rótulo, Casa Velha é obra valiosíssima e não tem qualquer coisa de
autobiográfica, que foi a seguinte suposição da crítica.
Tem nada
de autobiográfico, mas tem precisamente o que só poderia perceber quem viveu
situação muito próxima aquela que se desenha no livrinho. A figura dos
agregados a famílias ricas e muito ricas, não é suficientemente compreendida
senão por quem a viveu.
O
agregado é o ponto de contato entre a inflexibilidade social e a solidariedade
no pequeno grupo. Ele entra num sistema de solidariedade e de intimidade
familiar sem que as fronteiras invioláveis do pertencimento de classe sejam
banidas. Talvez seja o elemento a explicar não ter havido desagregação social
maior numa sociedade profundamente desigual e quase estamental, como era o
Brasil no século XIX.
É pouco
menos que óbvio que o primor do desenho de Casa Velha advenha de Machado ter
ele mesmo sido de uma família agregada a uma grande casa senhorial no Rio de
Janeiro da primeira metade do século XIX. Não há artificialidades na casa
senhorial – a Casa Velha – e nas relações que há nesse subsistema social.
O livro
diz – é audacioso e até temerário dizê-lo, mas o livro diz mesmo – que a
violação das fronteiras de classe por nascimento é o delito mais grave e
portanto o que mais esforços deve implicar para ser evitado. E di-lo deliciosamente
ao mesmo tempo em que expõe laços de solidariedade e intimidade cultivados com
imensa força.
O
paradoxo é fascinante. A agregada é afilhada da senhora, é acarinhada por ela,
é por ela educada, é a quase-filha, é dotada pela senhora, mas resta-lhe uma única
inviolável fronteira. Ela não se pode casar com o filho da senhora.
Ela é da
Casa, mas não é da classe. Para evitar a união, a senhora é capaz de lançar mão
do maior tabu social e sexual existente: o incesto. A mentira, a sugestão do
incesto, a desonra que haveria por trás dessa suposição se verdadeira, tudo
isso vale para fechar a última fronteira. Fica clara a hierarquia de valores
instalados na cabeça da senhora, de todas as senhoras e senhores.
A
imperatriz da Casa Velha é capaz de inventar que a agregada é filha de uma
aventura extraconjugal de seu falecido marido – ex-ministro do Império – com
toda a vergonha para si e agressão à memória do extinto que isso implica, para
estancar um namoro que na verdade não violaria regras contra o incesto, violaria
regras de imutabilidade social.
Machado
percebeu muito bem a escala de valores dominantes e que o valor supremo permite
uso e recurso às maiores mentiras e ao maior dos tabus, neste caso o incesto
não ocorrido, mas sugerido como meio de separação.
O autor
fala de situações que ele conheceu e compreendeu os mecanismos subjacentes à
dinâmica social do tempo. Não se cuida de narrativa do que se passou com ele
próprio, nem de fornecimento de chaves dissimuladas para a compreensão de algum
enigma que tenha sido a vida dele autor. Essas duas última inclinações da
crítica decorrem de impulso irrefreável para a superficialidade, para o culto
do subjetivismo do autor e para o fetiche biográfico.
O
Memorial de Aires, última obra machadiana, publicada no ano mesmo de sua morte,
rende ainda mais ensejos à visão de enigmas e chaves autobiográficas. Aqui,
creio que Machado fez de caso pensado, sabedor ele desse fetichismo e
superficialidade que fazem a crítica e parte dos leitores tomarem a obra como
objeto de curiosidade relativamente ao autor.
O
Memorial – talvez mais que em outras – é culto à beleza da língua como raro
ocorreu na literatura brasileira. O esteta inteligentíssimo dá-se a formas
narrativas pouco habituais, relativamente livres e escreve numa concisão de
coluna dórica. Essas bobagens de realista ou parnasiano, ou mistura dos dois,
são prisões que conduzem o crítico e o leitor a nada, tratando-se desta obra.
As memórias são do diplomata Aires, não do escritor Machado.
Aqui, a
crítica vê as suas sempre presentes chaves autobiográficas no casal sem filhos
e em que a esposa é cultuada. Machado e Carolina não tiveram filhos e a
admiração séria dele por ela é conhecida e foi reforçada pelo soneto A
Carolina, composto logo após a morte dela.
É claro
que ele pode compor um casal harmônico no companheirismo e cumplicidade
profundos e sem filhos porque deve ter vivido conjugalmente assim e sem filhos.
Mas, daí a fazer desse casal o que ele compunha com Carolina vai imensa
distância. Machado era, segundo todos dizem, profundamente reservado e até
distante no que se referia à sua vida pessoal. Seria estranho que quisesse,
assim impudica e superficialmente, expor no derradeiro livro ela e ele, postos
a nu, a claro, às vistas de todos.
Por outro
lado, nada leva necessariamente a crer que Machado e Carolina tivessem a
ausência de filhos como alguma ferida, como dá-se com as personagens Aguiar do
Memorial. Novamente, pode haver aqui a inteligente piada e talvez a pista falsa
deixada para os intérpretes que funcionam a partir das categorias sentimentais
pré-ordenadas. Sagacidade e ironia para fazê-lo ele tinha a sobrar.
De
qualquer forma que seja, essas duas obras são as que revelam mais precisamente
o que Machado viveu, quais as circunstâncias sociais em que viveu. Todavia, isto
vai longe de serem as pistas para a percepção do que foi um personagem a ser
biografado em termos psicológicos, ele que tão psicólogo social não faria o que
sabia impossível e, ademais, redutor.
É profundamente redutor supor que Machado não soubesse da enormidade de sua obra em termos artísticos e quisesse, assim, propor os enigmas que conduziriam à sua hagiografia de falsas sutilezas por professores críticos profissionais. Também é bastante improvável que os mesmos críticos tenham percebido isto, presos que são ao que são.