Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Sugestão de leitura (Page 3 of 3)

Viagem ao fim da noite, de Céline.

É preciso falar pouco sobre esse livro, tão grande o livro. Ele é do tempo entre guerras, do século passado, é inegável. Do entre guerras e da prosperidade material, não vivida então, mas fartamente anunciada pelos triunfos da técnica. Os começos e os finais de épocas são complicados, neles não há certezas, há dissolução. O século XX começou em 1918, depois da imensa guerra européia, e essa obra não se entende sem a guerra.

A Viagem ao fim da noite tem uma nota fortíssima de intranscendência. Sim, porque a desesperança pode ser transcendente, pode ser até indiferente, mas pode ser intranscendente. Aqui, ela não anuncia qualquer possibilidade de purgação – não quer isso. Não é tragédia, pois os deuses não intervêm. A catarse não está em jogo, pode até existir, mas não é a questão.

Sugiro, para que se perceba por outros estímulos o que esse livro pode ser, que se escute a Valsa, de Ravel.  Além, é claro, do próprio livro, muito bom.

Fernando Pessoa e a liberdade.

Gosto muito dos livros em edições de bolso. Encontrei o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, neste formato, da editora Companhia de Bolso, na livraria Saraiva em Recife. Desde então, ando lendo-o. Hoje, deparei-me com este belíssimo texto, cuja lucidez não se encontra muito comumente:

“A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti, se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.

Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.

A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.

Por isso a morte enobrece, veste de galas desconhecidas o pobre corpo absurdo. É que ali está um liberto, embora o não quisesse ser. É que ali não está um escravo, embora ele chorando perdesse a servidão. Como um rei cuja maior pompa é o seu nome de rei, e que pode ser risível como homem, mas como rei é superior, assim o morto pode ser disforme, mas é superior, porque a morte o libertou.

Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis.

Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído.”

Olívia Gomes

Sugestão de leitura. Do amor e outros demônios. García Marquez.

Texto de Olívia Gomes.

Neste carnaval dei-me de presente a leitura de um bom livro. Li Do amor e outros demônios do colombiano Gabriel García Marquez. O livro é de 1994, mas a estória o autor retirou-a de um episódio acontecido em 1949, em Cartagena das Índias.

O fato é que o autor, quando do exercício da função de jornalista, e em busca de uma notícia, foi acompanhar o desenterrar dos corpos das criptas do antigo convento de Santa Clara.

Eis que no terceiro nicho do altar-mor, ao lado do evangelho, estava a notícia: “a lápide saltou em pedaços ao primeiro golpe da picareta, e uma cabeleira viva, cor de cobre intensa, se espalhou por fora da cripta”, estava preso a um crânio de menina e media 22 metros e 11 centrímetros. Na lápide estava escrito o nome dela, Sierva María de Todos los Angeles.

Então, o autor lembrou-se de ouvir, quando menino, sua avó lhe contar a estória de uma marquesinha de 12 anos cuja cabeleira se arrastava como um véu de noiva, que morreu de raiva contraída pela mordida de um cachorro e que era venerada no Caribe por seus milagres. Eis que surgiu a notícia de García Marquez, na época, e o fantástico livro cuja leitura venho sugerir.

Pois bem, o contexto é a Colômbia e a estória é a de Sierva María, filha de Bernarda Cabrera e de um nobre crioulo, o marquês de Casalduero. A mão odiou a menina desde que ela nasceu, e o pai era dotado de tamanha apatia que o levava a não perceber a existência dela, de modo que a menina foi criada pela negra Dominga de Adviento, no pátio dos escravos.

Dominga fez a promessa de somente cortar os cabelos da criança quando ela se casasse em troca dela sobreviver ao cordão umbilical enrolado em seu pescoço que a acompanhava quando de seu nascimento.

As negras cuidavam de Sierva María e de seus cada vez mais longos cabelos. Até que um dia a menina foi mordida foi um cão raivoso, quando passeava em uma feira acompanhada de uma escrava.

Dom Ygnácio de Alfaro y Dueñas, o marquês, após um ataque da raiva e diante da possibilidade da morte da filha, procura ajuda do médico Abrenuncio de Sá Pereira Cão, um médico judeu, perseguido pelo Santo Ofício e fugido de Portugal. Este, por sua vez, ao afirmar a impossibilidade de cura da hidrofobia, sugere ao pai de Sierva María que até o fatídico dia faça-a feliz, já que “não há remédio que cure o que a felicidade não cura”.

E assim o marquês tentou fazê-lo. Trouxe a menina de volta para a vida dos brancos, sem se perguntar se isso faria feliz a menina que sempre se apresentava pelo seu nome de negra, María Mandinga. Bem o disse a professora de música contratada para lhe dar aulas: “não é que a menina seja negação para tudo, o que há é que ela não é deste mundo”.

O fantástico da estória – que levou o autor a ser sempre apontado pelo seu realismo fantástico – começa exatamente quando a menina é exposta ao mundo que não é o seu. Os ataques da raiva foram logo confundidos com uma possessão demoníaca e em virtude dos consehos do Bispo da diocese, Dom Toríbio de Cáceres y Virtudes, ela foi levada ao convento de Santa Clara, para que fossem iniciados os trabalhos do exorcismo.

No convento, como não poderia deixar de ser, os costumes africanos da menina também foram confundidos com as artimanhas do inimigo. Os colares das dividades africanas assustavam as noviças, para além dos hábitos da menina de matar carneiros, estrangulando-os e depois comer seus olhos e testículos cozinhados, e falar em iourba e congo, e em outras línguas aprendidas com os escravos.

O padre responsável pelo exorcismo, Cayetano Delaura, o bilbiotecário da diocese que acreditava ser descendente direto de Garcilaso de la Vega, finda se apaixonando por Sierva María e ela por ele. Consequentemente, o padre deixou de sê-lo e foi castigado a cuidar dos leprosos em um hospital, o que o deixou atormentado e com ares de louco. Esta também foi uma façanha do demônio que havia possuído o corpo da menina.

García Marquez demonstrou com muita sensibilidade e com uma ironia sútil o quanto a realidade pode ser fantástica. Sierva María só vivia, sendo que o fazia com outro modelo. O fantástico aqui fica por conta da vida diferente da que é comumente encontrada.

Eis que Sierva María morre de amor a espera de Cayetano que, em razão de seu castigo, não volta. Seus cabelos haviam sido cortados e raspados para o exorcismo. A noviça que a encontra sem vida vê seus cabelos crescendo rapidamente em um corpo já morto.

Por fim, não posso deixar de mencionar duas coisas: a primeira é que sempre sinto os cheiros ou sou levada aos locais descritos pelo autor em suas obras. Este é permeado de cheiro de mar e de flor de laranjeira. A segunda é um trecho que me chamou muita atenção.

O bispo da diocese em conversa com o vice-rei recém chegado: “Falou de Yucatán, onde tinham construído catedrais suntuosas para esconder as pirâmides pagãs sem perceber que os aborígenes acudiam à missa porque debaixo dos altares de prata seus santuários continuavam vivos”.

Lembrei-me dos templos destruídos, das catedrais e do convento construído em cima de uma estrutura inca, no Perú.

A Peste, de Albert Camus.

Tenho empreendido releituras. Muitas vezes são melhores que as primeiras e dão ocasião a outras percepções. No caso d´A Peste, a releitura foi praticamente o primeiro contato com o livro. Há quinze anos, meti-me com Camus, a partir do Estrangeiro, e deleitei-me com tudo quanto a Editora Record publicou dele no Brasil. Nessa empreitada meio acelerada, a Peste não me chamou grande atenção.

Agora, chamou-me bastante a atenção. É facílimo e seguro sugerir sua leitura, como, de resto, a de qualquer livro de Albert Camus. Mas, é difícil falar do livro. Os comentários habituais que vêem nas orelhas dos livros devem ser desculpados porque o comentarista fê-los por obrigação. Alinhou provavelmente os lugares-comuns fartamente repetidos do existencialismo, da alegoria do fascismo e etc.

O melhor comentário sobre Camus parece-me ser a crônica dos ataques que recebeu de Sartre. Ele foi atacado exatamente pelo que tinha de grandioso, lúcido, valente, talentoso e livre. Pelo que não tinha de prosélito religioso de um culto da ação pelos que não agiam. Por não ser um racionalista da razão vazia e triunfante, que nega o absurdo. Transcrevo um trecho, que fala melhor que comentários:

Houve no mundo tantas pestes quanto guerras. E contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. Rieux estava desprevenido, assim como os nossos concidadãos; é necessário compreender assim as duas hesitações. E por isso é preciso compreender, também, que ele estivesse dividido entre a inquietação e a confiança. Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: “Não vai durar muito, seria idiota.” E sem dúvida uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre, e compreendê-la-íamos se não pensássemos sempre em nós. Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram suas precauções. Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis.

A estrela, de Vergílio Ferreira

Primeiro, um agradecimento a Joana, que nos ofereceu, a Olívia e a mim, A estrela, conto de Vergílio Ferreira. O livro, com ilustrações bonitas de Júlio Resende, chegou ontem, vindo da Maia, em Portugal.

Com Vergílio Ferreira tive contato por outra oferta. Foi o Miguel que me ofereceu Para sempre, um esplêndido romance do autor, que eu desconhecia. Tornei-me admirador da prosa dele, a partir de então.

O conto A estrela é um elogio da liberdade e de suas consequências. Pareceu-me estar a ver O estrangeiro, O primeiro homem e a Peste, todos condensados em um único e curto volume de prosa alegórica e rica em metáforas não somente estilísticas.

A lembrança de Camus, ao ler o texto, veio-me direta. A liberdade existe, é absoluta embora contingente –  paradoxo aparente –  e tem suas consequências. Mas, se pode, deve ser tentada. Camus diria, muito mais longamente, que o homem é um rebelde inútil, mas tem que sê-lo. E deve ser rebelde, saber que é e saber que é inútil.

Para provocar os intelectuais engajados e negadores da liberdade, lembro que o menino Pedro, que empalma a estrela, não o faz por qualquer outra razão que sua vontade de fazê-lo. A estrela queria ser empalmada e também queria voltar ao céu! Pedro queria apanhar a estrela e, depois, quis devolvê-la ao céu!

Pedro fez o que tinha que fazer, livre e condicionado, e arriscou-se ao que tinha que acontecer.

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