Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: junho 2011 (Page 3 of 3)

Forró de plástico: lixo musical.

Primeiro, advirto das relativizações entre coisas diferentes. Virou hábito relativizar tudo ou, melhor dizendo, negar a possibilidade de comparações. Estratégia óbvia de quem pretende negar a excelência e dizer que o feio não existe.

Pretende-se dizer que o feio não existe por várias razões e a mais evidente é comercial. O mais interessante, todavia, não são as finalidades, mas os fundamentos desse discurso. A patifaria essencial reside na associação do feio, do comercial, ao popular. Assim, rejeitar o feio seria rejeitar o gosto popular, o gosto das maiorias. É falso, o mau gosto não é questão de democracia política e econômica, é questão feiúra e homogeneização cultural que atinge todas as classes sociais.

O forró é um estilo musical típico do nordeste brasileiro e associado à época das festas de São João. Herdeiro de ritmos populares europeus, marcado em compassos de três tempos. Sob o nome geral, há variantes mais específicas, como o xote, o xaxado, o baião. É música para se dançar a dois, basicamente, exceto pelo xaxado, talvez a variante mais arcaica. Traço essa linha de antiguidade com base no afastamento da dança coletiva, porque a dança a dois é posterior à quadrilha, à dança coletiva de salão.

O forró é conduzido melodica e harmonicamente por sanfona, ou fole, como dizemos comumente. E o ritmo é marcado pelo triângulo e pela zabumba, esta última um tambor grande, de som grave. O triângulo é uma peça de curiosidade, que devia ser estudado na sua arqueologia histórica. Um simples triângulo de ferro, com um dos ângulos descontínuo, que produz um simples tom metálico, mais rápido ou mais lento. Toca-se com uma varinha de ferro e a dificuldade é pegar-se com o indicador e o anular a cada batida da varinha.

O forró é um patrimônio cultural nosso e, como todo patrimônio, um alvo preferencial de apropriações. A mesma coisa que acontece com algo que se torna uma marca: é viável vender qualquer coisa sob o nome dela.

Fazem-se inúmeras porcarias musicais sob o nome de forró, como se fazem com o nome de rock ou de qualquer outra coisa que gerou um nome. Coisas péssimas, que nada têm a ver com forró, são chamadas assim e disseminadas vastamente.

Campina Grande tem tradição de grandes festas de São João. Aqui, são trinta dias de festa, ininterruptos. Diz-se que tudo isso gira em torno ao forró, mas é uma tremenda mentira, porque o forró é, hoje, a parte mais discreta das festas. Ouve-se coisa totalmente diferente e poucos dão-se conta disso, porque, no fundo, dão-se conta de muito pouca coisa.

Neste preciso momento, escuto – e eu escuto mal – o barulho que vem do parque do povo, onde acontecem as festas. É um barulho difuso, repetitivo, agressivo, inaudível e indançável. Não é bárbaro pela simplicidade, nem é selvagem pelo primitivismo. É desagradável e grotesco por obra voluntária e atual que reflete o grotesco do vazio.

Essa merda que se ouve sempre muito alto é binária e repetitiva, mas não como uma linha binária que embriaga como um ritmo puro africano de candomblé. Em troca do alto preço da agressão ela não devolve nem o transe, nem a embriaguês do rodopio. É a pobreza musical em forma pura, o contínuo, não do mantra, mas da estupidez gritante, eloquente.

Outra coisa curiosíssima é que somente se escuta em volumes altíssimos. Sim, altíssimos, muito mais que altos. É como se a matéria provasse a forma, ou seja, que algo tão ruim tivesse que vir acompanhado necessariamente do ruim que é o alto volume. Tem que ser duplamente agressivo, ruim e alto.

O quê há por trás do discurso de Marine Le Pen.

Lê-se que Marine Le Pen aumenta a aposta no discurso xenófobo e contrário à abertura comercial. Ela diz que a França importa desemprego, que acordos de comércio agrícola com a América do Sul destroem o setor na França, que os árabes que fizeram as revoluções cuidem de si, que os países europeus vizinhos abandonem o euro…

Os tais especialistas, que sempre se consultam a respeito, dizem que é um discurso baseado no medo, ou que visa a estimular o medo dos eleitores. Sim, este componente está presente no discurso, que realmente pretende levar os eleitores a escolherem a partir da lógica do medo. Mas, tem mais fatores subjacentes a estas apostas.

Um deles é a sinceridade, o que é dramático, pois revela o nível de ignorância e de autocomplacência existente nas figuras políticas destacadas. Muitas premissas do discurso são simplesmente falsas, o que não deve ser ignorado pela senhora Le Pen, intimamente. Por exemplo, as poucas concessões aos produtos agrícolas sul-americanos são apenas as suficientes para se poder continuar a comprar barato produtos não industrializados, recursos minerais como ferro e óleo.

Aquilo que se chamam ajudas aos países europeus quebrados são empréstimos caros que ainda trazem como garantias as soberanias dos que tomam emprestado. Se Marine Le Pen perguntasse ao BNP Paribas ou à SocGen o que acham da ajuda à Grécia, certamente ouviria apoios incondicionais. Ninguém está dando dinheiro aos outros; estão comprando a preço baixo as vidas, o trabalho, as almas, os governos e os recursos naturais de gregos, portugueses, irlandeses e espanhóis.

O preço de alguns milhares de árabes fugidos dos seus países é muito menor que o preço de pagar a eles por seu petróleo o que eles cobrariam se não fossem ainda colonizados pela França, entre outros.

Mas, seria superficial e talvez ingênuo supor que a senhora Le Pen se opusesse a tudo isso somente por cálculo. Se, por trás de tudo, houvesse apenas racionalidade calculista, não se produziria um discurso credível, não haveria a centelha da crença, a que acende o fogo da vontade de seguir alguém ou uma idéia.

Claro que em alguma conversa privada, com interlocutor íntimo, à vontade, Le Pen é capaz de tratar dessas coisas calmamente, com o lado esquerdo do cérebro a ditar o rumo. É capaz de separar as coisas, de identificar os fatos, de articular uma percepção da realidade que não seja contraditória, de aceitar que a dominação implica mais complexidade que juízos categóricos mal embasados.

A capacidade de perceber o que acima se aponta não é frontalmente contraditória à de fazer o discurso radical que nega o que se sabe. Realidade é algo diferente do que costumamos pensar, é construída passo a passo, segundo condições bastante específicas. Há menos contradições do que gostamos de supor, presos às nossas próprias formas de construção do que chamamos coerência.

As pessoas atropelam-se a si mesmas nesse processo condutor à verossimilhança. Para sermos credivelmente únicos, para formularmos um discurso que contrarie o que somos capazes de perceber isoladamente, construímos realidades em que acreditamos fielmente, sinceramente. Lembro-me agora de algo interessantíssimo que diz Fustel de Coulanges a propósito das crenças: que, no fundo e no início, notadamente, elas são crenças e não cálculo ou projeto ou embuste deliberado. Se, depois, torna-se algo diferente, é obra do tempo…

Quem cria uma onda é levado por ela ou, antes, quem é movido por uma onda reforça-a para continuar a mover-se nela. Ou seja, Marine Le Pen acredita e não acredita no que diz e propõe; na verdade, acredita mais que desacredita, embora suas crenças e propostas sejam contra ela mesma, contra a situação que permite sua existência.

Todas as ameaças que Le Pen vê e acusa são quase inexistências. Existem estrangeiros demasiados e, pior, de traços não caucasianos? Sim, porque é preciso ter uma reserva de mão-de-obra barata, para que o gaulês possa nascer, crescer, estudar alguma coisa que ele acha mais profunda do que é, passar anos sem fazer nada, arrumar enfim o que fazer e ter de quem reclamar.

Existem países querendo vender trigo e carne à França, possivelmente mais baratos que o produzido lá? Claro, e esses países, um pouco menos dominados, hoje, podem também vender essas coisas à China, que as compra a quem tiver excedente. Certamente pretenderão vende-las à França, se a França quiser vender seus trens e aviões a eles.

Percebe-se que o cálculo não está tanto em Le Pen como estava em Strauss-Kahn. Este último era a mentira calculada, a mentira tão verdadeira que tinha coerência lógica, o banqueiro socialista bem-pensado e bem-pensante, o protótipo do planeamento do discurso. Esse, perdeu-se por acidente, o que é sintoma da virada que se anuncia para as verdades, ainda que suicidas.

O que está em jogo para um país como a França – e que se pode extrapolar para outros, como a Alemanha – é o empobrecimento. Não será fácil lidar com ele, mas não é inteligente exagerar um processo que se anuncia muito lento e suave. Realmente, a Europa unida foi uma jogada de gênios, de quem já via a inexorabilidade do processo.

A união europeia foi uma forma bem-pensada de agradar minorias e pôr maiorias, dos países europeus periféricos, a fazerem discretamente o papel que antes era das colônias. Por isso mesmo, foi também um sintoma do início da diminuição econômica relativa da Europa: ela precisou começar a predar-se internamente. Ela reservou mercados para a dupla franco-germânica, que vende e ainda empresta o dinheiro a quem vai comprar seus produtos, ganhando duplamente.

Mas, há quem queira enfurecer os que estão perdendo menos, em meio a tantos que perdem quase tudo, e há grandes chances de sucesso nessa empreitada, porque animada por sinceridade. Ao contrário do que vêm alguns que pensam com a repetição da história, não resultará em guerras internas, embora possa resultar em fascismos. E tampouco resultará em Vichy, porque antes disso a Alemanha se teria quebrado, sem ter de volta o que emprestou e sem ter quem compre o que produz.

Menos drástico que a guerra e talvez que os fascismos, isso pode ser o anúncio de uma bestificação crescente, resultado da sinceridade…

 

 

Gleisi Hoffmann: surpresa é arrogância mais ignorância.

Gleisi Hoffmann, nova Ministra-Chefe da Casa Civil da Presidência da República

 

É muito interessante o que há de arrogância na surpresa. De arrogância e ignorância. Quando alguém surpreende-se, é como se dissesse: como isso, que não estava entre minhas cogitações e hipóteses, aconteceu?

Ou seja, o sujeito circunscreve o mundo ou parte dele àquilo que ele pensa. Ele crê-se possuidor de todas as hipóteses, dono de todas as alternativas.

Então, quando ocorre algo que o fulano não queria ou não previa, eis a surpresa, veu da arrogância e da ignorância.

Ocorre agora com a nomeação da Senadora Gleisi Hoffmann para o cargo de Ministra-Chefe da Casa Civil. Os jornalões brasileiros, grandes porta-vozes da direita golpista nacional, apontam surpresa com a nomeação. Como se a Senadora fosse ninguém, como se sua nomeação estivesse no âmbito do incogitável.

Como, enfim, se tivesse que serem consultados previamente sobre a substituição de um ministro…

Bistecas ao mel e limão, com purê de maças.

As bistecas de porco têm uma grande vantagem: por serem um corte saboroso, não precisam serem temperadas com antecedência. Então, toma-se uma assadeira média, põe-se três bistecas meio grandes e joga-se um pouco de sal e de pimenta-do-reino por cima. Viram-se as bistecas e mais um salzinho e pimenta, apenas para ficarem dos dois lados.

Depois, rega-se com pouco azeite, mel e o sumo de um limão grande, basta. Envolve-se a assadeira em papel aluminizado e põe-se no forno, com fogo bem baixo, por cinquenta minutos.

Tomam-se seis maças pequenas, retiram-se as cascas, cortam-se em pedaços e põe-se para cozinhas com meio copo d´água e uma colher de chá de assúcar, ou seja, com pouco assúcar. Cozinham-se os pedaços de maçã por pouco tempo, mexendo sempre. Cinco minutinhos bastam para as maçãs, que são passadas, então, no liquidificador: eis o purê.

Faz-se um arrozinho branco, trivial. Nesta altura, o purê vai descansar por uns vinte minutos, para esfriar. É o tempo em que o porco está pronto, suculento, banhando em um caldo nem espeso, nem ralo, de gordura dele, mel, limão, misturados.

O purê mistura-se idealmente ao arroz, já nos pratos. A carne não estará doce por conta do mel, mas um pouco agridoce, por conta do sumo do limão e com sal na medida certa.

Isso degusta-se acompanhado de um chileno qualquer de R$ 20,00 a garrafa, do vale central, de uvas merlot, bem fresco.

 

Édipo, Apolo de Delfos e tudo graças a deus.

Há um deus por toda parte, em todas as ações, desde as mais simples; há em tanto e em tudo que nem parece único como dizem dele por aí. Está nos cumprimentos e nas fórmulas habituais do discurso: graças a deus.

Está nos carros, em frases na maioria sem sentido e algumas realmente hilárias: foi deus que me deu; propriedade de deus; deus é fiel; se deus me deu quem tirará – esta, ateísmo puro.

Você conversa com um sujeito e prepara-se para escutar um rosário de dádivas divinas. Tudo será se deus quiser. De forma tal que deve levar a um conflito de deuses imenso.

Deus dará prendas a todos e respostas a tudo! Curioso, lembrava-me de Édipo.

Preocupado com a peste que se abatia em Tebas, Édipo fica sabendo que devia-se a uma conspurcação.

Manda perguntar a Apolo de Delfos o que causou a conspurcação: ele diz que foi um assassinato. Pergunta mais uma vez, de quem: ele diz, de Laio.

A pergunta leva a outra: quem assassinou? O deus não responde mais…

Édipo resigna-se e diz que não se pode forçar a verdade dos deuses.

A lição de Édipo perdeu-se.

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