Lê-se que Marine Le Pen aumenta a aposta no discurso xenófobo e contrário à abertura comercial. Ela diz que a França importa desemprego, que acordos de comércio agrícola com a América do Sul destroem o setor na França, que os árabes que fizeram as revoluções cuidem de si, que os países europeus vizinhos abandonem o euro…

Os tais especialistas, que sempre se consultam a respeito, dizem que é um discurso baseado no medo, ou que visa a estimular o medo dos eleitores. Sim, este componente está presente no discurso, que realmente pretende levar os eleitores a escolherem a partir da lógica do medo. Mas, tem mais fatores subjacentes a estas apostas.

Um deles é a sinceridade, o que é dramático, pois revela o nível de ignorância e de autocomplacência existente nas figuras políticas destacadas. Muitas premissas do discurso são simplesmente falsas, o que não deve ser ignorado pela senhora Le Pen, intimamente. Por exemplo, as poucas concessões aos produtos agrícolas sul-americanos são apenas as suficientes para se poder continuar a comprar barato produtos não industrializados, recursos minerais como ferro e óleo.

Aquilo que se chamam ajudas aos países europeus quebrados são empréstimos caros que ainda trazem como garantias as soberanias dos que tomam emprestado. Se Marine Le Pen perguntasse ao BNP Paribas ou à SocGen o que acham da ajuda à Grécia, certamente ouviria apoios incondicionais. Ninguém está dando dinheiro aos outros; estão comprando a preço baixo as vidas, o trabalho, as almas, os governos e os recursos naturais de gregos, portugueses, irlandeses e espanhóis.

O preço de alguns milhares de árabes fugidos dos seus países é muito menor que o preço de pagar a eles por seu petróleo o que eles cobrariam se não fossem ainda colonizados pela França, entre outros.

Mas, seria superficial e talvez ingênuo supor que a senhora Le Pen se opusesse a tudo isso somente por cálculo. Se, por trás de tudo, houvesse apenas racionalidade calculista, não se produziria um discurso credível, não haveria a centelha da crença, a que acende o fogo da vontade de seguir alguém ou uma idéia.

Claro que em alguma conversa privada, com interlocutor íntimo, à vontade, Le Pen é capaz de tratar dessas coisas calmamente, com o lado esquerdo do cérebro a ditar o rumo. É capaz de separar as coisas, de identificar os fatos, de articular uma percepção da realidade que não seja contraditória, de aceitar que a dominação implica mais complexidade que juízos categóricos mal embasados.

A capacidade de perceber o que acima se aponta não é frontalmente contraditória à de fazer o discurso radical que nega o que se sabe. Realidade é algo diferente do que costumamos pensar, é construída passo a passo, segundo condições bastante específicas. Há menos contradições do que gostamos de supor, presos às nossas próprias formas de construção do que chamamos coerência.

As pessoas atropelam-se a si mesmas nesse processo condutor à verossimilhança. Para sermos credivelmente únicos, para formularmos um discurso que contrarie o que somos capazes de perceber isoladamente, construímos realidades em que acreditamos fielmente, sinceramente. Lembro-me agora de algo interessantíssimo que diz Fustel de Coulanges a propósito das crenças: que, no fundo e no início, notadamente, elas são crenças e não cálculo ou projeto ou embuste deliberado. Se, depois, torna-se algo diferente, é obra do tempo…

Quem cria uma onda é levado por ela ou, antes, quem é movido por uma onda reforça-a para continuar a mover-se nela. Ou seja, Marine Le Pen acredita e não acredita no que diz e propõe; na verdade, acredita mais que desacredita, embora suas crenças e propostas sejam contra ela mesma, contra a situação que permite sua existência.

Todas as ameaças que Le Pen vê e acusa são quase inexistências. Existem estrangeiros demasiados e, pior, de traços não caucasianos? Sim, porque é preciso ter uma reserva de mão-de-obra barata, para que o gaulês possa nascer, crescer, estudar alguma coisa que ele acha mais profunda do que é, passar anos sem fazer nada, arrumar enfim o que fazer e ter de quem reclamar.

Existem países querendo vender trigo e carne à França, possivelmente mais baratos que o produzido lá? Claro, e esses países, um pouco menos dominados, hoje, podem também vender essas coisas à China, que as compra a quem tiver excedente. Certamente pretenderão vende-las à França, se a França quiser vender seus trens e aviões a eles.

Percebe-se que o cálculo não está tanto em Le Pen como estava em Strauss-Kahn. Este último era a mentira calculada, a mentira tão verdadeira que tinha coerência lógica, o banqueiro socialista bem-pensado e bem-pensante, o protótipo do planeamento do discurso. Esse, perdeu-se por acidente, o que é sintoma da virada que se anuncia para as verdades, ainda que suicidas.

O que está em jogo para um país como a França – e que se pode extrapolar para outros, como a Alemanha – é o empobrecimento. Não será fácil lidar com ele, mas não é inteligente exagerar um processo que se anuncia muito lento e suave. Realmente, a Europa unida foi uma jogada de gênios, de quem já via a inexorabilidade do processo.

A união europeia foi uma forma bem-pensada de agradar minorias e pôr maiorias, dos países europeus periféricos, a fazerem discretamente o papel que antes era das colônias. Por isso mesmo, foi também um sintoma do início da diminuição econômica relativa da Europa: ela precisou começar a predar-se internamente. Ela reservou mercados para a dupla franco-germânica, que vende e ainda empresta o dinheiro a quem vai comprar seus produtos, ganhando duplamente.

Mas, há quem queira enfurecer os que estão perdendo menos, em meio a tantos que perdem quase tudo, e há grandes chances de sucesso nessa empreitada, porque animada por sinceridade. Ao contrário do que vêm alguns que pensam com a repetição da história, não resultará em guerras internas, embora possa resultar em fascismos. E tampouco resultará em Vichy, porque antes disso a Alemanha se teria quebrado, sem ter de volta o que emprestou e sem ter quem compre o que produz.

Menos drástico que a guerra e talvez que os fascismos, isso pode ser o anúncio de uma bestificação crescente, resultado da sinceridade…