Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Zorba, Kazantzakis e a Páscoa.

Não temo nada. Não espero nada. Sou livre. Inscrição na lápide de Kazantzakis.

Afinal, reli Zorba, de Nikos Kazantzakis. Nesse caso, minha memória estava já meio puída e as lembranças não foram tão precisas. Foi próxima a uma primeira leitura, com todas as vantagens e desvantagens que dai decorrem. Uma terceira ocasião será quase a segunda, há tempo.

Não é possível aprisionar uma obra ou o seu autor nas circunstâncias temporais, geográficas e culturais que os rodeiam. Tampouco é possível vê-los de maneira puramente abstrata e desligados totalmente dessas circunstâncias. Ora, Kazantzakis era grego, cretense, pariu Zorba em 1943, em sua lingua repleta de coloquialidades cretenses. Fê-lo no período da segunda guerra, após a dura retomada de partes da Grécia dos turcos.

O autor viu-se excomungado pela Igreja Ortodoxa Grega em função de A última tentação de Cristo. A excomunhão é muito reveladora de seu âmbito de pensamento, dele e da Igreja Ortodoxa. Ela faz sentido inserida em um movimento que, iniciado em Nicéia, passa por Calcedônia e permeia a história da ortodoxia: a preocupação extrema e constante com as naturezas do Galileu. Assim, Kazantzakis não escapou à preocupação ortodoxa nesse seu A última tentação. Zorba tem ligações com essa fonte, até porque liberdade e contingência podem ser vistas a partir desse prisma.

O macedônio Zorba coloca a liberdade e a contingência fora da apreensão intelectual e não se lança como exemplo ou proposta de compreensão. Não é subversivo nem conformista, ele é ele e sua vida de cada instante, inserido nas identificações que estão à volta.

A personagem é um viajante, embora não propriamente um aventureiro clássico, e os seus destinos confirmam um forte elemento de identidade cultural entre os lugares visitados. Não se deve desprezar que os países onde esteve, a Rússia, a Macedônia, terra natal, Creta, a Sérvia, a Bulgária têm um ponto em comum, além do alfabeto: todos são ortodoxos. Mas ele não é minimamente religioso!

Zorba encontra seu patrão no Pireu, porto de Atenas. Simplesmente pede para sentar-se ao seu lado, no café, e para levá-lo consigo. Não sabe para onde o outro vai, mas quer ir. O destino do patrão é uma mina de carvão, arrendada em Creta. Mais que explora-la, ele vai seguindo os rumos de um intelectual de posses que busca um local diferente para ler seus livros. Essa figura do patrão lembra-me um pouco Ivan Karamazov.

As passagens em que Zorba narra sua comunicação com o colega russo – pois foi aos confins do Cáucaso – ao final do dia, por meio da dança, são belíssimas. Não se entendiam porque Zorba não era fluente em russo e o russo não era em grego. Combinam, então, de tentar se expressar até o limite da linguagem e quando não fosse mais possível dizer por palavras diriam por dança. E compreendem-se perfeitamente nas danças, contando o que tinham feito durante o dia.

A Páscoa é a maior celebração da ortodoxia e ela emoldura uma das passagens mais dramáticas do livro: o assassinato da viúva da aldeia cretense em que se instalam Zorba e o patrão. Essa criatura perturbava as cabeças dos homens a tal ponto que um deles, um jovem, mata-se lançando-se ao mar, por ter sido rejeitado. Era filho de um principal da vila e todos voltam-se contra a viúva.

Na celebração pascoal, as pessoas cantam pela vila e cumprimentam-se dizendo: o Cristo ressuscitou. Dança-se. Um jovem pastor, instigado pela dança e pelas pessoas anima-se a matar a viúva. As mulheres clamam: degole-a, como a um carneiro. O pai do jovem morto põe a faca na mão do pastor: faça o que deve fazer. Ele investe para a viúva, em frente à igreja e Zorba intervem. O velho macedônio, com um soco, põe o jovem pastor no chão. Mas, o pai do rejeitado toma da faca e decepa a cabeça da mulher, em frente à igreja, em plena celebração da Páscoa.

Tinha que acontecer, diz Zorba, não conformado, mas sabedor que aconteceria. Tem-se que morrer para ressuscitar, talvez seja o sentido, afinal. Não adoto, nem proponho uma interpretação religiosa da obra, assim como não creio que Kazantzakis propusesse uma tal interpretação da vida. Apenas acho que ela, a obra, é um tempo, uma cultura, um espaço e pessoas presas por esses elementos. Zorba é livre, mas não desconhece a que essa liberdade está circunscrita, pelo menos ao tempo.

2 Comments

  1. Germano

    Desse autor eu li o Pobre de Deus, sobre São Francisco. Um livro muito bom. (Aliás, assim como o filme “Irmão Sol, Irmã Lua”, de Zefirelli, deve ter levado muita gente aos senimários). Assisti também ao filme “A Última Tentação de Cristo”, que gostei muito também. Os cretenses ficaram conhecidos pela ferocidade com a qual combatiam a ocupação alemã. Assim como os gauleses animados pela poção de Panoramix, eram irredutíveis e não faziam prisioneiros.
    São Francisco… que tema poderoso, hein??

  2. andrei barros correia

    Germano,

    Kazantzakis põe a personagem Zorba como um veterano dos combates cretenses contra a ocupação turca. Ferozes. Deviam ter no vinho e nas azeitonas a sua Poção.

    Essas leituras despertam minha loucura de continuar no mesmo autor. Procuro, nos sebos virtuais O Cristo Recrucificado e A última tentação. O filme, tenho-no aqui ao lado e não o verei antes de ler o livro. Ele pode esperar.

    Talvez tenham que esperar também Gide e Os subterrâneos do Vaticano e Panait Istrati e Kyra Kyralina. Mas, deve haver tempo para todos. Se não houver, não houve.

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