O recurso ao disfarce, à mentira e à hipocrisia deve-se a quê? A primeira inclinação é responder que se deve à busca de poder. Realmente, a profusão de teorias sobre a razão de Estado e os meios de excepção parecem confirmar a resposta.

Esses comportamentos têm no poder algumas de suas explicações, mas não todas. Assumindo-se que são instrumentos, talvez deva-se modificar o enunciado para indagar a quê visam e, não a que se devem.

Pois há diferenças nem tão sutis entre serem consequências e serem meios de obtenção e manutenção do poder. Haverá ainda maior diferença, e verdadeira confusão, se aceitarmos que podem ser causas eficientes!

Ou seja, há três possibilidades, seguindo-se esse raciocínio: o poder gera o disfarce, a mentira e a hipocrisia; o poder implica essas condutas; ou o poder é gerado por essas condutas.

Todavia, se isolarmos as proposições e as analisarmos, podemos chegar à desconcertante conclusão de que não existem as relações entre as condutas e o poder. Pelo menos, de que não são relações necessárias.

Por exemplo, com relação à proposição de que o poder gera as condutas pode-se perceber que estas, muitas vezes não são engendradas pelo poder, mas por outras causas, sendo a vergonha uma delas. E, além disso, há poderes que não ensejam o recurso ao disfarce, à mentira e à hipocrisia, mas ao fanatismo em que se acredita sinceramente.

Estas condutas também não são os únicos instrumentos para o exercício do poder e sua manutenção. Há poderes que se fundamentam na mais desconcertante sinceridade e adesão ao que se vê claramente. Basta lembrar, como exemplo, da influência que um místico pode desempenhar em admiradores, ainda que seja um místico efetivamente recluso.

Por fim, há poderes que não nascem da prática da mentira, do disfarce e da hipocrisia.

Para mim, o que fica bastante claro, a partir dessa análise rapidíssima, é que as relações entre duas coisas, sendo ambas humanas, são muito mais profundas que simples operações singulares de mão única. Dois termos de uma relação entre condutas e fatos humanos podem relacionar-se ao mesmo tempo como causas, efeitos e meios.

Essa alteridade – ou confusão mesmo – não invalida a relação, antes a confirma. O que fica invalidado é o estabelecimento de causalidades únicas e necessárias.  Pois não há este comportamento ou fato humano que se deva ou que cause – isoladamente – outro.

Alguém mais dogmático diria que a invalidação da causalidade exclusiva significa que o recurso ao disfarce, à mentira e à hipocrisia apontam que essas condutas são inclinações humanas. Sim, isto é óbvio, mas convém lembrar que são inclinações que não compõem o acervo comportamental de todos os humanos ou, pelo menos, não estão presentes em todos os momentos.

Dizer que algo é humano é o mesmo que afirmar a pedridade da pedra, ou seja, é o princípio de identidade. A questão não passa pela identificação entre o substantivo e o adjetivo a ele referido pois, no limite, são iguais.

A questão passa pela potencialidade do humano, o que não deve ser confundido com liberdade, assim entendida no sentido moral vulgar. O disfarce, a mentira e a hipocrisia são criações, ou seja, são não-seres. Nesse sentido, é útil pensar em arte, que é criação e não ser para ser.

Claro – e esta advertência nunca será demasiada – que não identifico essas condutas à arte, nem faço apologia delas. Convoco a percepção da natureza de uma coisa humana – sua forma de fazer-se – para fornecer uma comparação apta a fazer perceber a origem de outros produtos humanos.

Acontece que o não-ser da conduta humana é uma redução potencial do ser ou, se se preferir, a aceitação do ser-se menos do que se é. Para que se distinga claramente, deve-se ter em vista que o não-ser da arte é uma criação. E, para que as objeções de almanaque não fiquem felizes, o caso do ator não é de conduta, mas de produção de algo diferente dele.

A conduta falsificada é inumana sem ser divina. Ter fome e dizer que não se a tem, é humano e social. Ter fome, dizer que não a tem e acusar quem tem e o diz de mentiroso é inumano, é falso.

O êxito dessas falsificações como instrumentos de poder dá a imagem da pequeneza do poder.