Dissemina-se qual uma praga de gafanhotos e com os mesmos efeitos destrutivos a mania de tudo agradecer e imputar a um Deus. Falo em um Deus, assim no singular e com letra maiúscula, porque são tantos grupos a reivindicar deuses próprios como suporte de seus códigos de polícia moral que deve haver vários deles mesmo. E uso a maisúscula em respeito ao único, se houver, tão vilipendiado pelo uso indiscriminado e vulgar dessa palavra.
O problema de agradecer-se a Deus qualquer coisa é que isso é uma racionalização. E, no campo da razão, as coisas agradecíveis a Deus são, tanto prováveis, quanto improváveis.
O outro problema é que consiste em falta de sinceridade galopante. Se a proposição de Job faz sentido, ou seja, que Deus dá e retira e não está em causa indagar das razões, as proposições das pessoas são mentiras.
Vêem-se, em grande número de carros, de comentários, de quase tudo, coisas do tipo: foi Deus que me deu, graças a Deus tenho isso ou aquilo ou, ainda, esse coisa pertence a Deus – esta geralmente em automóveis.
Acontece que não correspondem essas afirmativas ao que os afirmadores têm nos seus íntimos. Se o sujeito perde o carro que dizia ter por doação divina ou ainda que dizia ser de Deus – incoerência suprema – fica com raiva e não se resigna como deveria se fosse o caso realmente de ganhar-se ou perder-se algo por vontade de Deus.
Ora, se alguém diz que tem algo porque o ganhou de Deus, deve assumir que o pode perder por desígnio desse mesmo Deus! E se algo perde-se porque Deus o quis retirar, não é dado ao depositário temporário insurgir-se contra isso, ou ficar com raiva, ou buscar indenização, ou matar, ou recorrer ao seguro, coisas que sempre ocorrem.
Se essas proposições têm a pretensão de serem racionalizações válidas, seus proponentes devem dizer que ganharam ou perderam alguma coisa graças a Deus. E dizer verdadeiramente, ou seja, com uma prática coerente com o dito.
Racionalização muito mais válida e ademais sincera é retirar as contingências materiais da vida da esfera do que é dado ou retirado por Deus. Reservar a esse Deus o que pode ser divino, que não inclui a distribuição de presentinhos aos funcionários de alguma agência de publicidade que usa seu nome.
É deixar de crer que um Deus pode ser agradado por discursos advogadescos e frases incoerentes, como se busca seduzir um juiz para ganhar uma indenização. Homenagens e agradecimentos mentirosos e efusivos fazem-se às pessoas, exatamente porque só se fazem entre iguais.
Ou vão assumir que esse Deus de que tanto falam, no fundo reputam-no uma pessoa qualquer?
Ótima análise!
Fez-me lembrar de outros tantos adesivos facilmente encontrados em carros: “O que Deus uniu não separe o homem!”
Nas primeiras oportunidades que os vi, a intenção imediata era arremessar uma pedra. Mas, como ainda controlo parte de minha selvageria – e conheço as dimensões de minha covardia – a insurreição foi interna.
A pretensão não se sacia com a materialização divina no ato de unir. A união deve ser eterna! Vamos celebrar a infelicidade, as violências de toda sorte! Afinal, deve ser coisa de Deus mesmo…
No primeiro capitulo de “A Ética” de Espinoza é colocado o problema do conflito entre os atributos da onipotencia e da onisciencia de Deus não poderem ser exercidos ao mesmo tempo.
Esse conflito leva a que a concessão da graça não possa ser atendida se isso significar a mudança dos planos de Deus para o futuro de algum evento “já predeterminado”.
Buda foi bastante claro na diretiva para que os seus discípulos “não fizessem milagres”, e também não incentivou que se pedisse a graça.
Para mim, a pratica e a confiança no pedido da graça é uma consequencia do nosso modelo empirico absolutamente terreno de raciocinio do dia a dia, da dispensa de favores e de serviços contra alguma forma de pagamento, e também do nosso condicionamento de tentar agradar a nossa primeira autoridade reconhecida (o olhar desagradado da nossa mãe)com subserviencia e adulação.
Acho que hoje se pede até pouco; em outros tempos se adquiria um certificado de indulgencia planaria do Vaticano, ou seja a graça total contra o maior dos males, a danação eterna.
Quando eu era criança no interior, um cidadão da cidade apareceu com um certificado do Vaticano, supostamente autentico, de compra de uma indulgencia (não me lembro dos direitos atribuidos ao adquirente no tal certificado), mas a meninada comentava que o respeitado dono do certificado do Vaticano “poderia até morrer na zona que iria para o céu”.
Essa da indulgência garantidora do céu até se o indultado morresse na zona é de merecer um conto. Fica a sugestão.
… é um assunto a se pensar; oportunamente podería-se abordar também os métodos adotados pelo clero católico nos anos 1950 e 1960 para bem se inteirar do que se fazia, onde se fazia, como se fazia… e com quem se fazia as transgressões puníveis com a danação eterna…. e até com menores penas.
Reconhecedor das suas bem melhores habilidades de escritor, posso lhe fornecer informações da minha memória sobre “aqueles tempos” e você escreve o relato com mais isenção sobre uma das mil possibilidades para o que foi a verdadeira história das zonas no interior, das conversas nos confessionarios, das informações privilegiadas “vazadas” pelas putas, e da vida secreta de notáveis (até atuais ) da política e da sociedade, destacados nos jornais dos dias de hoje e em bustos de cimento ou de bronze em praças de cidades do interior.
Está lançada a minha proposta…