Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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Os deuses morrem de rir.

A proposta mais interessante que já vi, para interpretação do conhecido postulado de Nietzsche, é de Deleuze. Ele diz que os deuses morrem de rir quando um deles afirma-se único.

Poucas coisas fazem rir mais que a afirmação de desigualdade a partir de aspectos que, ao contrário, embasam precisamente a igualdade. Se fosse um deus, eu riria muito também, se escutasse tal reivindicação.

A necessidade de afirmação – em termos que são mesmo políticos – de monoteísmo é paradoxal. O um não precisa afirmar-se senão em face ao dois. Afirmando-se contra o dois ele o reconhece, porque seria ocioso fazê-lo contra o nada. Ou seja, é proposta tendente a girar em círculos.

A única saída para o um, se existisse, era ser absolutamente positivo, ou seja, afirmativo de nada. Ser negativo significa admitir os outros – ao menos como referências potencialmente existentes – e implica necessariamente o tempo, duas coisas com que o um absoluto é teoricamente incompatível.

Lembro-me bastante de um precioso trecho de Ortega e Gasset sobre a simples negação ou contrariedade. Ele diz que afirmar-se anti – Pedro não passa de afirmar-se favorável a um momento anterior à existência de Pedro, ou seja, não é uma proposta, senão um anseio de regresso.

Daí, se um teísmo que se quer único afirma-se contra outro – ainda que tenha o cuidado retórico de dizer do outro que é falso – simplesmente está a propor o retorno ao momento em que o outro não havia, proposição que não tem qualquer relação com a unicidade ou pluralidade.

No fundo, essa necessidade de afirmar-se transparece a única coisa verdadeira que existe; coisa que é mais forte que a busca por afirmações coerentes e não paradoxais. Coisa que é mais forte que as tentativas do paradoxo esconder-se pelo esforço de quantos catedráticos de Bolonha ou Paris haja.

Não se trata aqui de elogiar essa coisa, mas de tentar deixá-la evidente pois, na verdade, é desejável que ela não se manifeste tanto e que se manifeste menos não por conta de racionalizações profundamente irracionais. Isso é o desejo de guerra, a unica realidade, ao fim e ao cabo. Um significado quase sem significante.

Convém não tentar aprisionar esse desejo com racionalizações superficiais e desonestas, extamente para que o âmbito da organização pelo racional possa ser plenamente desenvolvido, para que a potência racional torne-se em ato no seu espaço próprio, que não é negativo.

Apenas para inserir um fato – que não precisa ser visto sob a perspectiva acima, necessariamente – digo que o centro de Campina Grande tem visto um grupo de dez ou quinze ciganas, todas coerentemente trajadas. Nada tenho, contra ou a favor de ciganas, apenas não quero conversa com elas.

Não vou parar para escutar alguma coisa sobre as linhas da minha mão, mesmo que surja uma disposta a ler a esquerda, a que não veicula qualquer mensagem, estranhamente. Também não gosto do detestável hábito delas de pegarem nas pessoas; de porem as mãos nas pessoas, de se dirigirem a elas com um contato físico.

Mas, não vou parar em frente das ciganas para lhes dirigir insultos ou questões. Elas que se fiquem onde estão, que não fazem mal a ninguém.

Pois bem, outro dia desses, um evangélico – desses tão radicais quanto estúpidos – prestou-se a fazer um discurso repleto de insultos e asneiras, aos berros, de uma forma tal que constrangeu as ciganas, o que se sabe não ser coisa fácil. Imagine-se a violência desse discurso.

No fundo, ele reclama seu público, pois não faz mais que ler mãos, também. Reclama por conta da mistura louca da racionalização que é seu disfarce e das erupções da verdade, a ponto e ponto, que é seu desejo de matar.

Deus é castelhano!

Severiano Miranda, meu caro, um pequeno exercício de lógica formal, levado a cabo em conversa com um interlocutor sagaz, Gustavo Farias Alves, levou-me a uma conclusão que deve te interessar: deus é castelhano!

É o seguinte: de acordo com a esposa de Kaká, deus deu dinheiro ao Real Madri para contratar o futebolista bom-moço.

Acontece que Kaká dá sinais de decadência futebolística e, a despeito do alto preço de sua contratação, com dinheiro divino, tem servido apenas para enfeitar o banco de reservas madridista.

Parece que deus fez um mau negócio, porque não é razoável supor que tenha feito má escolha ou mesmo qualquer escolha. Nisso, temos que concluir que a esposa de Kaká equivoca-se, pura e simplesmente.

Ora, a única saída é perceber que, na verdade, deus deu o dinheiro ao Real Madri para que gastasse como melhor lhe aprouvesse. Ou seja, deus favorece o Real Madri em troco de nada! Logo, é castelhano. Não é fantástico?

B Fachada, uma pequena reação aristocrática. Ele parece reinvindicar Hermes.

Alheio a tudo que não conheço – o que é um truísmo purinho – obviamente não sabia quem era B Fachada.

Olívia voltou de Portugal e trouxe-me a única coisa que me podia agradar, a mim que não queria e não quero nada trazido de viagens, porque fico sem conseguir disfarçar minha indiferença. Mas, Olívia é inteligente e trouxe-me simplesmente o Público de ontem, em papel. Trouxe-me ainda outras coisas boas, como portadora, manifestações de uma cordialidade e de uma inteligência que me fazem falta: livros bons mandados por Miguel, mas essa é outra estória.

O jornal de sexta-feira vem com um razoável caderno cultural, um que acho ruim e complicado ler nas páginas da internet. Nada como papel, convenço-me cada vez mais. No papel do caderno estava uma reportagem com entrevista, sobre Deus, Pátria e Família, música de vinte minutos de B Fachada.  Evidentemente que é uma provocação, e principalmente com aqueles que aparentemente não são os destinatários dela. Sim, porque o destinatário aparentemente natural não verá a coisa senão vulgarmente, como reedição de um jogo já jogado.

O cara, o tal B Fachada, apresenta um pouco de reação aristocrática, que se percebe tanto na música, quanto na letra. A música tem frases melódicas lineares, simples, agradáveis pareceram-me. Tem fragmentações harmônicas bem marcadas, porque são vários pequenos andamentos nitidamente separados. E não recorre à batida, ou seja, ao ritmismo marcante.

A letra é a recusa do meio, do meio-termo, do meio bom, do meio ruim, do bonzinho e ruinzinho. Da intermediação pelos profissionais medíocres da representação política. Gente meia, de acordo a meio a meio, de precaução, de cuidados, de está ruim, mas, áh, podia estar pior.

Não à glória nacional
Não á força não letal
Já não canto sobre amores
Nem me perco no recheio
É que em terra de amadores
Basta ter o pau a meio

Isto, como se vê no verso acima, se não for um embuste do autor, é abordagem aristocrática. Desprezo pelo vulgo, afirmação de que entre amadores basta ter o pau a meio, não pode ser mais claro. Assim sendo, vai ser catalogado como alguma vanguarda, ser escutado muito por pouco tempo e percebido por quase ninguém.

Ele parece sair do binômio Apolo e Dioniso. Não parece estar a reclamar do predomínio apolíneo medíocre. Não clama propriamente por a entrada em cena de Dioniso, para ocupar o espaço e contrabalançar Apolo em sua versão vulgar. Ele parece convocar Hermes, o que resulta muito diferente…

Sim, outro característico muito aristocrático: está disponível gratuitamente aqui:

http://mbarimusica.com/download.aspx?file=B_Fachada_Deus_Patria_e_Familia.zip

 

Graças a Deus por tudo: heresia ou insinceridade?

Dissemina-se qual uma praga de gafanhotos e com os mesmos efeitos destrutivos a mania de tudo agradecer e imputar a um Deus. Falo em um Deus, assim no singular e com letra maiúscula, porque são tantos grupos a reivindicar deuses próprios como suporte de seus códigos de polícia moral que deve haver vários deles mesmo. E uso a maisúscula em respeito ao único, se houver, tão vilipendiado pelo uso indiscriminado e vulgar dessa palavra.

O problema de agradecer-se a Deus qualquer coisa é que isso é uma racionalização. E, no campo da razão, as coisas agradecíveis a Deus são, tanto prováveis, quanto improváveis.

O outro problema é que consiste em falta de sinceridade galopante. Se a proposição de Job faz sentido, ou seja, que Deus dá e retira e não está em causa indagar das razões, as proposições das pessoas são mentiras.

Vêem-se, em grande número de carros, de comentários, de quase tudo, coisas do tipo: foi Deus que me deu, graças a Deus tenho isso ou aquilo ou, ainda, esse coisa pertence a Deus – esta geralmente em automóveis.

Acontece que não correspondem essas afirmativas ao que os afirmadores têm nos seus íntimos. Se o sujeito perde o carro que dizia ter por doação divina ou ainda que dizia ser de Deus – incoerência suprema – fica com raiva e não se resigna como deveria se fosse o caso realmente de ganhar-se ou perder-se algo por vontade de Deus.

Ora, se alguém diz que tem algo porque o ganhou de Deus, deve assumir que o pode perder por desígnio desse mesmo Deus! E se algo perde-se porque Deus o quis retirar, não é dado ao depositário temporário insurgir-se contra isso, ou ficar com raiva, ou buscar indenização, ou matar, ou recorrer ao seguro, coisas que sempre ocorrem.

Se essas proposições têm a pretensão de serem racionalizações válidas, seus proponentes devem dizer que ganharam ou perderam alguma coisa graças a Deus. E dizer verdadeiramente, ou seja, com uma prática coerente com o dito.

Racionalização muito mais válida e ademais sincera é retirar as contingências materiais da vida da esfera do que é dado ou retirado por Deus. Reservar a esse Deus o que pode ser divino, que não inclui a distribuição de presentinhos aos funcionários de alguma agência de publicidade que usa seu nome.

É deixar de crer que um Deus pode ser agradado por discursos advogadescos e frases incoerentes, como se busca seduzir um juiz para ganhar uma indenização. Homenagens e agradecimentos mentirosos e efusivos fazem-se às pessoas, exatamente porque só se fazem entre iguais.

Ou vão assumir que esse Deus de que tanto falam, no fundo reputam-no uma pessoa qualquer?