O serviço público é aquilo que o Estado, direta ou por interposta empresa privada, obriga-se a oferecer às populações. Sua finalidade geral é prover alguma utilidade aos utilizadores, na medida em que as leis a previram. Pode consistir em um serviço de resolução de conflitos – o que se chama com suprema arrogância justiça – em um serviço de limpeza urbana, em um serviço de prestação de apoios sociais ao mais necessidades. Pode, enfim, ser de várias maneiras, desde que vise a uma finalidade pública.

Uma parte significativa dos serviços públicos é prestada diretamente pelo Estado que, para tanto, mantém quadros de funcionários a seu soldo e organizados em vários compartimentos especializados, consoante o tipo de serviço que devem prestar. Como qualquer atividade, o serviço público tira proveitos e ganha eficiência se adotar métodos e rotinas de organização do trabalho.

Esses métodos e rotinas são meios de atingir os fins mais amplamente, com menos dispêndio. Não é pouco o que os meios significam como instrumentos que são. Todavia, qualquer que seja sua importância, não são mais que instrumentos e assim não se confundem com as finalidades.

A confusão dos meios com os fins, elevando-se os primeiros à categoria dos segundos, é uma deformação. É algo muito comum e, por isso mesmo, já tornou-se inclusive motivo de piadas. O que enseja a piada é a autoreferência que a glorificação dos meios no serviço público revela. Não todos, mas muitos ocupantes de funções públicas parecem crer que essas funções existem para que eles as ocupem, não porque deve-se oferecer um serviço.

Daí para o excesso fetichista são poucos passos. Para regressar é que a coisa torna-se mais complicada, porque o vício tem raízes de árvore grande, daquelas que só as tempestades arrancam do solo.

Se fosse o caso de estabelecer uma taxonomia da deformação, eu diria que o fetichismo é o gênero em que se insere o modismo. O primeiro, categoria mais ampla e perene, alimentada pelo segundo, alternante por definição.

O fetichismo é uma mania acrítica, laborada no lado direito do cérebro. O modismo fornece-lhe alguns elementos compreensíveis a partir da linguagem, dá-lhe a sensação de racionalização e a oportunidade de defender o fetichismo como algo perfeitamente natural e justificável.

O modismo no serviço público brasileiro são os métodos de controles burocráticos. Controle de atividades meio, por superposições de outras atividades meio, em uma cadeia longa e axaustiva que seria perfeitamente funcional se não houvesse o detalhe, que não é pequeno, nem detalhe, de estar tudo teoricamente orientado para algum fim.

Assim, a função pública enche-se de sistemas e subsistemas de controle, com a necessidade de vastas alimentações de dados, com o preenchimento de planilhas disso-e-daquilo, com intermináveis comunicações cruzadas entre funcionários cegos pelo controle e produção de informações que, ao fim e ao cabo, nada têm a ver com as finalidades do serviço.

É relativamente simples perceber que a crença no controle total é tão pueril quanto no moto contínuo. São ambos impossíveis, por razões diversas é claro. O controle total é impossível porque há níveis elevadíssimos de indeterminismo na vida. Quanto ao moto contínuo, abstenho-me de apontar as razões de sua impossibilidade, por insuficiência intelectual.

Não é que acredite na adoção do fetichismo burocrático como uma opção consciente e maliciosa pelo impossível. Esses elementos volitivos apresentam-se depois que a coisa já está bem estabelecida, quando se percebe alguma utilidade na autoreferência que confere ao funcionário aquele ar de importante manejador de sistemas e planilhas.

O culto sacramental dos meios apresenta inúmeras vertentes, conforme cada tipo de serviço e quem os presta. Na verdade, há meios cuja adoção é quase impositiva, com as evoluções técnicas. Todavia, nem por isso são alguma redenção absoluta, nem são recomendados para toda e qualquer situação e finalidade desejada.

Por exemplo, constata-se que o modismo atualmente mais forte no judiciário brasileiro é o processo informatizado, ou seja, sem papéis. Tudo bem que se façam processos que ficam armazenados em computadores e que se leiam nas telas, ainda são processos. Dependem de advogados a argumentarem e de juízes a decidirem.

Servem muito bem a questões simples, repetitivas, de ligeira leitura. Evitam assim que se armazenem montanhas de papéis que dizem respeito praticamente às mesmas coisas e que quase ninguém se detinha mesmo a ler. Mas, ler no computador, quando se tem que fazê-lo de verdade, detidamente, é muito pior que ler no papel. É um fato, não alguma opinião.

Se a digitalização de processos torna-se a ampla e geral regra, duas coisas devem suceder, provavelmente: passa-se a tratar de coisas mais importantes de maneira mais e mais ligeira, lendo aqui e alí, de passagem, com a indesejável leviandade que inspirará as decisões. Ou, por outro lado, o sujeito que se deparar com o caso mais complicado simplesmente imprimirá todo o processo para o poder analisar detidamente. Neste segundo caso, a qualidade em princípio mantém-se, mas a finalidade da digitalização revelou-se nenhuma!

O que poderia ser a adoção de uma possibilidade técnica, adequada a casos particulares, como mais um meio à disposição, é celebrado como o principal passo antes de atingir-se o nirvana judiciário. Canta-se a digitalização em prosa e versos como a redenção, o remédio de todos os males, o ídolo em cujo altar todos devem oferecer sacrifícios. E assim – voluntária ou involuntariamente, não sei – desvia-se o foco do que importa, que é saber se o juiz julga bem ou mal, se o faz rápida ou lentamente, se essa atividade custa muito ou pouco.

No meu trabalho – que sou funcionário público – utilizam-se vários sistemas de controle, sendo muitos deles redundantes e descoordenados entre si. As redundâncias e descoordenações são elementos que apontam diretamente para a incoerência da coisa toda e consistem em verdadeiro ridículo. Todavia, todo sujeito que pretende inserir seu nome na galeria dos grandes funcionários vive a pensar em outro novo subsistema, provavelmente para tomar o tempo de todos e colher alguma informação que já estava catalogada.

A parte mais significativa da justificação dos sistemas de controle, ou seja, da glorificação fetichistas dos meios, é a necessidade de aferir-se desempenho e produtividade. Mas, será que ninguém se dá conta de que esses números podem significar nada ou um retrato desfocado da realidade. Tudo pode ser forjado, criado, deformado. Realmente, há um curioso ponto de contato entre o papel e o computador, é que este último, assim como o primeiro, aceita tudo.

Se as produtividades e desempenhos estão a serem medidos por sistemas alimentados pelos funcionários, cria-se um estímulo à produção de números, em um ciclo vicioso de autoreferência. Ou seja, a produtividade de um serviço deve-se medir na qualidade e quantidade em que é prestado, não na quantidade de números que se catalogam no sistema. O controle torna-se uma finalidade e uma farsa, enfim.