Fiz questão de utilizar o adjetivo fundamental, no título, para deixar evidente que há outras díades notáveis nos antagonismos políticos. Todavia, o corte entre nacionalistas e entreguistas é o mais nítido e profundo que há. Desde a metade do século XX até hoje, todos os conflitos políticos brasileiros podem ser vistos sob a perspectiva dessa díade, embora, evidentemente, possam ser vistos por vários outros prismas e modelos de compreensão.
As expressões consagraram-se no vocabulário político a partir da questão do petróleo brasileiro. A divisão estabeleceu-se entre os partidários da exploração pela companhia estatal Petrobrás, criada por Getúlio Vargas com esse propósito, e partidários da exploração a partir dos capitais e empresas transnacionais. Essa foi uma enorme fratura político-ideológica.
As circunstâncias históricas do ocorrido foram determinantes para sua complicada inserção na lógica política bipolar da guerra-fria. O Brasil estava no quintal dos Estados Unidos da América e seguia sob seu domínio. Qualquer desvio de conduta tendente a contrariar os interesses norte-americanos era acusado de inclinação comunista.
Ora, a questão do petróleo, rigorosamente falando, não dividia as posições entre capitalistas e comunistas, mas entre nacionalistas e entreguistas. Nada obstante, este último grupo fez da questão uma dicotomia ideológica que ela não revestia e tentou fazer dos nacionalistas comunistas. Não era disso que se tratava, todavia, mas de autonomia nacional frente a dependência externa pois, de fato, nunca houve qualquer risco de tornar-se o Brasil seguidor de alguma variante do bolchevismo.
Figuras insuspeitas de professarem algum comunismo eram adeptos claros da exploração nacional do petróleo e de outros minerais estratégicos. Eram-no por um evidente nacionalismo de direita, mas o discurso então oposicionista chamava a isso de comunismo! É perfeitamente compreensível, na medida em que o suporte em que se apoiavam não podia ser outro: para serem contra os governos, notadamente de Vargas, de Kubitschek e de Goulart, tinham que contar com o apoio norte-americano.
Uma questão difícil de investigar são os verdadeiros móveis das figuras proeminentes do entreguismo, tanto as civis, quanto as militares. Até que ponto acreditavam no entreguismo, até que ponto julgavam válida a cretina idéia de que o nacionalismo de direita era comunismo e até que ponto agiam como simples corretores a soldo dos norte-americanos? É difícil até porque os subornos costumam ser mal documentados.
Raramente um e outro motivador age sozinho, para desespero de quantos buscam causas únicas, claras, isoladas. As coisas terminam conspirando para dificultar a compreensão e misturam-se todos os fatores. As abordagens que se pretendem racionalistas costumam negar às figuras proeminentes e aparentemente mais bem dotadas intelectualmente as motivações fanáticas, puramente inspiradas na propaganda, mas convém ser menos cético.
O caso da histeria contra o comunismo é bastante revelador. Porções das classes dominantes civis e militares, que se forjaram na oposição a Vargas, viam em tudo que fosse uma contrariedade aos interesses norte-americanos a marca do comunismo, mesmo que ignorassem profundamente o que fosse propriamente comunismo e seus aspectos políticos e econômicos. E pareciam também ignorar o que era e é a base teórica do liberalismo político clássico: a democracia eletiva.
Acostumamo-nos a confundir racionalismo com mercantilismo ideológico e, assim, passamos ao largo do que parece impossível se não se motivar apenas na compra-e-venda de opiniões e posições. Todavia, as crenças e o fanatismo existem, sim, e são até mais fortes que a posição comprada. Como as idéias gratuitas tendem a parecer simples adesões àlguma tolice, reputamo-las inexistentes.
Parece-me que a necessidade de dissociar causas conduz à eleição de apenas uma e outra, quando, na verdade, elas costumam andar juntas e bem misturadas. Ademais, não se excluem necessariamente. Se é verdade que muitos dos oposicionistas ao nacionalismo brasileiro das décadas de 1940, 1950 e 1960 agiam por terem-se seduzido pela propaganda norte-americana, também é verdade que muitos agiam seduzidos pelo dinheiro norte-americano.
Vistas as coisas com a distância do tempo, muito do que era confuso torna-se claro. O Brasil era muito pouco importante economicamente e encontrava-se em uma região indiscutivelmente partícipe da esfera de influência norte-americana. Não havia outras adesões possíveis e nem parecia haver outras desejáveis. Nessa perspectiva, não causa qualquer estranheza que tenha sido possível recrutar elites dispostas à defesa dos interesses dominantes nessa parte do mundo.
E foi possível levar a coisa adiante, dando-lhe ares teóricos e postulando a inevitabilidade da dependência. Aqui desnuda-se a insuficiência epistemológica de quantos, a partir de constatações, criaram prisões doutrinárias, negando a própria história, entre outros fatores mais. A dependência que se constatou então realmente havia, mas sua permanência não era um axioma, como quiseram seus defensores.
Hoje, quando a dependência brasileira diminui a galope, ainda há quem insista na impossibilidade disso, embora o processo marche nas suas vistas. Ainda mais contraditório é que a dependência recua – notadamente pelo aumento da detenção de meios energéticos – ao passo que a integração econômica com o mundo também progride. É possível, para horror de muitos, seguir a marcha autonomista e abrir-se aos mercados mundiais, simultaneamente.
Por isso, os mais recentes suspiros entreguistas revelam poucas potencialidades. E, por ser possível que estejam por esgotar-se enfim, podem ser os mais perigosos. O moribundo ergue-se muito teso e crispado na última vez que se ergue.