Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Psicologia social de mesa de café (Page 7 of 10)

Auto-complacência e falta de percepção da realidade. O caso do Sport de Recife.

Um episódio vulgar: a equipe do Santa Cruz, de Recife, ganha o campeonato estadual de futebol, superando, nas finais, a equipe do Sport. Na verdade, um episódio vulgaríssimo, comuníssimo, principalmente considerando-se que não estão em jogo questões de nacionalidade ou de antagonismo regional, porque as duas equipes são da mesma cidade.

Mas, o futebol é das áreas mais férteis para a percepção das dinâmicas sociais. A formação de grupos de adeptos dessa ou daquela equipe atende a certas condições identificáveis, nas suas origens. Depois, a coisa marcha com inércia própria e distancia-se um pouco das condições iniciais. No caso dessas duas agremiações, sabe-se que a primeira teve origens modestas, nas camadas mais baixas da sociedade do Recife. E que a segunda forjou-se nas classes médias baixas.

Hoje, esse corte sócio-econômico não tem quase sentido, porque os números de adeptos são muito grandes e a permeabilidade social também. Convém a qualquer equipe ter o maior número possível de seguidores – preferencialmente cegos – e todas as classes sociais tornam-se alvos, consequentemente. Além disso, as direções das equipes nada têm a ver com as composições de suas torcidas.

A identificação ou a devoção de uma pessoa a uma equipe de futebol é algo estranhíssimo, se virmos a coisa em termos abstratos. Assim, parece-se com a diferença entre o gostar-se do azul ou do amarelo. Convém ressaltar o que está no primeiro parágrafo, para colocar o caso da representação de nacionalidade ou regionalismo em campo diverso.

O Barcelona, por exemplo, é o caso evidente de uma identificação que transcende o futebol, pois é o símbolo maior de uma nacionalidade. Aqui, a coisa deve ser percebida por outro ponto de vista e faz mais sentido ou, pelo menos, é mais perceptível.

Nos casos de devoções a equipes que significam apenas uma reunião em torno a um símbolo teoricamente igual a outros, a inclinação deve ser decomposta em vários fatores. Há os condicionantes iniciais, ou seja, uma ligação de solidariedade inicial que, todavia, passado o tempo e aumentado o grupo, passa a ter relevância discreta.

Há o êxito, fator importantíssimo. Uma equipe de muitos êxitos tende a reunir número maior de adeptos. Aqui, entra em cena algo demasiado humano, o querer ter êxito por seguir um êxito alheio. É previsível querer participar de uma idéia de vitória, que é uma idéia de superioridade, evidentemente. Isso é próprio dos esportes coletivos, pois a equipe permite a extensão da noção de equipe aos seguidores.

As identidades futebolísticas tendem ao fanatismo em forma pura, quer dizer, ao antagonismo baseado em indiferenças reais. Sim, porque não se antagonizam idéias sobre a beleza do desempenho do esporte, mas somente diferenças entre preferir o verde ao vermelho.

Alguns séquitos de adeptos distinguem-se de outros pela intensidade da cegueira de suas devoções. Parece-me algo aparentado ao farisaísmo, que reúne a reivindicação da pureza, a mania de perseguição, a certeza da superioridade e a incapacidade de ver as coisas claramente e segundo as proporções existentes. Tais inclinações conduzem o seguidor a conflitos com o desenrolar dos fatos e levam-no a uma necessidade de simulação constante.

O caso específico dos torcedores do Sport de Recife é de estudar-se. Não se limita a fanatismo; essa é uma palavra insuficiente para apreender o comportamento, embora seja uma das chaves. Trata-se de uma crença quase religiosa que leva o crente a não aceitar uma realidade e a precisar justificar-se justificando algo que não depende dele.

Se esta equipe perde um jogo, será necessário encontrar motivos para tanto, excludentes da mais provável hipótese, que é a falta de competência técnica em um dado momento. Engraçado é que o adepto precisa justificar aquilo que ele não fez, porque ele acha-se presente naquilo em que não participa, embora creia que sim.

A psicologia do adepto de tal equipe revela que ele acredita no símbolo de uma superioridade, que só pode ser afastada por conspirações tão improváveis como intrincadas. Assim, o juiz terá roubado, outras equipes terão trocado subornos cuja lógica é enigmática, o tempo terá conspirado contra, as radiações gama terão atingido os futebolistas e outras coisas desse gênero. Nunca terá sido apenas um caso de futebol!

O mais dramático que deriva dessa postura é a incapacidade de ver a equipe perder. Entra em cena uma coisa fantástica, então: a simulação da indiferença e do bom humor que se dá ares de superioridade complacente, embora roa-se internamente de incompreensão e fúria assassina. O adepto em questão quer reservar-se o campo da piada autoconcedida, aquela que ele julga cabível para si, aquela auto-complacente.

Humano: infra-humano, escravo.

Devo dizer infra-humano e intranscendente, para evitar dubiedades e previsíveis abordagens oriundas de platonismo das massas.  Não se trata de afirmar o humano como bom ou mau, não se trata de qualquer coisa a partir desse moralismo derivado da lei de um legislador ausente.

Trata-se do infra-humano por aquém da potência, por aquém da nobreza, por aquém da auto-percepção, por humano, enfim, pois que o mais carrega o menos em si. Só assim percebendo-se a questão, escapa-se das armadilhas da bipolaridade que resulta da moral de escravos.

A moral da justificação, como se a vida se justificasse, ou por convenções sociais, ou por recurso ao externo, é precisamente a mantenedora do infra-humano. Do que é apenas quantitattivamente diferente do humano, porque qualitativamente são idênticos, um está no outro.

Também não queria fazer o mais tênue recurso à noção de utilidade, para não gerar confusões, a lembrar de utilitarismo como corrente filosófica. Todavia, é necessário dizer-se que o infra-humano vê-se também no inútil, naquilo que é inútil para fazer atuar a potência do Humano.

Escrevo essas linhas mal conectadas a propósito de algo que me repugna: pessoas adultas a maltratarem animais. Falo em adultos, porque as crianças são outras pessoas, maltratam bichos, outras crianças, objetos, tudo, em maior ou menor proporção, a variar de uma para outra. Não falo de gente a maltratar gente, porque isso é outro assunto, que também tem a ver com o infra-humano, mas é outro assunto.

Foi bom ter mencionado a utilidade, para não precisar alongar-me sobre os bichos que matamos para os comermos. Sim, porque eles os bichos fazem a mesma coisa e ficamos, portanto, bem explicadinhos, todos nós, os que pensamos pensar e os que pensam sem se pensarem.

Nunca apreciei os jogos de caça, fossem de raposas, de aves ou de peixes. É um jogo de morte que as pessoas deviam jogar entre si, ao invés de fazerem simulacros com as caças sempre perdedoras. Um combate de morte entre gladiadores é muito mais nobre que uma caça à raposa, que é decadentismo puro.

Mas, os jogos de caça, em geral, têm ao menos uma vantagem: a vítima é abatida instantaneamente. Os maus tratos que atingem gatos, cachorros, jumentos, cavalos, bois, pássaros, são torturas precendentes a uma morte agoniada.

Uma mulher bate com um pau em um cachorro ou em um gatinho até que a cabeça dele estoure, perca a consciência, agonize com movimentos involuntários de patas já não comandadas por um cérebro morto. São imagens que não saem da vista e ficam a repetir-se em níveis diferentes e mais depurados de escândalo e asco.

Asco pelo infra-humano, que é plenamente capaz do mesmo com qualquer ser ou coisa superior a si mesmo, como contra o humano ou contra os bichos, ambos superiores ao infra-humano. O infra-humano reconhece no animal, sobretudo nos mamíferos, a nobreza que ele não tem, a nobreza de ser só o que é e conhecer sua precisa dimensão, a extensão de suas vontades. A inveja, que o infra-humano tem em doses imensas, fa-lo agir, portanto.

É assustador perceber que as pessoas fazem exatamente o que aceitarão que se faça a elas. O contrário dessa afirmação é o lugar-comum repetido, mas não é verdade. Elas estão no jogo, no mesmo. Elas, no fundo, aceitam muito bem as regras do jogo, por elas mesmas feitas e consagradas na prática.

O escravo bate e mata com avidez e gozo porque baterão nele e o matarão os outros escravos e os escravos com rendimentos financeiros de senhores. Ele faz o que julga ser uma questão de oportunidade, ou seja, põe para fora toda a sordidez e violência porque seu mundo é sordidez e violência. Os bons exemplos não valem coisa alguma – só frutificam em terra apta – os maus têm enorme força, são o normal…

Frederico-Guilherme Nietzsche caiu doente irremediavelmente – louco, diz-se – precisamente no dia em que agarrou-se a um cavalo que o cocheiro açoitava, em Turim, em janeiro de 1889. É óbvio que a loucura – essa que não há palavra mais precisa a denominar – já se instalava há tempos. Mas, é muito significativo perceber qual foi o evento capital a desencadear a instalação definitiva da compreensão profunda.

Passivos, guiados e limitados.

O que existe mais claramente é o que se precisa negar mais veementemente. É aquilo que deve ser contraditado a todo tempo, insistentemente.

O que há mais evidentemente é o pensamento limitado, balizado, turvado, condicionado. As margens de variações são tão estreitas que as pequenas diferenças, vistas de mais distante, anulam-se. As pequenas variações dão-se em um campo delimitado previamente e não consistem em qualquer diferença qualitativa.

Os grupos humanos são guiados e vivem segundo roteiros seguidos involuntariamente. A liberdade de ação e de pensamento é, portanto, um mito, que vive do seu contrário, a não-liberdade absoluta. Por isso mesmo é que se ouve e se repete sempre que se tem liberdade, para que se viva sem ela e sem perceber sua ausência.

A supressão da liberdade de pensamento, aqui tomada como potencialidade humana, é obra das mais grandiosas já realizadas. Sim, porque é quase inabalável e pode seguir triunfante mesmo na presença de todos os elementos que supostamente a ameaçariam.

No ambiente do pensamento único, dos hábitos, das emergências, do trabalho e do consumo, não há problemas na existência e na disponibilidade das informações, porque elas não serão usadas nem relacionadas. Elas serão apenas um adorno, preferido por uns  a outros tipos de adornos.

Ela, a informação, será um bem consumível como outro qualquer e, portanto, perderá seu carácter real e manterá apenas a aparência. O fulano que adquire alguma informação ou ares de pensador é uma variação tipológica social essencialmente igual ao outro fulano que, aos ares pensadores prefere ostentar um Porsche.

Todos os fulanos cabem em uma tipologia social previsível e pré-ordenada em todos os aspectos da vida exterior. Haverá guiões para todos os grupos, inclusive com as exceções aparentes que permitem àlguns sentirem-se diferentes, muito embora a própria diferença seja parte do que os iguala a todos.

Falo em aspectos da vida exterior porque os da vida interior terão desaparecido. A vida interior volatiliza-se em superficialidade de comunhão de despudores privados. Na medida em que mais e mais detalhes pequeninos de intimidade são compartilhados avidamente, menos particularidades e menos percepção há.

A vida interior, como percepção das externalidades e das interioridades ao mesmo e a todo tempo, dilui-se a tal ponto que se anula na comunhão de trivialidades sem consciência de si próprias. É um estado de dormência em que se vive, em um presente contínuo e sem portas de saída ou de entrada.

Não é que não se possa parar para pensar – até porque pensar não implicar para-se – como as maiorias gostam de repetir. É que não se pensa e isso não influi aparentemente no fluxo das vidas, porque não se pensa mas imagina-se que se o faz constantemente, e mais, livremente.

Algumas pessoas mais intelectualmente honestas, embora presas nas mesmas cadeias, têm a pequena ousadia de objetar com a inutilidade do pensamento. Mais honesto, mas não menos limitador, esse é o cinismo da ignorância utilitarista e segura de si. Talvez um cinismo temperado com preguiça.

O utilitarismo, compreendido somente nos seus aspectos mais vulgares, contribui enormemente com a manutenção do pensamento balizado e guiado. Torna-se um instrumento de uniformização, até de forma contraditória porque as utilidades supostamente implicariam em buscas, não em aceitações.

Ou seja, a noção de utilitarismo foi deformada pela superficialidade em noção de impossibilidade do diverso. A utilidade tem que ser considerada em mão única e, ademais, irrevogável. Esse formato é uma verdadeira conquista da incoerência, porque a crença generalizada na contingência mantém-se a partir de múltiplos indivíduos que afirmam a liberdade!

O teórico vai-me cansando o juízo e lembro-me de algo que soou muito interessante, recentemente. Trata-se da repetição geral de que em breve só haverá smartphones. Claro que falo de uma trivialidade e que abstraio da tolice imensa que o nome telefone inteligente ou sagaz carrega.

Mas, é um caso interessantíssimo a crença em algo certo e impassível de ocorrer diversamente: só haverá smartphones. Tudo bem, embora haja poucos smartusers de smartphones, mas eles serão todos, não haverá outros. Se você, no futuro próximo, quiser um telefone móvel para falar apenas, você terá um smartphone.

Não servirá de nada entrever que pode ser pouco smart ter um smartphone somente para falar, o que se fazia antes em um dumbphone. Você não estará diante de uma opção, você só terá à venda smartphones.

Mas, você provavelmente vai achar que sua liberdade amplia-se com a disponibilidade desses telefones muito sábios. Na verdade, terá que achar isso, porque terá vergonha de perceber que foi levado a comprar algo que lhe traz o que não quer ou precisa. E, para não se julgar tolo, passará a usar as possibilidades inteligentíssimas do telefone e se integrará plenamente ao modelo, agora sem vergonha, sem achar-se tolo e achando-se livre!

Usarás o que tens de usar, comprarás o que tens de comprar. Claro, terás uma alternativa, que será não ter telefone algum. E se optares por isso, serás catalogado em uma categoria própria, já prevista para tanto. Terás de aceitar-te como um ser exótico e assim oferecer-te à percepção socialmente compartimentada, a única possível.

A liberdade é de ser conforme a modelos pré-estabelecidos, as opções já estão dadas, mas o terceiro nunca é dado. Nem pode ser cogitado, até porque o utilitarismo de aba de livro que preside aos pensamentos leva a julgar inúteis quaisquer cogitações que fujam aos guiões padrões.

 

 

 

Racismo no Brasil.

A Universidade Federal do Rio de Janeiro produziu um estudo nominado Segundo Relatório Anual de Desigualdades Raciais. Alguns números são reveladores do racismo brasileiro. Os pretos e pardos têm menos acesso à saúde e à educação, por largas margens. Por exemplo, os afrodescendentes com mais de 15 anos apresentam tempo médio de estudos de 6,5 anos e os brancos de 8,3 anos.

As diferenças já foram maiores e vem reduzindo-se muito lentamente. Mas, essas diferenças revelam o que se quer negar veementemente, a custo de agressões frontais à lógica e às evidencias. O combate à evidência intensificou-se com a adoção de políticas afirmativas de inclusão.

A base do ataque às políticas afirmativas, de reserva de cotas, por exemplo, é a negativa das diferenças e dos conflitos. Por outro lado, ao mesmo tempo em que se tenta combater as cotas raciais, tenta-se esconder que a situação de sempre configura uma verdadeira política de cotas a favor de uma minoria que se julga devedora apenas de si, individualmente.

O modelo social brasileiro é profundamente perverso e sofisticado. Ele conseguiu um êxito raro entre os grupos humanos: manter níveis de desigualdades sociais e raciais muito profundos e evitar a explosão que seria natural esperar-se. E fê-lo com níveis de violência sistemática mais reduzidos que em outras experiências do gênero, como a sul-africana, por exemplo.

Claro que há níveis de violência não sistemática avassaladores, ou seja, de criminalidade dita comum. Ela, de certa forma, desempenha o papel repressor que a violência sistemática e organizada tem nos modelos excludentes tradicionais. Ele é somente aparentemente aleatória, porque os números revelam que as maiores vítimas são precisamente dos grupos excluídos e que se devem controlar.

A contenção social e a punição violenta por meio da criminalidade comum ainda tem uma vantagem de cunho psico-social que é afastar a percepção individualizada de culpa, seja de um e outro indivíduo, seja do governo, seja de uma certa classe social. Ela parece mesmo aleatória, embora não seja.

As partes mais engenhosas do formato brasileiro de exclusão são os múltiplos disfarces sob que ele esconde-se. Muitos escritores de grande talento – intelectuais, diriam alguns – contribuíram esforçadamente para a consolidação da idéia de mitigação das diferenças. E, aparente contradição, fizeram-no celebrando uma miscigenação que não foi uma integração. O caso mais notável é o de Gilberto Freyre.

A celebração da miscigenação racial a partir de elementos curiosos ou pitorescos, encadeados com fibras de ciência social, firmou a noção da democracia racial, até mesmo da esculhambação racial, como se no Brasil essas fronteiras se tivessem abolido em um conúbio de lubricidade e promiscuidade racial profunda. O que pode ser muito verdadeiro em termos puramente sexuais, não tem qualquer sentido social, contudo.

Muitos se compraziam em comparar essa suposta democracia racial brasileira com a segmentação evidente ocorrida nos Estados Unidos da América. Ou seja, ativeram-se ao aspecto puramente sexual e cromático da questão, deixando de lado as resultantes estruturais na sociedade.

A miscigenação, no Brasil, deu ensejo a uma estratificação cromática, a uma escala de branquitude a ser galgada constantemente, ao longo de gerações. Uma escala que correspondia, quase que à exata proporção, àquela do ascenso social e econômico. Quer isso dizer que a miscigenação considera-se um caminho programático de despreteamento da população, algo muito diferente de democracia racial.

A configuração da estratificação cromática sempre foi eficazmente disfarçada pela crença na ausência de barreiras raciais, quer dizer, na carnavalização das relações entre indivíduos e grupos de origens sociais e raciais diferentes. O modelo impôs-se fazendo acreditar que existe, sim, hierarquia social, mas que não existe racial.

Todavia, os valores cultivados, nomeadamente os estéticos, também permitem ver que a hierarquização não é apenas social e econômica, mas racial. Claro que descortinam a questão mais sutilmente que os números reveladores da nítida exclusão por raça. Interessam exatamente porque são uma via de percepção mais sutil.

É notável que os padrões desejados de estética corporal, em sua maioria, claro, apontam para o branqueamento. Assim, em exemplo bem redutor, buscam-se cabelos claros e lisos e não o inverso. Buscam-se traços fisionômicos caucasianos e não é à toa que este país é o campeão mundial na área da cirurgia plástica!

É inegável que há forte miscigenação racial no Brasil e que as classes intermédias são compostas de mestiços. Porém, é também inegável que as classes dominantes, nos seus estratos mais altos – digamos os 02% – são quase integralmente compostas de brancos, que se apropriam da maior parte das rendas nacionais.

Os números e conclusões apresentados pelo estudo da UFRJ indicam que os pretos e pardos têm qualidade de vida inferior aos brancos, sob qualquer aspecto objetivo considerado. Ora, isso não tem outra explicação senão um profundo, dissimulado e continuado racismo. Sim, porque a única explicação restante não convém aos racistas atualmente, excepto por um e outro grupo francamente defensor de superioridades raciais.

Os líderes da dominação, de qualquer delas, sabem que precisam esconder, primeiro a própria dominação, segundo suas causas, terceiro sua inércia. Precisam exercer o domínio por meio do que os norte-americanos chamam soft power, ou seja, mediante o engano, a confusão e o disfarce.

Trata-se de asseverar que existe a igualdade e de pô-la nas leis, formalmente. Trata-se de assegurar que as oportunidades são iguais, ainda que o sejam somente nos papéis escritos. Trata-se, enfim, de esconder que há uma tremenda inércia social e que isso é decisivo para que alguém esteja onde está.

Se alguém consegue perceber, ainda que discretamente, o papel da inércia social, logo o modelo lançara nuvens sobre esse pedacinho de compreensão e falará como se tudo se limitasse ao recebimento ou não de heranças. Pois o domínio implica também em fazer ele mesmo a pauta de discussões e delimitar como os assuntos serão abordados. Assim, ele conduz às conclusões que lhes convém, ou conduz à falta de conclusões, à confusão e a mais nuvens.

 

 

Brasil: infantil, vulgar e esquizofrênico.

É anátema ou apologia falar em ordem e em seriedade. A primeira, as pessoas confundem com repressão. A segunda, confundem com tristeza ou com a aparência formalmente compungida. As duas coisas não são o que o senso comum adotou como percepção delas; e faltam a esse país, ambas.

Repressão, já existe em demasia no Brasil e, ademais, de forma seletiva com pretos e pobres. Transborda seus efeitos, uma e outra vez, sobre aqueles que a glorificam, pegando-os aleatoriamente. Aí, é o escândalo, são os gritos, o fim do mundo, a reação bipolar.

Seriedade, para nós, é uma postura teatral. Há momentos para expressa-la, mas nunca é ua seriedade séria, em que se acredite. Sim, porque achamos-nos os felizes, os do carnaval constante, os únicos e exclusivos seres alegres do planeta. Acreditamos nisso como em uma revelação de carácter distintivo. Temos que sê-lo.

O povo recebeu o guia de comportamento, recebeu as linhas gerais de seus personagens sociais; ele os recebeu mais que os construiu, porque essa alegria, essa falta de seriedade, não se sabe o que são.

Fomos e somos profundamente infantilizados e vulgarizados. Somos capazes de reclamarmos de tudo e de compreendermos nada. Acreditamos que temos direitos vários, embora não os tenhamos, quase nenhum. Gritamos como crianças, falamos como crianças, chantageamos e somos chantegeados como crianças.

Como elas, somos enganados, recebemos um e outro afago; falam conosco naquela linguagem afetada destinada às crianças… e aceitamos.

Somos vulgares e rudes e achamos que isso é espontaneidade. Achamos, porque somos adultos, mas queremos que isso seja aceito porque queremos-nos aceitos como crianças! Estamos deslocados, a padecer de uma puerilidade adulta. Nosso comportamento é dúbio, cambiante, como adultos acanalhados a vagarem pela vida.

Tudo pode e nada pode, como se fôssemos 190 milhões de meninos e meninas, a quem se desculpa tudo. Partimos para o vale-tudo, porque tudo pode. Ao mesmo tempo, vivemos o vale-nada, porque a mão pesada da repressão e da vida miserável cai aqui e acolá, como por sorte ou acaso.

Na verdade, a mão pesada da realidade não somente cai, ela permanece a esmagar a maioria e a maioria… a ser infantil. E a reagir esquizofrenicamente a qualquer estímulo, sem perceber o jogo que joga. A maioria a ser guiada, mas não segundo um guião que construiu a passos lentos, ainda que de servidão, mas construído por seus passos.

Não, a servidão é dupla, é real e formal. É vivida e encenada e suas vítimas resignam-se a ela, nas duas formas. Acham que basta-lhes a possibilidade de fazer parte do caos, ativamente, para deixar de perceber o caos.

A liberdade de ser mal-educado, de expandir sua esfera individual até agredir as dos outros basta às pessoas para viverem sem qualquer liberdade. Deram o mais em troca do menos. Perdeu-se a civilidade para ganhar o direito a viver em aparente liberdade de ser-se selvagem.

Esse foi o diversionismo que 02% do país impôs aos restantes 98% dele. Ou seja, tu podes achar que és livre porque pões o barulho do teu carro a incomodar meio mundo, tu podes urinar ou defecar nas ruas, tu podes furar uma fila, tu podes dar um pequeno golpe de estelionato, para que uma escassa minoria possa apropriar-se de ti, para viver apartada de ti e passar as férias no estrangeiro.

Essa é tua liberdade, a de seres selvagem, fazeres de criança, falares disparates, trabalhares a salários miseráveis. Tudo isso para achares que és livre e manteres as coisas como estão, para 02% do total das pessoas do teu país viverem como querem e como sabem que querem.

Mas, precisarás de segurança pública, precisarás de andar nas calçadas. Ficarás doente, terás que por teus filhos em escolas. Terás o retorno que os selvagens infantilizados e vulgarizados têm, ou seja, qualquer farsa. E, se reclamares, dar-te-ão mais um carnavalzinho e mais um direito a te embriagares.

Se pensares em reclamar com um pouquito mais de crítica, terás uma revista semanal qualquer a te lembrar do roteiro de tua vida. Tens que ficar escandalizado porque um fulano maluco matou dez ou doze pessoas, ainda que teu dia-a-dia te mostre cem ou duzentos mortos tão ou mais reais.

Vais preocupar-te com os japoneses que morreram de um terramoto, ou vais falar de uma guerra em um país que não sabes em que parte do globo está. E tu podes ter rendas mínimas ou até elevadas, és uma criança de toda forma.

Logo, teu supremo direito a passar outra criança para trás, a cometer uma incivilidade qualquer, te fará esquecer até o guião recebido da revista de imbecilidades semanais. Assim seguirás, tolo, vulgar, grosseiro, certo de que és cordial e alegre, servo, sempre servo.

 

 

 

Auto-referência: uma consequência que se torna causa.

Passeio de uma família abastada, de Jean – Baptiste Debret

 

É difícil isolar causas e consequências em um sistema dinâmico, principalmente se ele orienta-se para a manutenção de uma estrutura. As causas e consequências começam cedo por influenciar-se reciprocamente e conferem inércia ao sistema. É possível, apenas, deter-se sobre um e outro momento específico, para olhar-lhes à lupa e, nesse momento, falar com alguma propriedade de uma e outra causa e consequência.

O Brasil surgiu de uma colonização visando a exportar o que fosse possível, como nasceram vários outros países. Aos poucos, migram para cá alguns operadores do modelo colonial. Com o passar de algum tempo, esses vêm-se na contingência de guerrear e, então, assumem identidades um pouco afastadas dos colonizadores iniciais.

Está transplantado para o país já um modelo interno próprio, embora articulado a um maior, que envolve a metrópole. O que se transplanta e se instala na colônia é um modelo de sociedade mais vincadamente estratificado. Sua marca essencial é a diferença entre senhores e servos.

Claro que há inúmeros matizes e sutilezas na conformação social, mas nada que invalide o corte profundo a dividir as duas classes. Esse afastamento profundo é, inclusive, institucionalizado, porque o país adota a servidão. A sociedade que tem vastos contingentes a que se nega a personalidade jurídica é dividida por essência.

O afastamento drástico resultante da escravidão institucional projeta-se no futuro, muito além de sua extinção formal. Sim, porque antes mesmo de se acabar formalmente, ela tinha operado um curioso e perverso efeito. Ela tinha incluído na classe percebida como servil elementos que originalmente não tinham essa condição, do ponto de vista jurídico.

Quer dizer que indivíduos excluídos pela pobreza extrema foram incluídos no imaginário social na grande classe dos servos, assimilando-se a eles. Entretanto, a exclusão econômica de uns fê-los passar a uma classe caracterizada pela exclusão total, jurídica e econômica.

O conceito de servo, inicialmente bem delimitado pelo estatuto jurídico de coisa, foi estendido, na percepção social, para englobar todos os muito pobres. E, evidentemente, extrair-lhes o estatuto jurídico-formal da personalidade e da detenção de alguns direitos. Assim, quando extingue-se a servidão, do ponto de vista formal, o vinco já estava formado, a dividir quem age e quem sofre ação, independentemente de igualdades jurídicas apenas de discurso.

Sob um ponto de vista estático, a causa desse processo é a concentração brutal de dinheiros e poderes institucionais. Ela, a concentração, enseja um efeito nítido nas classes dominantes: a auto-referência. Realmente, o efeito produzido muito diretamente de um ambiente de poucos, que têm as instituições apenas para si.

É quase inevitável, portanto, que classes dominantes muito restritas e muito afastadas dos restantes – por diferenças marcadas profundamente – sejam auto-referentes, porquanto a realidade institucional, jurídico-formal, existe apenas para elas. Elas agem no quadro institucional como os associados a um clube exclusivo, ou seja, dentro de um subsistema próprio.

Na verdade, esse subsistema entende-se como o sistema todo, porque os restantes não são participantes agentes. Somente em momentos posteriores, o subsistema passa a ver-se como uma parte, mas ainda a parte que detém toda a esfera de poder institucional.

Toda a dinâmica social ocorre dentro do subsistema auto-referente e, assim, para ser-se um pouco agente é necessário ingressar nele. Fora dele, nem mesmo espectador alguém é, porque não compreende nem pode entrar na sala do espetáculo.

Um pouco ao depois, o sistema auto-referente percebe a necessidade de disfarçar sua existência, de fazê-la incompreensível, porque em certas situações só existe aquilo que se não vê. Ele, então, destaca as diferenças que existem dentro dele, as as estratificações internas em termos de maiores e menores graus de detenção de dinheiro e poder institucional.

Ele quer fazer crer aos que estão fora que suas diferenças internas são a prova de sua inexistência, ou seja, de que há uma estratificação natural e contínua na sociedade, não dois subsistemas nitidamente separados. Esforça-se, portanto, para apontar diferenças internas como provas da inexistência da grande e fundamental diferença.

A auto-referência produz estragos difíceis de reverter, nas individualidades. Ela é um modelo de pensamento que põe um restante, um grupo de seres outros, em referência ao sujeito. Nesse sentido, ela revela uma aparente contradição interessantíssima: sua exacerbação do individualismo não-republicano é o fator de sua coesão.

Ela induz a que todos procedam como se o sistema – incluindo-se obviamente o Estado – estivesse em função de várias predações individuais em competição de morte. Nesse estágio, o subsistema auto-referente já apresenta diferenças internas marcadas, aquelas diferenças que antes afirmava somente para confundir.

Como sua causa inicial é a concentração, que nunca cessa a marcha, o subsistema diferencia-se internamente, sempre a partir do critério de apropriação material e de poder institucional. Não obstante, o efeito inicial e agora causa também, a auto-referência, está presente em todos os integrantes, como inclinação fundamental de postura ante a vida.

Ela é o ponto de contato, o específico comum a todos, o elemento que identifica os diferentes dentro do subsistema concentrado. Em outro momento posterior, ela, a auto-referência, começa a desempenhar um papel mais curioso, embora não seja inesperado; ela funciona como armadilha.

Aquilo que é fator de coesão dentro do subsistema concentrado, tem efeitos diversos sobre seus diferentes níveis internos. Para os que se encontram no topo, uma restrita minoria, é o que move a crescente acumulação. Para os níveis médios e baixos, serve desempenha uma função que poderia ser objeto de investigação psicológica.

A auto-referência nos estratos médios e baixos do subsistema concentrado cega. São nuvens que impedem o sujeito diante do espelho de ver-se refletido, ele que só queria isso. E impede, mais obviamente, de supor qualquer coisa atrás do espelho. Ele continua a ter a noção de pertencimento, mas não de distância, e dá-se à servidão sem percebê-lo nitidamente.

Nitidamente, ele só percebe que deve ser evitada, a todo custo, a queda para o outro lado do fosso, para o outro subsistema, que nem mesmo é tão organizado a ponto de considerar-se sistemático. Todavia, a servidão, essa é-lhe inevitável e será aceita com mansidão.

Porém, como a dinâmica não cessa, nesse sistema que ignora leis físicas e tem inércia própria, o fosso também desloca-se. Essa deslocação, a par com a cegueira produzida pela auto-referência, é fator de loucura e bestialização.

Um brasileiro em Washington, nos anos 70.

Por Sidarta

 

Sou mais afro-brasileiro do que judeu iberico brasileiro. Por conta disso, nos tempos em que estudei e estagiei nos USA não era preto nem branco… não era nada, só um latinoamericano pretensamente mais bem educado social e tecnicamente falando. Isso facilitou, de certa maneira, a não obrigação de tentar ser “compliant” com algum grupo racial ou hierarquicamente dominante no trabalho e poder ver que a democracia racial existia obrigatoriarmente dentro do trabalho mas só até terminar o expediente do dia.

Na primeira semana em Washington fui colocado junto com outros brasileiros, vietnamitas, salvadorenhos e outro “subdesarrollados” para “attent a lecture” sobre como não se sentir hostilizado pelas exibiçoes dos pretos nas ruas, principalmente com os latinos. Não tinha nenhum preto puro, aluno ou instrutor, na sala: “Andem sempre bem vestidos, sejam cordiais e não encarem os pretos direto nos olhos; voces não são americanos e eles não se sentem mais compelidos a os respeitar”. Disseram também que os cachorros americanos nas casas latiam pouco e raramente partiam para morder … mas que deixassemos que eles nos cheirassem.

Lendo atualmente um livro sobre o processo de ascençao (briga de foice) dos militares aos altos postos das forças armadas americanas, junto com parlamentares que são assessorados pelos militares e que agem junto aos fabricantes de armas, deparei-me com uma expressão dita por um almirante branco sobre um almirante preto de que, “desde a segunda guerra, os objetivos dos militares pretos não tinham mudado mas que agora eles estavam sabendo se aproveitar melhor de ONG’s, legislações contra o racismo, quotas e acusações de discriminação para alçarem vôos mais altos nos escalões militares e politicos”.

O alto comando militar americano adora receber ordem para matar mas parece gostar mais quando essas ordens saõ dadas por um presidente branco. Vai ser dificil mesmo para Obama ser o que não é ou não ser o que é…

Penso que é a rearticulação dos republicanos em cima das oscilações e do evidente oportunismo de Obama.

Shopping Manaíra, morte, espetáculo e escravidão.

Aconteceu o seguinte, conforme lê-se no sítio de notícias WSCOM: um homem de meia idade, pelo 50 anos, estava no Shopping Manaíra, em João Pessoa, na Paraíba. Começou a sentir-se mal e a gritar por ajuda, porque sentia fortes dores no peito. Uma mulher dispôs-se a ajudá-lo, levá-lo ao carro e daí ao hospital.

Nesse passo, chegaram os seguranças do tal shopping center, afastaram a mulher e arrastaram o homem para a calçada, deixando-o lá. O homem morreu na calçada da entrada do centro comercial, de enfarto fulminante, sem socorro.

Há e ainda continuarão as reações previsíveis, ocorridas dentro do modelo e que não o modificam, de indignação emocionada. O lugar-comum dessa indignação é insensibilidade. Será gritado e repetido à exaustão, inutilmente. Cessarão os gritos, esquecer-se-á o acontecido, até que outro escândalo volte a despertar a indignação e a ensejar queixas contra a insensibilidade.

Tudo será percebido como um fato isolado, escandaloso mas isolado. Passados os frêmitos iniciais e cessados os gritos de insensibilidade, passa-se a esperar o fato seguinte, a ser percebido da mesma e exata maneira, ou seja, como se não fossem sintomas de uma moléstia maior.

Ninguém deixará de frequentar esse templo de múltiplos altares, o shopping center Manaíra, nem qualquer outro. O problema está precisamente em que são templos, dedicados à religião do imediato, da abundância mercantil, da dominação avassaladora que os dominados não percebem.

Nessas engrenagens demoníacas, são curiosos os papéis de alguns escravos. Digo alguns porque todos o são, inclusive o morto, então convém apontar de qual deles se fala. Os seguranças do estabelecimento estão entre os escravos pior posicionados segundo uma escala que considere rendimentos apenas. Socialmente, sob uma perspectiva mais ampliada, é um papel que daria várias teses de investigação científica.

O segurança, mais especificamente no Brasil, faz parte de um aparato de contenção social e busca ser simpático com seus senhores, ao máximo. O máximo de simpatia ou de competência no trabalho corresponde às atitudes que julga serem as mais desejáveis pelo senhor.

Os senhores querem tranquilidade, querem os problemas afastados, querem aparência de tranquilidade, para que os sacrifícios possam ser oferecidos nos templos da abundância comprada a crédito. Querem segurança, ou a aparência dela, querem que o evento sujo, estranho, imprevisto, seja afastado para longe.

Os escravos ávidos de bem servir ao senhor serão sacrificados sem oportunidade de invocar em defesa suas competências e  sua lealdade. Se agissem sem competência e deslealmente, seriam sacrificados da mesma forma. Eis o que não se quer perceber: aqui há pouquíssima aleatoriedade, quem perde é sempre o mesmo lado.

A platéia de escravos outros aplaudirá o sacrifício de uns seus semelhantes e o espetáculo seguirá seu rumo.

Alfonso Armada e uma característica sempre presente.

Em 1981, o tenente-coronel da guarda civil Tejero tentou um patético golpe de estado, na Espanha. Tejeros são assim, atrapalham os Armada, embora ambos sejam tipos infames. Hoje, trinta anos depois, ainda se tentam reconstituir os detalhes e encontrar melhor definição dos papéis no golpe.

O general Alfonso Armada foi preceptor do Príncipe João Carlos. Parece que exagerou a crença na influência que teria sobre o Rei João Carlos, o que o levou a tentar um golpe bem armado, aparentemente constitucional e com a benção real. No fim e ao cabo, o Rei mostrou-se um homem grandioso, adequado perfeitamente ao seu papel; está evidente que não há Espanha sem João Carlos.

O golpe planeado por Armada era de tipo clássico e tinha cores institucionais suaves, ainda que se baseasse nas inclinações e insatisfações de antigos e declarados falangistas. Essa gente não aceitava a democracia política e as autonomias regionais e ainda velava o corpo de Franco.

Esse tipo de manobra passa sempre pela exageração de um estado de crise. Ou seja, é preciso dizer e repetir que há tensões, que as tensões estão a ponto de gerar rupturas e que essas rupturas só podem evitar-se com um governo de concertação. É preciso dizer que as forças armadas enxergam essa tensão, preocupam-se com ela e dão fiança ao postulante a líder da concertação.

A partir desse estado de ânimo, uma figura militar de prestígio insinua-se como disponível para a árdua missão. Faz lembrar a todo tempo a proximidade do Rei e insinua – o mais discretamente possível – que tem decisiva influência sobre o monarca, quase a ponto de dar-lhe as ordens.

Como não era burro, Armada queria um golpe institucional, ou seja, queria criar o vácuo de poder parlamentar e apresentar-se ao  congresso para ser votado presidente de governo. Claro que o congresso faria a escolha sob pressão militar e da percepção exagerada de crise e claro que a manobra pressupunha que o Rei fosse meramente decorativo.

Mas, nesses movimentos, os elementos de baixo nível e mais ignorantes atrapalham o andar dos planos. Não compreendem as sutilezas. Tejero não compreendeu que era inviável uma volta pura e simples à ditadura e não percebeu que o Rei não podia prestar homenagens a um golpe contra a constituição. Não percebeu, enfim, que são possíveis golpes aparentemente dentro da constitucionalidade, embora esses não se façam com Tejeros.

Reuniu uns guradas civis, alguns militares, acreditou no empenho de um e outro comandante e partiu a invadir o parlamento e a dar tiros para o alto. Aí, o golpe já estava perdido para ele e, mais ainda para o General Armada. Para este último, a tejerada foi uma tragédia.

Imagino que ele, Armada, tenha estimulado discretamente o coronel Tejero, mas que não tenha imaginado que o golpista vulgar se precipitasse tão escandalosamente. Um erro de cálculo de quem não podia errar, porque o erro foi traição à monarquia e cobrou-lhe um preço.

Alfonso Armada teve ocasiões de falar do episódio, passados vários anos. O tempo, para pessoas sem honra, tem poucos efeitos, além de fortificar o sabor a infâmia do que dizem. Sustenta que na época dispunha-se a sacrificar-se e ainda insinua não compreender a posição do Rei, como se este fosse seu cúmplice e o tivesse traído.

O sacrificar-se foi que me chamou bastante a atenção. Quase todos os patifes que aspiram com toda a vontade a um posto de comando dizem que se oferecem a um sacrifício. Isso ocorre desde as chefias mais desprezíveis àquelas mais importantes. O aspirante não diz que quer, com toda a vontade, por orgulho vaidade ou crença na possibilidade colaborar, diz que se dispõe a um sacrifício, como se não quisesse.

A reforçar esse traço distintivo dos patifes, basta lembra-se que podiam simplesmente ficar calados, ou seja, querer sem dizer o porquê. Ou podiam dizer que aspiram à chefia porque se acreditam melhores preparados para exercê-la, mas não, o rompimento com a hipocrisia teatral não ocorre.

Nunca ocorre, realmente. O tipo de aspirante a que me refiro sempre é o inqualificável sujeito que se dispõe a um sacrifício, como se fosse extraído de um número diferente daquele dos demais homens, como se não estivesse no plano comparativo das habilidades maiores ou melhores.

E, nada obstante, sua fervorosa vontade, seu desejo irreprimível é simplesmente evidente para todos, como uma tara que o tarado pensa ser totalmente despercebida. É um traço estranho esse, porque revela uma vontade de disfarce tão grande que flerta com a ignorância.

Dominação mediática. A piada permitida.

Os meios de comunicações audiovisuais são instrumentos fortíssimos de dominação, que atuam sem que os dominados consigam percebê-lo. Melhor dizendo, atuam com certas sutilezas que levam os dominados a assimilarem padrões de superioridade e de inferioridade, ao tempo em que tudo aparenta igualdade.

Um exemplo trivial, que me vem agora à mente, são as séries televisivas norte-americanas. Todas elas seguem o modelo de personagens padronizados, segundo a lógica de oferecer os protótipos de identificação social básicos.  Oferecem também as piadas permitidas, ou seja, o campo encontra-se previamente delimitado.

Especificamente, penso agora no chamado Big Bang Theory. Essa série apresenta quatro personagens principais: dois norte-americanos brancos wasp, um norte-americano judeu e um indiano. São físicos ou engenheiros, ocupantes daquela tipologia comportamental que em inglês chama-se nerd.

Seus ridículos são seus traços únicos e, no fundo, não-ridículos. Aparentemente, não há aqui qualquer desnível social, porque todos são objetos de piadas, que se parecem iguais em termos valorativos, mas não são. Há uma estratificação entre dominados e dominadores, perceptível na escolha das piadas.

Sabe-se muito bem que a indústria do entretenimento de massas é detida, em significativa proporção, por judeus norte-americanos. Sabe-se também que é estúpido apresentar uma personagem infalível, porque então a inverossimilhança evidencia o absurdo. A grande jogada é escolher as piadas que se aceitam contra si.

Na série dos físicos, a personagem judia é alvo de piadas por nariz grande, pela indumentária e por uma ginecofilia exacerbada e desproprorcional à maturidade esperada da idade. Isso é precisamente aquilo que foi estabelecido pelos próprios como as piadas aceites.

A personagem indiana é alvo de piadas, mais ou menos sutis, relativamente a homossexualidade e misoginia, o que insinua inferioridade, notadamente em sociedades androcêntricas, em que o tipo dominante é o conquistador. Todavia, o público é levado a não perceber as diferenças valorativas, preso ao fato de que todos são alvos de piadas que, todavia, são muito distintas.

Não é à toa que a personagem do judeu não é alvo de insinuações de homossexualismo, porque essa característica é objeto de uma rejeição profunda pelo judaísmo. Pela mesma razão, não se fazem piadas com o suicídio de judeus ou com deles que tenham inclinações suicidas.

E assim funciona porque eles escolhem os estereótipos e para si permitem aqueles que não têm maiores cargas ofensivas e na medida para dar aparência de igualdade e tolerância.

Claro que fazer anedotas ou apontar os ridículos dos outros em caracteres rejeitados no seu grupo social ou étnico é algo de péssimo gôsto. Mas, é precisamente o que se faz com as personagens que simbolizam o outro. Com o outro, os limites de gôsto ou de cordialidade simplesmente não existem.

E o público fica na sua confortável tolice de achar que os espetáculos mediáticos são inertes em valorações.

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