Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Psicologia social de mesa de café (Page 6 of 10)

A invenção do natural como normal.

Se há qualquer coisa que se aproxima de oposição ao natural, ela é o discurso, ou seja, alguma proposição estruturada a partir de linguagem. Ainda assim, é oposição no limite do paradoxo, porque a linguagem, ela também, é natural à espécie humana, ao menos potencialmente.

O natural pode definir-se como ontologia total da matéria, excluindo-se as formas, pelo menos se as considerarmos no sentido platônico de protótipos da criação. A natureza é o que se encontra dado em termos materiais, o que inclui espécies animais e vegetais, terra, atmosfera e etc.

É comum a várias civilizações ligar o natural a um criador divino, o que não representa grandes problemas lógicos. Todavia, derivar da criação divina do natural a naturalidade de inclinações e comportamentos humanos é logicamente insustentável, na medida em que representa uma deslocação calculada de dois planos, para que artificialmente coincidam.

Se tudo ficasse no mesmo plano, o da natureza, seria impossível conceber o anti-natural, porque equivaleria ao não criado divinamente e, portanto, a contradição interna ao discurso. Assim, percebe-se que o anti-natural define-se com relação a critérios externos aos de definição do próprio natural. Ele define-se com relação a critérios jurídicos e morais, porque não seria concebível por oposição a si mesmo.

Em palavras mais breves, trata-se da evidência de que se tudo foi criado, forçosamente tudo é natural. Se ficássemos por aqui, teríamos a possibilidade de apropriação intelectual do fenômeno, tanto por epistemologia, quanto por religiosidade, porque o campo da criação seria total e sem descontinuidade ou fragmentação ou exceções, porque nada haveria fora da criação.

Cientes disso, os pensadores das grandes corporações religiosas monoteístas deslocaram o âmbito de formulação para o moral e para o jurídico, embora continuando a insistir que se mantinha a discussão no âmbito do natural. A partir de então, teoriza-se a dogmática dos atos contra natureza, como se isso fosse possível.

Ora, se o natural traz em si potencialidades para tais ou quais atos e se ele foi criado, é inescapável concluir-se que as potâncias e os atos decorrentes delas são também criados e, por consequência, não são anti-naturais, antes são tão naturais como quaisquer outras coisas.

Uma conduta pode ser contrária a uma norma, nunca contrária à natureza, porque neste caso simplesmente seria impossível, por externa à realidade. Atenho-me, aqui, ao discurso moral-jurídico contra a homossexualidade, formatado a partir da noção de ato anti-natural. É contradição em termos que serve apenas a finalidades de controle social, ora repressivo e excludente, ora positivo e fiscalizador, conforme o momento histórico.

São exemplos desses modelos – como aponta Michel Foucault, nas suas aulas no College de France, em 1973 – o banimento dos leprosos e depois a fiscalização das cidades em risco de peste. O que se vê, hoje, com relação à prática de atos homossexuais é o funcionamento de modelo repressivo com perversa mistura dos modelos apontados.

Inicialmente, o controle tende a ser positivo e opera a partir da lógica da opção pela autocorreção, o que necessariamente deve ser antecido pela aceitação pelo sujeito a ser corrigido de que pratica atos contra a natureza. Isso implica conceber a inclinação homossexual como espécie de libertinagem e excesso libidinoso e, consequentemente, como tipo de anomalia psíquica.

O segundo momento passa à repressão e exclusão dos que não aderiram voluntariamente ao passo antecedente, aquele da inclusão para autocorreção. A sucessão quase invariável desses dois momentos deveria levar os adeptos da teoria dos atos contra natureza a perceberem que a falta de êxito da inclusão autocorretiva é a prova da inexistência do elemento volitivo e, portanto, da perfeita naturalidade da inclinação em causa.

E deveriam lembrar-se, os perseguidores, que visar a corrigir a natureza é pretender-se também criador, o que redunda em heresia oceânica.

Percepção reduzida por projeção da parte sobre o todo.

Pessoas e grupos tendem a achar-se o centro em torno de que as coisas giram e isso é manifestação de auto-referência com muita inércia. Parece mesmo uma tendência de psicologia social, tão amplos são os efeitos.

Alguns lugares-comuns refletem a atitude de projetar o todo como símile da situação pessoal e de grupo restrito. Aqui, em Campina Grande, é comum as pessoas dizerem que a cidade está deserta e que todos estão em João Pessoa, para o veraneio na praia, nas férias de verão, em janeiro. Semelhantemente, é comum dizer-se que Brasília torna-se cidade deserta no carnaval, porque todos se vão para destinos festivos momescos.

Claro que esses lugares-comuns têm raízes em algo de realidade, mas é um tanto de realidade para poucos, que se projeta como percepção válida para tudo. Ora, muitas pessoas das classes média e alta vão mesmo, todos os anos, como a cumprirem obrigação inadiável, passar o veraneio na praia, no mês de janeiro. Claro que muita gente sai de Brasília e vai passar o carnaval em destinos turísticos ou nas suas cidades de origem.

Mas, basta um pouco de percepção para observar que essas viagens de pessoas de classes mais favorecidas atingem parcela pequena ou muito pequena das populações das cidades que usei como exemplo. É bem reduzido o número dos que podem ter duas casas, uma na cidade de moradia, outra na praia, assim como é reduzido o número dos que podem simplesmente dar-se férias em janeiro, independentemente de quaisquer fatores além da própria vontade.

Quem cria o discurso, que por sua vez cria a realidade aceita, é sempre um grupo reduzido. Ele parte de sua imensa auto-referência e faz da realidade geral a sua realidade própria e o discurso resultante espalha-se e reproduz-se acriticamente por quantos não se inserem nas condições dos criadores do lugar-comum. Trata-se de afirmação de si que toma ares de axioma social amplo e irrestrito, enfim.

O lugar-comum, essa projeção do particular no geral, não é somente deficiência de percepção, mas falsidade numérica observável facilmente. Nestes tempos quentes de janeiro, quem se dispuser a ir ao centro de Campina Grande caminhando, em manhã de sábado, verá tanta gente como nos outros meses do ano. Verá menos automóveis, por estreita margem, mas pessoas no mesmo número.

O mais interessante é que o lugar-comum não é somente um dito descasado da realidade para a imensa maioria das pessoas, ele carrega também um juízo de valor. Quem diz que a cidade está deserta porque todo mundo está na praia, diz que é ruim estar numa tal cidade. Este juízo negativo de ficar numa cidade supostamente deserta, por sua vez, carrega nítida afirmação de pertencimento social.

Ou seja, fica quem não cumpre o ritual – independe que se goste ou não – de passar o veraneio na praia, o que leva a concluir que o juízo negativo é de distinção de classe.

Interessantes consequências da estreiteza de visão que o lugar-comum dissemina são que algumas pessoas vêem-se obrigadas a cumprirem ritual que não lhes agrada, no fundo; que muitas pessoas vêem-se sonhando com a possibilidade de cumprir o ritual, mesmo que não o percebam intimamente com algum sentido.

Julgamento no STF começa como farsa e segue como violação à constituição.

Parte da classe média brasileira delira em gozo extático com o linchamento que o Supremo Tribunal Federal, apoiado e estimulado por grande parte da imprensa brasileira, promove contra réus que não deveriam nem mesmo serem julgados naquela corte. Essa gente já disse Anauê com muita satisafação.

As massas são assim e as coisas pioram quando a imprensa acha conveniente piorá-las e estimula as mais baixas inclinações. Não é necessário estimular as inclinações mais vis, que elas já têm impulso natural mais que suficiente.

Ora, em um julgamento criminal, 10 juízes do tribunal mais graduado de um país e o acusador-geral dão-se ao espetáculo surreal de discutir a condenação sem provas, como se fosse uma tertúlia de mesa de café, onde as coisas vão em termos abstratos e de simples cogitação. Nas mesas de café, discute-se tudo, em hipótese, até a revogação da lei da gravidade, mas em tribunal convém não rasgar a constituição assim explicitamente.

Infelizmente, parece que o único argumento restante contra tal aberração é aquele de lembrar aos relativizadores se desejarão, na eventualidade de virem eles a serem julgados, ser julgados com garantias relativas e a partir de provas tênues, a extraordinária nova postulção do acusador – geral.

Quando o controle social passivo não basta.

A maior parte daquilo que as pessoas respeitáveis e seu público fiel reputam teoria da conspiração não passa realmente de tolices. Geralmente, boas informações são precariamente conectadas, por pessoas que entreviram o escândalo mas não podem traçar suas linhas genéticas.

Outra parte disso que se chama teoria de conspiração é precisamente o que ocorre, evidente, e claro como o céu de Lisboa. Tudo, ao final, é posto no mesmo saco e a parte que interessa é desautorizada junto com as bobagens.

Por isso, as pessoas que comandam o mundo nunca se importaram muito com a informação – que ela quase sempre está disponível – mas com as interpretações e ênfases que a imprensa dará a ela. É seguro agir desta forma, porque muito da realidade é percebido a partir de modelos pré concebidos.

Os EUA desintegrar-se-ão mais drasticamente que a Europa e não adianta fugir ao cerne da questão: lá, a concentração é maior que na Europa. As massas são mais pobres, relativamente, e a aceleração do empobrecimento é maior. Não se cuida, para desespero do pessoal que só fala de educação, do nível das massas, pois ele é muito democraticamente baixo por toda parte.

É muito difícil um império manter-se apenas emitindo notas promissórias e jogando bombas nas cabeças de quem não se pode defender. Gore Vidal, norte-americano e inteligentíssimo – a provar que não são situações antagônicas – tem o cuidado de fixar o fim da era de ouro e o fim do império financeiro em datas distintas.

O primeiro acaba-se quando o conúbio do complexo financeiro – militar – industrial e o Mossad matam o presidente irlandês. O segundo, quando o presidente representante do conúbio matador mata a paridade dólar-ouro e determina que petróleo só pode ser comprado em dólares norte-americanos. De uma data a outra, medeiam oito anos. Vidal é muito preciosista.

A questão não é tanto o que fez o injustiçado vice-presidente de Einsenhower, aconselhado pelo inteligente judeu alemão, com relação à moeda de denominação da única transação comercial importante. A questão é que o país, a nação, para quem for mais romântico, pouco importou. O modelo, como todos eles, tinha prazo e implicava seu fim.

Não é pacífico distribuir cocaína a preços módicos para milhões de pessoas que a não poderão comprar depois, exceto se se tiver para onde fugir, depois que a coisa ficar insustentável. O mesmo vale para crédito.Hoje, não dá para fugir para Londres e não sei se Jerusalém agradará aos fugitivos…

O apogeu de uma trajetória nunca é percebido por quem está em movimento. Com os EUA – falo do povo, não dos banqueiros – não seria diferente. Hoje, são à volta de 300 milhões, todos sem memória de quando eram 150 milhões e sem memória de uma certa fome que matou 03 milhões na grande depressão, entre 1929 e 1939.

À medida em que a curva da acumulação absoluta subia, essa gente subia marginalmente. Pouca coisa era necessária, além de programas de televisão, filmes ruins e os russos estão chegando. Com os russos chegando e pipoca e coca-cola, pagavam-se impostos para grandes guerras perdidas à partida, para financiar Israel e para custear a corrupção política em Washington.

Esse, de certa forma, é um admirável mundo novo. O sujeito encontra-se numa porção do mundo, imagina que ela faz parte de um todo um pouco maior e abstrai do restante, que pode ser qualquer fantasia. Esse tem ABC, CBS, NCB, FOX e outras coisas. Enquanto houver fluxo de dinheiro, por pouco que seja, funciona.

Essa maravilha depende de mais fluxo da periferia para o centro, porque a concentração é tamanha que o fluxo precisa aumentar. Mas, ele não aumenta, embora a concentração aumente. Infelizmente, a história é trapaceira.

Orwell não escreveu 1984 para acontecer no mundo em que Orwell nasceu. Mas, os leitores analfabetos dele achavam que se referia a um modelo político apenas, ou seja, subestimavam a obra e, talvez, o autor.

Aquilo não era peça de propaganda contra os russos que estavam chegando e nunca chegaram. Era uma coisa possível – e necessária, o que é terrível – em qualquer parte que se servisse do discurso da liberdade descasado do que um pouco de liberdade pressupõe.

Os números divergem pouco. Hoje, há nos EUA à volta de 600 campos de concentração prontos a serem usados. A agência federal que os administra, a FEMA, fez uma curiosa compra de milhões de caixões muito resistentes, de plástico, que podem acomodar até três defuntos e suportar grandes pressões.

Hoje, não é proibido torturar, prender e matar cidadãos norte-americanos sem acusação formal, nem prévio julgamento, graças a leis e ordens executivas obviamente inconstitucionais. Há três dezenas de milhares de aviões não tripulados – Drones – a serviço de agências de segurança a matarem cidadãos, a bem de uma coisa vaporosa chamada segurança nacional.

Esse aparato é homenagem à capacidade de previsão da elite norte-americana. Eles perceberam que a coisa rapidamente demandará meios de controle social ativos e repressivos, porque 300 milhões não são poucos.

Há quarenta anos, ainda se apostava somente na TV…

A censura ao silêncio.

As maiores violências são as mais ricas em sutilezas, assim como as maiores amabilidades. Falso paradoxo, pois a sutileza é potência ambivalente e pode ser em ato qualquer coisa, sempre mais que ela realizada mediante brutalidade.

A censura positiva é brutal, ela desce com o peso da estupidez a interditar o que não pode ser dito. A reação à censura positiva é também brutal, pois faz-se da acusação direta da ignorância do censor. Esse ambiente é confortável, pelo que tem de sem-sentido.

Sempre que é proibido dizer alguma coisa há o conforto de saber-se que tanto ela quanto sua proibição não são ameaças a nada. E, além disso, o positivamente proibido existe positivamente. A proibição é amparo ontológico do proibido.

No Brasil – apenas como exemplo – no último período ditatorial, chegou-se a proibir a encenação de Édipo Rei, de Sófocles. A proibição não acabou com a peça, não na apagou da memória dos poucos que a leram, nem aumentou o interesse por ela de muitos que a ignoram. Tampouco reduziu o evidente anúncio dos riscos de achar-se muito potente, risco que correm os príncipes.

Não é preciso muito esforço para perceber que a censura da peça de Sófocles, no contexto das necessidades de defesa da ditadura, foi reação a ameaça quimérica. Em homenagem aos ditadores e a seus empregados censores, inclino-me a crer que foi uma tentativa ingênua de auto-promoção deles, como a dizerem que conheciam o texto tão celebrado. Mas, é claro que o desconheciam…

É preciso investir contra as não ameaças, assim como é preciso matar quem de nada sabe. Assim, joga-se no tabuleiro da brutalidade e todos se entendem bem, com proibições explícitas e reações a elas. Ainda resta a linha de fuga de poder chamar o censor de imbecil… um pequeno conforto vingativo.

Complicado é quando se está proibido ao tempo em que se diz não haver a interdição. Aqui opera-se ao nível da sutileza e deixa-se o controle do que importa para a inércia social que se auto-controla meio involuntariamente. Neste âmbito, as violências podem ser muito maiores, pois há regras, negadas contudo, e desconhecidas pelos que zelam por sua aplicação.

Aqui, o censor é toda pessoa. Ele aplica regras que precisamente desconhece, porque tem que acreditar não estar a serviço do controle. Ora, o melhor controle é aquele que se desconhece como tal, porque assim é mais sincero e mais eficaz. Pratica-se a partir da aceitação ampla, ainda que difusa e mal percebida, de um sistema de justificações recíprocas.

A cumplicidade e a justificação são os principais motores desse esquema, que replica modelos operacionais típicos das relações familiares. A cumplicidade, nunca explícita, é o que leva a tolerar os absurdos dos outros, para contar com a complacência deles quando os absurdos forem os nossos. Essa cumplicidade, contudo, será praticada com reiteradas negações e com afirmações de exercício de rigores punitivos.

Não é de punição que se trata, porém. Esse modelo de controle social difuso é incapaz de punição no sentido próprio do termo, no sentido jurídico portanto. Ele opera entre o linchamento e a permissividade total. Entre os pólos extremos, há gradação de sanções sociais, desde o afastamento discreto até o banimento total.

A justificação é atitude das mais agressivas quando se percebe que é somente uma capa a recobrir um fluxo de mão-única. É a penitência do pecador convicto, a cansar a paciência de quantos não quiserem ser espectadores e atores de uma peça de mau gosto. Este penitente não quer a absolvição, até porque não se crê absolutamente culpado por nada. Ele apenas segue o guia desconhecido porém implacável.

A figura do penitente é profundamente acusadora, pois significa que todos devem assumi-la, à sua vez. Ela insere-se na lógica circular em que o mesmo papel deve ser desempenhado por cada qual, sucessivamente. Todos são culpados e não no são, ao mesmo tempo. É o reino da absolvição, por igualdade de culpas.

Movidas por essas inclinações, as pessoas estão a fazer as perguntas que não são. A pergunta que não é é aquela que tem resposta, de preferência vertida em linguagem científica ou moralista, o que resulta quase o mesmo. O perguntador e o respostador sabem, no fundo, que não há qualquer importância nesse fluxo, mas seguem impávidos e solenes o roteiro pré-estabelecido.

O que está interditado é perguntar qual é a pergunta, porque esse nível de indeterminação poderia levar às portas de alguma sinceridade, o maior de todos os perigos.

O sistema funciona bem porque nove em dez não se negarão a tomar a sério a pergunta que não é. Nove em dez subirão ao palco e oferecerão o triste espetáculo do ator que representa a si mesmo. Um, todavia, não o quererá fazer e a ele não será dado ficar quieto na platéia. A pergunta que não é ser-lhe-á feita e se se negar ao jogo começará a expiar culpas verdadeiras.

Um em dez quererá apenas não ter que mentir, nem ter que falar. Não fora um, não mentiria nem calaria, alegremente daria a resposta que não é e, em seguida, faria a pergunta que não é; o círculo se fecharia e a roda giraria como deve ser. O problema é que não há fora…

Ignorância afirmativa: o que tem de argentino no Colón?

Os maiores sociólogos do senso-comum que há, nas cidades grandes, são os taxistas. Eles são conservadores, em sua maioria, mas não são desonestos intelectualmente, ou seja, não estão a representar papéis aparentemente complexos.

Táxis em Buenos Aires ainda são meio de transporte relativamente barato e, portanto, interessante para deslocamentos grandes. Para pequenas e médias distâncias, o ideal é caminhar e perde muito quem não fizer esta opção.

Quase sempre é possível conversar com os taxistas. Em outras ocasiões, gostava mais de falar de política, mas deixei isso de lado. Hoje, basicamente amenidades e futebol; é bom deixá-los falarem.

E eles são quase unânimes em insinuarem que nós brasileiros e o Brasil em geral estamos muito bem. Eles percebem as coisas muito a partir da taxa de câmbio, da quantidade de sacos que os brasileiros carregam consigo e das opiniões de quantos deslumbrados estiveram lá na tentativa de trazer tudo que for possível na bagagem.

Que nós brasileiros e o Brasil estamos melhores é óbvio, mas isso é negado, internamente, exatamente pela classe média que se comporta de maneira a afirmá-lo no exterior. A mesma gente que insiste em reclamar de tudo, em casa, dá sinais evidentes do contrário, fora de casa!

Prova que certa camada social reclama muito por reflexo condicionado ou até por reflexo totalmente involuntário e incondicionado. Por puro e simples conservadorismo político e preconceito de classe contra um certo ex-presidente da república que, o único, era de extração social realmente baixa.

A parcela da população brasileira que tem do que reclamar e o devia fazer, está em relativa letargia, infelizmente. Mas, quando derem vez ao morro, toda a cidade vai passar…

Bem, o caso é que destinos turísticos de brasileiros em Buenos Aires, de coração e sinceramente, são os centros de compras, desde as evidentes Galerias Pacifico até os centros caros de Palermo.

Mas, é engraçado como há uma pontinha de desconfiança com o entregar-se totalmente aos desejos mais puros e reais. Há que se inserir algo menos comercial ao roteiro e qualquer coisa serve.

Curiosa necessidade humana, essa de disfarçar um pouco as vontades mais verdadeiras. O sujeito, no mais das vezes, queria era sair nu pela rua, correndo, gritando, saltando, com o cartão de crédito na mão, a gritar eu compro, eu compro, como um novo eureka de um tristemente novo Arquimedes.

Bem, o caso é que fomos visitar o Teatro Colón. Este edifício é enorme e belíssimo. Mais bonito por dentro que por fora, de uma beleza suntuosa, de neoclássico eclético. Estão lá os inevitáveis vitrais franceses, os mármores Carrara, os tetos em estuque doirado, os espelhos enormes, o mobiliário terceiro império tardio. Esse Teatro é mais belo que a Opera Garnier, que certamente foi um modelo considerado na época da construção.

O Colón foi o ponto turístico – não tentarei inventar termos para fugir desse péssimo lugar-comum – onde menos avistei brasileiros, afinal não é um centro de compras. Todavia, pouco não significa nenhum. Éramos suficientes para termos direito a visita guiada por uma simpática jovem a esforçar-se por falar português.

A guia da visita dos brasileiros era simpática e servia-se de sagazes meios de agradar a platéia, como desculpar-se inicialmente pelo precário português falado – falando-o perfeitamente – perguntar aos visitantes de onde vinham e contar uma e outra anedota bem suave sobre a construção do teatro.

O perguntar de onde vêm os visitantes produz um belo efeito, pois todos anseiam por falar, mesmo que seja para dizer alguma irrelevância. A cultura da participação, ainda que se participe com um nada, é muito bem reputada.

Lá pela metade da visita, ao cimo do segundo lance de escadas, que dá acesso aos camarotes, a guia parou a explicar que a construção do teatro envolveu três ou quatro arquitetos italianos e franceses, mármores de três regiões distintas da Itália, espelhos belgas, vitrais franceses e por aí segue.

Perto de terminar a exposição, a guia foi interrompida por uma audaz e segura de si senhora do Rio de Janeiro, que a indagou o que naquele Teatro era argentino. Ó aparente sagacidade, coisa rápida que faz alguém meter-se no caminho da grosseria e da burrice…

É perverso tentar constranger pessoas que, em função do ofício, não podem responder adequadamente, embora saibam como fazê-lo. A jovem, muito delicadamente, disse o óbvio: embora arquitetos, mármores e vidros não fossem argentinos, a idéia de erguer o teatro, o sítio e o dinheiro que o pagou eram-no.

Se eu fosse um ser mais tolerante e, portanto, mais dado a provocações e ironias, teria perguntado à senhora do Rio de Janeiro o que ela acha que é brasileiro no Theatro Municipal da antiga capital do Império e da República, exceto o suor dos trabalhadores, e alguma areia retirada de Botafogo.

Mármores, espelhos, vitrais e o restante a compor um típico teatro fin-de-siècle como o Municipal do Rio de Janeiro vieram todos da Europa e nem por isso o edifício pode-se  considerar não-brasileiro.

A lógica fácil, a falta de educação, a falta de cultura formal e o estar sempre à vontade por sentir-se mais rico levam a grosserias imensas, que somente deviam ser praticadas na mesa de um bar, entre pessoas que não estão obrigadas ao silêncio por conveniências profissionais.

A coluna áurea.

O ouro a serviço da feiúra.

Não me lembro se é n´A rebelião dos anjos ou em Os deuses têm sede que Anatole France faz um personagem dizer que a burrice é pior que a má-fé, porque a primeira é incansável e dorme nunca, enquanto a segunda pára para descansar, eventualmente. Trata-se de uma fala de um diálogo, mas pode bem ser tomado por um aforismo, até porque a proposição não é inversível sem perda de sentido.

A comparação de atitudes – muito carregada de valoração, evidentemente – pode ser transposta para outras díades. Claro que se pode perceber aqui a oposição entre involuntário e voluntário e dissolver muito o sentido da proposição, na medida em que se perde o aspecto valorativo. Todavia, é de comparação de termos que andam próximos que se trata.

O caso é que pretendo dizer da feiúra que é pior que o ridículo, porque a primeira afirma-se incansavelmente, enquanto a segunda é produzida mais esporadicamente por fatores variados – incluindo-se a feiúra – e percebida a partir de um juízo não somente estético. O ridículo é cambiante segundo o tempo, o lugar e outros fatores.

É curioso que essa relatividade do ridículo seja proposta para a feiúra, o que revela a maior gravidade da segunda acusação, de que todos querem fugir. De certa forma, tenta-se aproximar muito coisas diversas, porque uma delas é mais temida que a outra. É preciso transformar tudo que se teme: absolutos em relativos e vice-versa.

O novo-riquismo é repleto, tanto de feiúra, quanto de ridículo. A primeira ele esquece, como se não existisse. A segunda ele dilui no relativismo próprio da percepção forjada de dentro para dentro. Porém, ambas estão lá, eloquentes, nos grandes símbolos em que se afirma o novo-riquismo.

O âmbito mais propício às afirmações de feiúra e ridículo do novo-riquismo é a arquitetura e sua filha menor a decoração de ambientes. Os prédios de apartamentos da classe média ascendente brasileira agridem tanto quanto convidam a pensar no que afirmam. São idéias em tijolos, concreto, aço e vidro; idéias impossíveis de se esconderem.

Um desses templos de celebração aberta de si mesmo está muito em evidência, aqui na cidade onde moro. É um imenso prédio de apartamentos para a classe média alta que se passeia nos Land Rovers que invadiram o país inteiro. É um ambiente com a ambição de ser auto-suficiente e permitir ao grupo que o habita isolar-se de tudo ao redor. Ou seja, o sonho do condomínio suburbano de casas – no modelo norte-americano – agora na forma vertical.

Prédios assim têm piscinas, academias de fazer ginástica, quadras poliesportivas, áreas destinadas às brincadeiras infantis, áreas para fazer churrasco e encher-se de cerveja, arremedos de bosques e, o principal, salões para festas.

O prédio mais em moda aqui tem um imenso salão para festas, o que é vulgar, certamente. Invulgar é que esse espaço quadrilátero sem qualquer atrativo especial tem, no centro e sem função estrutural alguma, uma coluna revestida a ouro! Sim, uma coluna, ou pilar se assim se preferir dizer, revestida de escamas áureas.

A coisa, para além de desconcertante e escandalosa, é de uma feiúra que desafia o observador a olhar atentamente a deformidade, sem tirar os olhos com medo ou repugnância. E isso precisamente é o que não pode ser dito. A coluna e seus donos aceitarão, de mau humor, é certo, a objeção do ridículo, que rebaterão com a sincera afirmação da perfeita moralidade da ostentação.

Mas, não é de ostentação que se cuida; não é de moralismo que se cuida. Da mesma forma que alguns decímetros cúbicos de Nardo perderam-se na lavagem dos pés do Galileu, alguns gramas de ouro podem perder-se no bezerro totêmico da classe média alta brasileira. Não há escândalo em pintar paredes a ouro ou mesmo em comê-lo, que isso volta ao pó.

A feiúra, todavia, não volta ao pó, porque dele não proveio. Sua origem é demasiado humana e por isso precisa não ser. É preciso sempre, para os forjadores do bezerro áureo, que seu totem seja visto por um prisma de moralidade, porque de juízo estético correm com as pernas a baterem nas costas.

O novo-riquismo aceita-se como produtor de qualquer coisa, porque acredita-se capaz de estabelecer as próprias balizas de sua interpretação. Certo que aprisionou as possíveis percepções de si e de suas criações, fica à vontade com as aparentes variações e, por isso, não teme o ridículo. As variações estão previamente dadas no âmbito quantitativo e, ao fim e ao cabo, significam nada.

O feio não é parametrizado por essa gente tão moral; ele não se aprisiona por critérios de mais ou menos auto-indulgência: é estranho a essa forma de pensar e, portanto, inapreensível. Evidentemente, o mesmo dá-se com o belo.

Um e outro espécime da fauna novo-rica percebe uma rota de fuga, embora não a consiga trilhar completamente, porque não pode seguir uma rota que conduza para fora, totalmente. Não há fora! Fora, é o perigo. A rota de fuga percebida serve-se da antinomia entre espontaneidade e simulação. Assim, a espontaneidade seria critério de análise do belo.

Acontece que o espontâneo não é o à vontade da falta de graça afirmativa. Ele é, antes, o passear nas possibilidades ou liberdade, se assim se preferir dizer, o que não existe no novo-riquismo, essa forma de ser e estar diametralmente oposta à liberdade. Mas, é preciso confundir a grosseria que se sente à vontade com espontaneidade e liberdade.

Não havia opções anteriores à edificação da coluna de ouro, porque tudo era auto-celebrar-se. Tudo estava pré-condicionado, como em uma espécie de jansenismo social em que todas as manifestações externas são uma só afirmação de meia dúzia de postulados morais de auto-piedade.

O novo-riquismo pede desculpas pelo que é, mas recusa-se a pedi-las pelo que faz. A coluna de ouro é auto-celebração e também um grito por piedade, já que o grupo não se festeja sem algumas culpas. Por serem demasiadas as culpas, não suportam a de fazerem o feio…

Regresso Humano.

Alguns fatos e opiniões puseram-me a pensar no que caracteriza o humano e, consequentemente, o que poderia indicar e significar um regresso. Uma pequena caminhada ajudou-me, como quase sempre, trazendo um e outro pedaço de percepção que preciso articular.

Primeiro, não se trata de apontar a ocorrência de um regresso atual ou as épocas em que o regresso destaca-se. Antes, de tentar perceber se há regresso e, caso positivo, em que consiste.

Humano é, antes de tudo, uma potência, uma possibilidade, que se põe a partir de uma base comum animal e, mais precisamente, mamífera. Os mamíferos raramente matam para outra coisa além de comer, mas acontece de matarem por outras razões. Acontece de matarem por sentirem-se ameaçados – mesmo animais ditos domésticos – e acontece de matarem por utilidade, notadamente os que vivem em bandos.

Não nos esqueçamos da última assertiva, será axial a quanto segue. Matar, utilidade e bando serão um eixo para perceber o humano, consideradas a ação, a finalidade e a circunstância conjuntamente.

Matar, todos nós bichos matamos. Matar-se não é assunto desse texto, pois o assunto mais importante que existe está acima das ligeirezas que aqui vão. Viver em bando, nem todos vivemos, mas não é algo que dite a inclinação para matar ou não.

O combate e a alimentação, as formas que os humanos separaram, são a mesma coisa, nos bichos. Sim, porque os bichos são utilitários, aliás são o cúmulo do utilitarismo que não se enuncia, nem se anuncia, nem se justifica e, por isso mesmo, é utilitarismo somente por vocação conceitual humana. Mas é, enfim, porque não posso ver senão como humano, embora possa agir como bicho.

Um grupo de lobos pode matar para comer e para repelir uma ameaça, assim como um grupo d´alguns desses cães que, por licença da superficialidade nossa, chamamos domésticos. Um grupo de mamíferos pode matar para deixar para trás um indivíduo fraco, ferido e ainda competidor pelo alimento, para reduzir a concorrência. E isso é frequente.

Na malta, o fraco, o ferido, o claudicante, o nascido deformado, são ameaças reais.  Podem retardar a marcha, podem deixar o rasto forte de sangue fresco, aquele que atrai os inimigos. Podem significar o dispêndio do esforço conjunto que põe em risco o próprio conjunto, que lhe drena as forças porque impõe partilha de sobrevida em favor de quem perecerá, enfim. São mortos ou, se se preferir, para amenizar as coisas com idéias humanas, são deixados para morrer.

Essa natureza – como se tudo não fosse natureza – foi transposta para discursos humanos, que pretendem revelar verdades de comportamentos e apontar sentidos obrigatórios. Mas, isso é falso.

O humano é o contrário do utilitário. Ao contrário do que fizeram crer pessoas que se olharam no espelho e viram nisso uma filosofia, o utilitarismo é a antítese da potência, pois ela reside principalmente em ser mais que ele. Mas, o problema do espelho é que ele mostra Dr. Jekyl e Mr. Hyde.

Humano é o fracasso não utilitário. E não o é porque seja isso comovente, mas por ser a única diferença possível e, se não houver diferenças…

Humano é precisamente não matar o espécime pobre, ferido, que sangra ao relento de habitação e do grupo em geral e, sim, achar que se podem dar-lhes condições de estancar o sangramento. Mesmo que custe mais para o grupo inteiro. Claro, também é humano aceder à vontade do ferido, se esta for no sentido de esvair-se até ao final.

Regresso do humano é a simulação de uma natureza não humana, o que resulta possível, porque é humano simular e fazê-lo bem-feito. Regresso do humano é a cópia mal feita do bicho não humano, que não pensou para ser original.

Pois o regresso do humano encontra-se na lógica que autoriza criar perdedores e vencedores e permite a eliminação ou sucumbência dos primeiros como fato natural supostamente decorrente de uma mecânica invariável. Que há mais fortes e mais fracos, é certo, mas que os segundos devam sofrer efeitos próprios das reuniões de outros bichos e os primeiros devam agir como se fossem os outros bichos, é coisa ausente de lógica, porque a lógica é humana e não utilitária por excelência.

Assim, opera-se inversão da lógica, e agora dela propriamente dita, humana, demasiadamente. Agora, o fulano que toma pau no lombo toma-o porque não poderia ser diferentemente. Uma desigualdade torna-se a justificativa dela mesma, o que não passa da deformação da petição de princípio.

E, o que humano resiste, torna-se o supostamente ilógico. Como, ou por que, partem cem contra mil, se sabem que sucumbirão? Porque são humanos os cem, ora!

O amor das aparências.

Tenho o gosto de andar pelos mercados. Não se trata de andar a comprar tudo que vejo, antes pelo contrário talvez. Trata-se de olhar aquela grande diversidade, que já me agrada bastante. Claro que esse diletantismo olhador acaba levando-me a comprar uma e outra coisa, mas não gera qualquer furor aquisitivo.

Eis que inauguram um novo mercado aqui, em Campina Grande, um deles muito grande, de uma rede francesa. Além de bem organizado, tem uma diversidade grande de produtos, o que me permite ficar a olhar desde produtos de jardinagem até queijos.

E permite ver outras coisas, também, porque é um lugar de grande aglomeração de pessoas. Neste caso, reforcei a percepção de que as aparências são adoradas, na selva real que se descobre por trás delas.

Um mercado novo, recém-inaugurado, está todinho organizado. No estacionamento, há faixas para passagem de pedestres, há vagas especiais para deficientes físicos e para idosos, marcadas bem claramente. Há caixas preferenciais para idosos, deficientes e mulheres grávidas há, enfim, tudo isso que dá aparência de educação.

Acontece que nada disso serve, ou serve muito pouco. Acabado de chegar ao templo do consumo, vejo um jovem sorridente pondo seu carro na vaga dos idosos. A tal vaga distingue-se de todas as outras, porque é inteiramente pintada em azul, com o nome idoso em letras brancas imensas. Mais adiante, já quase a entrar no mercado, quando passava na faixa de pedestres, quase sou atropelado por um automobilista apressado dentro de um estacionamento!

Duas coisas são possíveis, para explicar isso: a primeira é o desprezo voluntário e consciente das convenções e regras, como a dizer que são nada; a segunda é a ignorância do real sentido daquelas coisas pintadas no chão ou escritas em tabuletas.

O primeiro caso é menos grave, porque menos passível de correção. É questão de má-educação voluntária e não é reprimida. O segundo aponta o vasto espaço aberto para a melhora das nossas gentes. Precisam saber de quê se trata e, provavelmente, quando souberem as respeitarão.

Todavia, se não há disposição para reprimir os abusos voluntários de quem se pretende conhecedor das normas, nem há para educar quem não conhece as normas e as suas razões, melhor é abolir as aparências e evitar-se o ridículo de uma selva pintada em cores vivas e claras.

Um saber que é poder e faz-se por via do inquérito.

Quase todas as palavras do título farão pensar em Foucault. E, realmente, usei-as por conta de as ter visto demasiado em a Ordem do Discurso e na Microfísica do Poder. Mas, quero ficar somente com as palavras, não nesessariamente com os conceitos foucaultianos e não me proponho a fazer qualquer análise de Foucalt, nem a partir dele. Seria presunçoso, difícil e, ademais, não é o que pretendo.

Há uma forma de saber que se baseia menos na ordenação que na recolha de dados esparsos e quase sempre profundamente associados. Talvez por estarem já associados – ou melhor dissesse por serem previsíveis – eles prestem-se a serem recolhidos e aqui recolhidos propriamente, mais que colhidos. Sim, porque a preexistência é notória, tanto nos modelos, como no próprio recolhedor.

A recolha, por meio do inquérito, não é atitude epistemológica, nem momento pré-epistemológico. Não será a coleta de dados que embasarão uma taxonomia, porque ela já está feita, inclusive ela é antecedente, no inquiridor, da postura inquisitorial. Essa atitude está na mão invertida, porque os elementos serão postos onde têm que estar, ou seja, eles não formarão ou delimitarão um lugar de estada para eles, segundo alguma classificação.

A postura visa, é claro, construir uma verdade em julgamentos. Os parâmetros desses juízos são uma certa moralidade e a detenção de algumas categorias pessoais ou tipos básicos de personagens sociais, elementos que o inquisidor maneja, sem os ampliar ou reduzir. Nesse sentido, a recolha expõe sua essência não epistemológica muito evidentemente, porque o material recolhido não influi na base de análise dele.

O saber do inquérito é inapto para alterar a lógica do inquérito, que segue sempre a mesma, sempre referente a si própria, mecânica e incapaz de desconfiar de si mesma a partir do que recolheu. Trata-se, em muito, da construção de juízos por semelhança e dessemelhança, sem espaços para a sutileza, considerando-se uma alternância entre o contínuo e o descontínuo.

Por essa construção, o inquisidor sentirá pertencimento ou ausência, formará estimas ou repulsas, adequará as coisas ao seu acervo prévio de instrumentos de julgamento, estes sempre imutáveis.O inquérito perde, assim, muito do seu espaço com uma aceleração dinâmica da vida, que parece sugerir sua incompatibilidade com os utilitarismo que, por sua vez, reivindicam a posição de forma excelente contemporânea.

O inquérito mostrava-se bom elemento de poder quando se distinguiam como fortes os que podiam recolher mais coisas e dados, informações, afinal. Em certo momento histórico, os que mais inquiriam estavam nas posições políticas em que a recolha significava tanto uma necessidade tática, como estratégica. Além de associada à posição preeminente, a postura inquisitorial realimentava-se como distinção, por efeito simbólico.

Quando os eixos do exercício do poder deslocam-se, os resquícios dos modelos anteriores anacronizam-se e dispersam-se rumo às periferias. Se é verdade que o fato mais avassalador de uma história recente de cento e cinquenta a duzentos anos foi a urbanização, também é que os resquícios anacrônicos ficaram nas culturas rurais, tornadas em âmbito periférico.

Lá ficaram o saber e o poder pelo inquérito, como elemento curiosíssimo de arqueologia social. Na maior parte das situações, é postura matizada ou que se vai matizando e atenuando, por mescla com novas formas de construção de verdade, de apreensão das coisas e de formação do discurso. A persistência é possível muito porque seu caráter de forma de poder recuou quase a nada, tornando o inquérito em hábito ou somente forma de um saber, ou seja, sem pretensões e, portanto, sem conflitos.

Todavia, há contatos diretos em que o anacronismo não se percebe assim e então atua positivamente. Na verdade, ele – nem qualquer outra postura de construção do saber e do poder – quase nunca se reconhece como uma forma, somente como a forma. Em um jogo social em que todos os jogadores utilizam a mesma tática, a comunicação e o estabelecimento da relação de poder é possível e as coisas transcorrem, digamos assim, normalmente.

Quando modelos diversos entram em contato, a comunicação é pouca, os resultados obtidos são esparsos, a dominação não advém como se esperaria da ação modelar. Surgem, ou o conflito, ou o estranhamento e o desconforto.

 

« Older posts Newer posts »