Alguns fatos e opiniões puseram-me a pensar no que caracteriza o humano e, consequentemente, o que poderia indicar e significar um regresso. Uma pequena caminhada ajudou-me, como quase sempre, trazendo um e outro pedaço de percepção que preciso articular.

Primeiro, não se trata de apontar a ocorrência de um regresso atual ou as épocas em que o regresso destaca-se. Antes, de tentar perceber se há regresso e, caso positivo, em que consiste.

Humano é, antes de tudo, uma potência, uma possibilidade, que se põe a partir de uma base comum animal e, mais precisamente, mamífera. Os mamíferos raramente matam para outra coisa além de comer, mas acontece de matarem por outras razões. Acontece de matarem por sentirem-se ameaçados – mesmo animais ditos domésticos – e acontece de matarem por utilidade, notadamente os que vivem em bandos.

Não nos esqueçamos da última assertiva, será axial a quanto segue. Matar, utilidade e bando serão um eixo para perceber o humano, consideradas a ação, a finalidade e a circunstância conjuntamente.

Matar, todos nós bichos matamos. Matar-se não é assunto desse texto, pois o assunto mais importante que existe está acima das ligeirezas que aqui vão. Viver em bando, nem todos vivemos, mas não é algo que dite a inclinação para matar ou não.

O combate e a alimentação, as formas que os humanos separaram, são a mesma coisa, nos bichos. Sim, porque os bichos são utilitários, aliás são o cúmulo do utilitarismo que não se enuncia, nem se anuncia, nem se justifica e, por isso mesmo, é utilitarismo somente por vocação conceitual humana. Mas é, enfim, porque não posso ver senão como humano, embora possa agir como bicho.

Um grupo de lobos pode matar para comer e para repelir uma ameaça, assim como um grupo d´alguns desses cães que, por licença da superficialidade nossa, chamamos domésticos. Um grupo de mamíferos pode matar para deixar para trás um indivíduo fraco, ferido e ainda competidor pelo alimento, para reduzir a concorrência. E isso é frequente.

Na malta, o fraco, o ferido, o claudicante, o nascido deformado, são ameaças reais.  Podem retardar a marcha, podem deixar o rasto forte de sangue fresco, aquele que atrai os inimigos. Podem significar o dispêndio do esforço conjunto que põe em risco o próprio conjunto, que lhe drena as forças porque impõe partilha de sobrevida em favor de quem perecerá, enfim. São mortos ou, se se preferir, para amenizar as coisas com idéias humanas, são deixados para morrer.

Essa natureza – como se tudo não fosse natureza – foi transposta para discursos humanos, que pretendem revelar verdades de comportamentos e apontar sentidos obrigatórios. Mas, isso é falso.

O humano é o contrário do utilitário. Ao contrário do que fizeram crer pessoas que se olharam no espelho e viram nisso uma filosofia, o utilitarismo é a antítese da potência, pois ela reside principalmente em ser mais que ele. Mas, o problema do espelho é que ele mostra Dr. Jekyl e Mr. Hyde.

Humano é o fracasso não utilitário. E não o é porque seja isso comovente, mas por ser a única diferença possível e, se não houver diferenças…

Humano é precisamente não matar o espécime pobre, ferido, que sangra ao relento de habitação e do grupo em geral e, sim, achar que se podem dar-lhes condições de estancar o sangramento. Mesmo que custe mais para o grupo inteiro. Claro, também é humano aceder à vontade do ferido, se esta for no sentido de esvair-se até ao final.

Regresso do humano é a simulação de uma natureza não humana, o que resulta possível, porque é humano simular e fazê-lo bem-feito. Regresso do humano é a cópia mal feita do bicho não humano, que não pensou para ser original.

Pois o regresso do humano encontra-se na lógica que autoriza criar perdedores e vencedores e permite a eliminação ou sucumbência dos primeiros como fato natural supostamente decorrente de uma mecânica invariável. Que há mais fortes e mais fracos, é certo, mas que os segundos devam sofrer efeitos próprios das reuniões de outros bichos e os primeiros devam agir como se fossem os outros bichos, é coisa ausente de lógica, porque a lógica é humana e não utilitária por excelência.

Assim, opera-se inversão da lógica, e agora dela propriamente dita, humana, demasiadamente. Agora, o fulano que toma pau no lombo toma-o porque não poderia ser diferentemente. Uma desigualdade torna-se a justificativa dela mesma, o que não passa da deformação da petição de princípio.

E, o que humano resiste, torna-se o supostamente ilógico. Como, ou por que, partem cem contra mil, se sabem que sucumbirão? Porque são humanos os cem, ora!