Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Hipocrisias (Page 3 of 14)

A maior conquista dos ladrões é tornar o público moralista.

Ninguém se lembra, evidentemente, por questões cronológicas, mas alguns conhecem o episódio. Dos maiores golpes de enriquecimento ilícito e corrupção generalizada da história recente foi a lei seca nos Estados Unidos da América. A partir de um surto de moralismo destituído de quaisquer razões, criou-se esquema que enriqueceu vários grupos mafiosos e vasta porção dos agentes do Estado.

Proibir o que muitos querem é o caminho mais curto para aumentar a oferta do proibido, a custos maiores e qualidade menor, e para gerar lucros enormes para os vendedores de coisas ruins que não pagam impostos. Tem a vantagem adicional de gerar renda para os fiscais da lei, que recebem para não fiscalizarem o que, de resto, seria praticamente infiscalizável.

O exemplo da lei seca dos EUA nos princípios do século XX não se aparenta muito a coisas a se tratarem de passagem aqui, exceto pelo moralismo que foi seu motivo determinante.

O moralismo é aquilo que a plebe – não se trata de uma questão de dinheiro, sempre é bom dizê-lo – usa. Não conhecendo honra, vai com moralismo. Achando rigoroso demais algo que supostamente é geral e abstrato, como a lei, vai de moralismo. Tendo sido instruída para achar que não há escolhas políticas e econômicas, vai de moralismo.

Hoje, nesta obra de Satanás que é a sociedade brasileira, o mais deformado e longevo esquema de rapinagem e dissimulação que já se dispôs, o moralismo tornou-se motivo primeiro de tudo e ponto central de discussão. Chegamos ao ponto de um lugar-comum ter-se tornado mais que comum: sempre se fala que algum fulano é do bem ou não é. Nem Jó foi alvo de experimentos assim tão avançados, deve-se convir.

Sabe-se de saber sabido – e perguntar de fontes e origens é entrar no argumento em círculos – que certo grupo, componente maioritário de certo partido político, praticou os maiores assaltos aos cofres públicos do país, nos últimos cem anos. A brincadeira foi muito além do contratar obras e serviços mais caros que a realidade e receber uma gorjeta do contratado.

Tratou-se de vender serviços públicos – e não somente as concessões para prestá-los – de vender empresas públicas a preços baixíssimos e com financiamentos amistosos de bancos públicos. A brincadeira foi muito bem feita e implicou, também, na assunção prévia pelo vendedor de vários custos que poderiam ser incômodos para os compradores.

Há um caso muito bonito e revelador: o Estado do Rio de Janeiro tinha um banco. Particularmente, não acho que Estados federados precisem ter bancos, mas se os forem vender, convinha que fosse uma venda mesmo. Pois bem, o banco do Rio, antes de ser vendido, demitiu metade dos funcionários e o Estado do Rio custeou o alto preço destas demissões. Achou pouco o Estado do Rio, vendedor, e assumiu todo o passivo previdenciário dos reformados do banco e, ao final, vendeu-o por alguns trocados ao virtuoso Itaú.

É prazeroso, para o que escreve estas linhas, conversar com liberais defensores de privatizações bem alfabetizados. Mas, direitista bem alfabetizado, assim como esquerdista, é coisa rara e ficamos na infeliz situação de poder conversar pouco, o que é lastimável. O caso é que não há, conceitualmente, com relação à maioria das atividades, quaisquer problemas em passá-las à iniciativa privada e fiscalizar a prestação dos serviços.

Não é recomendável, por outro lado, passar algumas atividades para a iniciativa privada porque implica simplesmente renúncia à soberania e ao poder de decisão. É o caso de pelo menos um banco e de uma companhia de exploração de petróleo.

Problema há em entregar a troco de quase nada muita coisa de valor bem tangível e em setores que poderiam ter boas prestações de serviços desde que se investisse costumeiramente o que se investe antes das vendas. No Brasil, sem mais, não se fizeram privatizações de serviços públicos que são prestados por particulares, cometeram-se crimes e há evidências de subornos imensos.

Há pouco, tornou-se notícia aquilo que já se sabia mas não chegava ao grande número porque os veículos que servem à instrução do grande número trabalham para os beneficiários do esquema fraudulento. Um certo partido político, num certo Estado da federação, recebia subornos constantes das grandes fornecedoras de trens Alstom e Siemens, francesa e alemã, respectivamente.

Quem disse ter havido uma drenagem de aproximadamente cinquenta milhões de dólares norte-americanos do Estado de São Paulo para subornos aos gestores deste Estado foi um dirigente da Siemens, que recebia mais que o devido e devolvia aos imaculados gestores paulistas. O funcionário da Siemens detalhou o esquema dos subornos pagos aos homens de bem, mas nada disso virou notícia ou processo judicial ou investigação do imaculado ministério público.

A seletividade da imprensa majoritária é algo fundamental na criação desta histeria moralizante que se esquece dos maiores assaltos ao Estado brasileiro. Esta imprensa fala para as classes médias, sejam baixas, médias ou altas e o que diz é recebido como verdade absoluta, precisamente porque é vertido nas tintas moralizantes que consistem no básico do pensar médio-classista.

Tanto são eloquentes as acusações aos opositores da imprensa, quanto o silêncio quanto a tudo a envolver certos partidos e certas figuras que contam com a simpatia da imprensa. No meio disto, no meio deste jogo de propaganda mal disfarçada em jornalismo, está o público essencialmente médio-classista, essencialmente inclinado ao linchamento, essencialmente conservador, essencialmente incapaz de reconhecer o quanto não é merecedor do que tem, essencialmente disposto a por o dedo na cara do vizinho por exatamente o que ele faz.

Tornando-se moralista o público, especialmente o médio-classista, o terreno encontra-se arado para semear-se a inquisição de mão única, aquela que levará à fogueira inclusive muitos acendedores de fogueiras. Encontra-se pronto o terreno para a ignorância generalizada da real oposição importante, aquela entre mais ou menos concentração de rendimentos.

Tudo gira à volta da moralidade e os maiores ladrões, os maiores violadores desta moralidade cambiante de botequim, serão os mestres de cerimônia do julgamento de quem faz ou não faz exatamente o que eles mestres de cerimônia fazem à exaustão.

A corporação jurídica sequestrou o sistema de resolução de conflitos.

O primeiro sequestro – e talvez o mais grave – foi do termo justiça. A corporação jurídica, com suas origens nítidas nas castas sacerdotais levitas, apropriou-se de uma palavra que sempre remete a muito mais que as simples operações envolvidas na solução de conflitos entre partes.

Justiça, assim sem mais explicações ou considerações sobre significação construída historicamente, faz pensar em absolutos, em resultados emanados de alguma intermediação com o divino. O termo é dos mais equívocos disponíveis e a escolha foi inteligentíssima pela corporação: O que são operações de adequação de fatos a moldes legais e, outras vezes, manifestações de puro capricho e voluntarismo, tornou-se o dito final: justiça.

A reserva de atuação de certas corporações de ofícios gera problemas imensos quando o desempenho destes ofícios sai da esfera puramente privada e torna-se em serviço público. Sequestrado pela corporação, o que deveria ser um serviço passa a ser oportunidade da corporação fazê-lo sob medida para atender apenas a seus interesses, ou primariamente a estes e secundariamente a todo o restante.

No Brasil, como na maioria dos países, as funções de solicitar, defender, acusar e decidir são reservadas aos graduados em direito e algumas exigem também aprovação no exame de suficiência para a advocacia. Nada disso, vistas as coisas de longe, assegura o efeito mágico sempre invocado: qualidade.

Assim é porque o exame afere o que foi desenhado para ser aferido e isso, circunstância e histórico como é, nunca poderá ser um absoluto atemporal. Hoje, para ser mais específico, o famoso exame de ordem dos advogados, assim como os exames de suficiência técnica para cargos públicos, não passam de testes de sagacidade e conhecimento dos modismos mais recentes.

É recomendável que assuntos criminais e outros relacionados a penalização tenham defesas técnicas, tamanhas são as possibilidades de erros formais que dificilmente seriam percebidos pelo acusado. Semelhantemente, causas privadas entre partes de grande capacidade econômica tendem a demandar solicitadores e defensores com alguma técnica, até porque muito será explicado aos julgadores.

A exclusividade do solicitador autorizado pela corporação de ofício justifica-se e recomenda-se numa porção muito pequena dos casos, se virmos a coisa sob a ótica do interesse do solicitante, que raras vezes precisa mesmo de ajuda técnica. Conclui-se que em grande parte é nada mais que reserva de mercado.

Realmente, a enorme maioria das causas a entupirem os tribunais brasileiros envolve o Estado como réu e não apresentam grande complexidade. Quando o Estado é réu é impossível ignorar que o poder judicial entra em cena como instâncias superposta de revisão de decisões administrativas, por menos que isso soe simpático à corporação.

Alguém pede, por exemplo, aposentadoria ao instituto público e tem o pedido negado. Irá ao judicial, depois, repropor a mesma solicitação, talvez com os mesmos documentos. O primeiro pedido não implicou solicitação técnica, apenas preenchimento deste e daquele formulário e apresentação de um e outro documento.

O judicial decidira a partir das mesmas coisas que o postulante dissera nos formulários e a partir de algum documento mais que imporá ao instituto previdenciário que apresente no processo. O que se conclui, por escandaloso que possa parecer, é que se tem a superposição de duas estruturas e, pior, a geração de trabalho simples e de ganho quase certo para solicitadores. Tudo, convém não esquecer, custeado ao final pelo mesmíssimo Estado.

Ou seja, causas de pouca complexidade e enormes volumes deveriam ser propostas sem necessidade de solicitador técnico corporativo, porque o poder judicial, no final das contas, as decide independentemente do que tenham argumentado os solicitadores e os defensores do Estado. A decisão judicial, como quase toda opinião, já está pronta, à espera somente de algum ajuste aqui e acolá.

O que se chama defesa técnica, na enorme maioria dos casos, não passa de um texto pre-fabricado que não será lido. Importantes são informações que as partes podem trazer para o processo e o Estado sempre assume esse ônus quando as detém.

O que se percebe sem muito esforço é que o sistema funciona muito mais em função de seus interesses corporativos que como algo feito sob medida para que a resolução de conflitos possa acontecer de maneira adequada. Mais grave, considerando-se o absurdo número de ações judiciais que envolvem o Estado, é que esta entidade pagará tudo, tanto seus funcionários administrativos, como defensores, como julgadores e pessoal do poder judicial. E pagará os advogados cujo trabalho resume-se a encontrar os clientes.

Essa litigiosidade em bases deformadas e quantidades obscenas revela que ao sistema e à corporação interessam os conflitos, a ambiguidade normativa, a má técnica legislativa, o despreparo dos serviços administrativos e o protagonismo judiciário. Tudo isso junto e preferencialmente sempre crescente, interessa a todos, porque resolvedores de problemas só se justificam se houver sempre problemas.

Isso tende a chegar a certo ponto em que o custo altíssimo em desproporção à utilidade real fica claro. Já se passou, no Brasil, do ponto em que o sistema resolvedor de causas envolvendo o Estado é mais caro que os pagamentos a serem feitos. Isso, porque a história pode ser esquecida e até meio retardada mas nunca travada, cobrará o preço cedo ou tarde.

Protestos de médicos: a corporação contra os pacientes.

De algumas semanas para cá, tem havido protestos contra tudo e contra todos, no Brasil, principalmente nas capitais e cidades de porte médio e grande.

Na esteira da onda protestadora, a corporação médica brasileira resolveu manifestar-se contra a vinda de médicos estrangeiros – nomeadamente cubanos, portugueses e espanhóis – para suprirem a evidente carência destes profissionais no Brasil.

No Brasil, faltam médicos nos locais mais remotos e mesmo nos grandes centros, o atendimento dos serviços de saúde é deficiente. Os estrangeiros irão precisamente para os lugares que os brasileiros não querem ir, nem mesmo por salários em torno a R$ 25.000,00 (10.000 euros).

O que fica evidente é que a corporação defende somente seus interesses pecuniários e não o principal, que são os interesses dos pacientes que deles dependem.

É perfeitamente lícito defender os próprios interesses e a pretensão de ganhar mais e mais dinheiro. Todavia, é infame fazê-lo sob falsos e disfarçados argumentos, como está a fazer a corporação médica.

Eles querem manter o mercado sob reserva e captura das suas vontades, mas dizem agir em função do interesse coletivo e da qualidade dos profissionais. Ambos os argumentos são falsos, falaciosos mesmo.

O interesse coletivo atende-se exatamente com o aumento imediato no número de profissionais dispostos ao serviço público e não pela estagnação defendida pela corporação mediante a reserva de mercado.

A qualidade é argumento que me traz à mente o famoso dito dos norte-americanos, de que só se perde o que se tem.

Creio que a corporação está redobrando uma aposta muito perigosa na mentira, no disfarce e na estupidez coletiva. É perigoso, porque basta as pessoas perceberem que do ponto de vista delas é melhor que venha para o Brasil o maior número de médicos possível.

A classe média paga caro.

É moda a classe média brasileira reclamar dos preços de serviços e produtos que adquire e eles são obscenos mesmo. O Brasil ficou caro antes de ficar bom de viver, o que é terrível de perceber para alguém como eu, que verá este país rico, mas provavelmente nunca o verá em padrões adequados de vida e de convívio.

Esses preços altíssimos de que reclama a classe média e que ensejam apropriação política oportunista como discurso oposicionista decorrem da postura dela classe média e das que lhe são superiores em termos de apropriação das rendas. Os estratos médios e altos fizeram tudo à medida para que houvesse o elevadíssimo custo que se vê.

A apropriação política dos altos preços brasileiros é algo que não merece abordagem superficial, como a que fazem meios de comunicação dominantes e imbecilizantes, tão bem aceites nas camadas que mais reclamam. Os media limitam-se à cantilena contra a carga tributária, que é alta, mas é alta para os mais pobres, não propriamente para as classes médias e altas.

A tributação brasileira é profundamente regressiva e violadora do princípio da capacidade contributiva, porque incide maioritariamente sobre o consumo. Sobre rendas e propriedade é muito baixa em termos comparativos. O que se encarece muito por tributos encarece-se igualmente para todos: quando eu, o acionista maior do Banco Itaú e alguém que vive com um salário mínimo compramos um quilo de carne, pagamos todos a mesma coisa em impostos, o que é suma injustiça e não demanda explicações do porque.

Uma parte dos altos preços no Brasil advem de aumento recente da procura, num mercado ávido por consumir, sem conhecimentos e sem parâmetros de comparação. Neste ambiente de elevação dos níveis de renda, é fácil praticar altas margens de lucros; é fácil cobrar caro por produtos e serviços medianos ou ruins.

Outra parte disso advem de custos de logística, o que é deficiência inegável num país que passou trinta anos sem gastar nisso e oito desses trinta a escutar que a milagrosa iniciativa privada gastaria no que o governo inibiu-se em gastar. A iniciativa privada nada mais fez que cobrar pelo uso daquilo que recebeu em concessão sem fazer qualquer investimento adicional.

Outro aspecto – o que os reclamantes não podem ver nem aceitar caso vejam – é a resultante inevitável da armadilha da predação, feita pelos que hoje reclamam e que os aprisionou.

Aqui, convém apontar os três pontos fundamentais do custo elevado de vida da classe média: habitação, educação e saúde.

Os preços de imóveis no Brasil não se explicam a partir da ortodoxia doutrinária. É claro que houve aumento grande da demanda das classes médias baixas ascendentes, forçando um aumento de preços dos imóveis visados por esta camada, mas isso não se aproxima minimamente da absurda valorização dos imóveis destinados às camadas mais altas.

O jogo da elevação de preços de imóveis para classes médias e altas seguiu altivo até níveis impudicos porque gerou ganhos especulativos para os adquirentes. Funciona – ainda – como esquemas de pirâmide, em que fica cada vez mais arriscado para os que entram tardiamente. Qualquer crise de desconfiança pora o esquema abaixo e implicará desvalorização profunda desses imóveis.

Se alguém me diz que, como investimento especulativo, vale à pena comprar imóveis pequenos destinados à classe média baixa porque ela apresenta demanda reprimida, eu acredito, faz sentido. Se, por outro lado, alguém me diz que a valsa de famílias de classes altas a comparem apartamentos imensos por preços superiores aos de Paris continuará até ao infinito, eu começo a desconfiar.

Estes últimos, são imóveis que se pretendem semelhantes àlguma moeda fiduciária que paga juros – como o dólar norte-americano – e isso tende a perder sentido à medida em que alguns se recusam a comprar as promissórias. Não há mesmo muito sentido em famílias terem dois ou três aparatamentos de luxo a acreditarem que outras famílias que também têm dois ou três dos mesmos quererão comprar o quarto.

Ou seja, o problema dos preços obscenos dos imóveis de classe média deve-se muito à atitude predatória da própria classe média e às margens de lucro também obscenas dos construtores. Um castelo de cartas que cairá e será bom que caia.

Com relação aos preços de educação e de saúde, as classes média e alta experimentam o que elas mesmas produziram, porque elas detém o poder político. Deixaram os serviços de educação e de saúde públicos tornarem-se ruins porque puderam fugir deles e fazer o Estado pagar para elas por serviços privados.

Ao mesmo tempo em que relegavam educação e saúde públicas ao sucateamento, porque eram para pobres, criavam formas refinadas de assalto ao Estado para que este lhes financiasse educação e saúde privadas, por meio de subsídios em descontos ficais, em subvenções a entidades privadas supostamente de interesse público, em planos de saúde coparticipados e outras variantes do engenho saqueador nacional.

Daí que o aumento dos preços de escolas particulares e de planos de saúde privada são coisas interiores ao modelo das classes média e alta, em que algumas corporações perceberam que tinham campo para ofertarem limitadamente e com mercado certo os serviços e assim cobrarem o que quisessem. Isso resolve-se muito simplesmente com o recurso ao setor público e quando as classes médias demandarem o Estado ele oferecerá educação e saúde adequadamente.

Há, claro, os pontos de reclamação que são difíceis – para quem honre os lóbulos frontais – de abordar excepto pela mais simples lógica capitalista. Restaurantes caríssimos com refeições medíocres, cafezinhos em aeroportos mais caros que em Heathrow, cerveja ruim a oito reais, tudo isso se arranja com o tempo ou com uma improvável recusa ao absurdo.

Agora, é desonesto não perceber que muito disso deve-se ao jogo criado pelos próprios reclamadores e às margens de lucro obscenas permitidas por um mercado imaturo, deslumbrado, que gasta como se gasta dinheiro roubado, que não tem mesmo qualquer gosto.

É patife por a conta em tributos ou em renda do trabalho, onde os manufaturados ainda são muito mais caros que os serviços, ou seja, onde o capital apropria muito mais que o trabalho.

A norma só realiza o imperativo moral, não seu objetivo declarado.

Convencionou-se que o consumo de substâncias entorpecentes é algo mau e que se deve, portanto, buscar reduzí-lo. Sistemas como os de bases legais recorrem, então, a leis, para buscarem os objetivos que supostamente são compartilhados pela maioria da coletividade.

Ocorre que tanto as causalidades, quanto as finalidades entendidas em cadeia levam à confusão, quase sempre pela inserção de um elemento moralizante que nada tem a ver com a objetividade que supostamente conduziria a fixação de objetivos.

Especificamente com relação às substâncias entorpecentes, o problema estaria em que levariam a maior propensão delitiva, além de maiores custos de seguridade e saúde públicas. Essas consequências do consumo de entorpecentes ilícitos são bastante discutíveis e partir de números pode-se chegar às mais diversas conclusões, a depender do que se enfatiza.

Para quem pense destravadamente, o consumo de substâncias ilícitas, por si só, é quase um nada, em quase todos os termos em que se o considere, desde que não se insiram elementos moralizantes e confusões causais seletivas.

Proibir-se o consumo de qualquer coisa não encontra razões objetivas, exceto sob a ótica de quem as vende e de quem lava o dinheiro envolvido, além, é claro, dos interesses de quem se deixa subornar.

O interessante, nisso da proibição de entorpecentes ilícitos, é que ela atende apenas aos anseios moralizantes de quem não quer que algo aconteça, por várias razões que não têm a mínima objetividade. Além de servir a nada além que algo semelhante a querer que a cor amarela não exista, não serve aos objetivos que os anseios moralizantes declaram como capa de suas intenções.

Se a intenção é reduzir criminalidade – inclusive aquela contra as regras da circulação e guarda das riquezas – é de clareza do céu algarvio que muito melhor é a supressão de todas as proibições.

Do ponto de vista da teoria criminal, a autolesão – se ela acontece – não é punível, porque inapta a gerar danos que extrapolem o indivíduo. Daí que é profundamente contraditório o discurso pietista da proteção do indivíduo à revelia da vontade dele, exatamente para o defender. É contraditório e até meio ridículo, porque esse pietismo tem raízes liberais e volta seu discurso para o indivíduo.

O pietismo coletivizante, esse é ditatorial e anti-liberal, porque quer limitar o indivíduo no que se crê ser autolesivo, a bem dos outros. Aqui, a contradição redobra-se.

Ou seja, ambos os pietismos moralizantes a embasarem o discurso da proibição ao consumo disto e daquilo são formas de defender vontades de que algo não aconteça, independentemente de porquê o queiram. E, certamente, este porquê nada tem a ver com cálculos objetivos de finalidades a apontarem que as proscrições são eficazes contra algo que a sociedade julga indesejável.

É algo menos que óbvio que a maior parte da sociedade reputa, sinceramente, desejável que haja o mínimo de criminalidade. Por isso, apostando tudo na crença meio ingênua no sujeito livre e inteligente, acreditou-se que sendo o homicídio indesejável, fosse desejável prever para ele uma punição de privação de liberdade ou de vida.

Haverá quem deixe de matar por medo de perder a liberdade ou a vida e provavelmente o números desses é maior que o daqueles que matarão sem medo de qualquer coisa. A maior parte dos criminosos, a enorme maior parte, não se compõe de loucos ou gênios para que a punição não pesa como ameaça. Por isso, em linhas bastantes gerais, o sistema criminal tem, de fato, racionalidade.

Com a proibição do consumo de entorpecentes ilegais, a racionalidade está ausente. O meio é ineficaz para a consecução do objetivo formalmente declarado. Três conclusões possíveis emergem: ou a escolha deu-se por profunda burrice; ou por profunda desonestidade; ou pela mistura das duas precedentes.

Quando temos duas faces de um discurso, ambas contraditórias com as duas maiores linhas ideológicas de pensamento, certamente estamos diante de um grande negócio, âmbito em que vicejam os discursos cujo nível de oportunismo transborda em contradições sem com isso preocupar-se.

O que há é um tremendo negócio, com várias agências governamentais envolvidas – ópio, cocaína, entorpecentes sintéticos e etc – vários bancos envolvidos e vários níveis de burocracia estatal repressiva envolvidos: todos a se justificarem e ganharem muito dinheiro. Isso, enquanto o sujeito que pratica a autolesão – se aceitarmos esse conceito meio piegas – nada mais faz que se autolesionar e por isso ser punido!

Quando os dois setores, o acriticamente conservador e o calculadamente predador marcham juntos, provavelmente temos grande mentira alçada a verdade, em detrimento de quem nada mais fez do que fazer o que fazem partes da população desde que o mundo é mundo.

As duas forças sociais mais intensas existentes são a vontade de aniquilar o signo do dominado e a vontade de ganhar dinheiro. A utilização de entorpecentes sempre associou-se à magia, ao misticismo, à percepção não-linear, à tentativa da percepção não mediada pelos parâmetros racionais e convencionais aceitos pelo maior número, ao escâdalo do humano destravado.

Ou seja, mete medo no homem médio, contido e compartimentado nas paredes de meia dúzia de idéias que não se devem a razões físicas, metafísicas, científicas ou anti-científicas. A conservação teme o que há de menos temível, mas assim teria que ser com o maior número, que se não temesse o não perigo, não seria escravo.

Engraçado, mas muito engraçado mesmo, é que este medo, antes de tentar a repressão moralizante, tentou um contraponto quase impossível: a mística, a magia, a não linearidade pseudo-científicas e superficiais. É por isso que o conservadorismo médio, conservador e moralizante, nunca percebeu que algumas gnoses, algumas retrações, alguns monaquismos, algumas asceses, nada mais eram que a saída sem o entorpecente, e que elas demandavam algo que por definição foge ao número: conhecimento.

O entorpecido sem entorpecentes – o dos manuais de iluminação – ainda é melhor que o conservador medroso que pede leis. Ele nunca será o que percebeu que os mitos e os ritos são apenas disciplinas, não disciplinas de repetir mantras, mas de conhecer e conhecer, mas ainda são mais que o nazi por nazi e nada mais.

Descendo aos rés-do-chão, o sujeito que entrega seu tempo – não digo entregar seus neurônios, porque isso não acontece – a dizer que usuário disso ou daquilo deve ser punido porque é ameaça à paz pública, é o sujeito que, burro, por um lado, e medroso dos pobres, por outro, não encontra outra maneira de exigir que o mundo á sua volta seja à sua imagem e semelhança.

Todos ou quase todos negam, mas é fortíssima a rejeição à forma de trajar-se diversa, à forma de falar diversa, à forma de perceber diversa. Isso ameaça o mundo do sujeito que precisa viver ameaçado.

Retornando ao início, é desejável que as pessoas delinquam menos contra as vidas e patrimônios alheios, é preciso que se sofram menos agressões contra vida e patrimônio próprios. O que nisso implica haver substâncias entorpecentes ilícitas e quem as use? Implica que haverá, pela ilogicidade adotada, estruturas que reprimam esses usos.

Haverá, delcaradamente, estruturas que visem a reprimir os tais consumos. Mas, porque elas só agem contra os consumidores, que, em perspectiva liberal, nada mais fazem que atuar dentro de suas liberdades?

Proposta para melhorar saúde e educação públicas no Brasil.

Os serviços de saúde e a oferta de educação são universais e gratuitos, nos termos da constituição brasileira de 1988. A fórmula é de abrangência que não se encontra em outros países, na medida em que universalidade e gratuidade não estão condicionados por qualquer coisa além do orçamento do Estado. Não se exigem quaisquer contraprestações, nem a nacionalidade brasileira.

Nada obstante a declaração na constituição, a realidade apresenta dois serviços ruins. É verdade que a saúde, por meio do SUS – Sistema Único de Saúde – teve melhoras na qualidade dos serviços prestados. Na educação, embora os investimentos tenham aumentado significativamente, os resultados são muito ruins: recentemente o Brasil ficou em penúltima posição numa pesquisa a envolver quarenta países.

Não se trata apenas de dinheiro, evidentemente, quando se buscam razões para as deficiências. Há desperdícios e ineficiência, mas a questão central não se encontra pontualmente. No fundo, há problemas porque os grupos detentores de poder real não estão preocupados com os problemas.

Ninguém reclama a sério dos defeitos dos serviços que não usa; no máximo faz ressonância a reclamações que se convencionou bonito repercutir, por pura conveniência de manter uma boa consciência.

Pois bem, o poder real, no Brasil, encontra-se nos estratos sociais que vão das classes média para cima. Esses grupos não se servem ou pouco servem-se de serviços públicos de saúde. Com relação à educação, esses grupos servem-se da educação de nível superior pública e, por isso mesmo, ela é superior à privada, na enorme maioria dos casos. Ainda pela mesma razão, a educação nos níveis fundamental e médio é ruim.

Aquilo que não é ofertado aos estratos médios e altos tende a funcionar mal, embora haja serviços públicos bons, como é o caso da educação superior, precisamente porque seu maior alvo são os estratos detentores do poder real.

A conclusão é inescapável e sua correção pode ser medida pela ojeriza que essa proposição desperá nas pessoas componentes das classes dominantes: para funcionarem SUS e educação fundamental e média é necessário que delas precisem as camadas média e alta da sociedade brasileira.

Ocorre que o sistema todo é conformado para evitar essa utilização de saúde e educação públicas pelas camadas média e alta, o que evita também a melhora da qualidade dos serviços.

Um Estado capturado por minorias cria mecanismos contraditórios às premissas de universalidade e gratuidade dos serviços de educação e saúde. Um desses mecanismos, que deveria ser suprimido – até por imperativo de coerência interna – são as deduções de despesas médicas e com instrução no imposto a ser pago sobre a renda.

É de uma clareza ofuscante a aberração que é deduzir do imposto pago aquilo que se despendeu com algo oferecido gratuita e incondicionalmente pelo Estado. Se algo é posto a disposição das pessoas sem custos e elas resolvem pagar por isso particularmente, não há qualquer razão para esse dispêndio por opção privada ser suportado duplamente extamente pelo Estado que já oferece o mesmo. Isso socializa os custos privados de classes privilegiadas, além de ser um contrasenso difícil de refutar.

Seriam legítimas deduções no imposto sobre a renda de despesas com serviços essenciais não oferecidos gratuitamente pelo Estado que cobra o imposto. Permitirem-se deduções com despesas em serviços ofertados gratuitamente é permitir que por decisão individual o privilegiado evada-se do pagamento de tributos, o que é disfuncional e aberrante.

Isso de a constituição prever saúde e educação públicas universais e gratuitas e ao mesmo tempo permitir que classes privilegiadas deduzam do imposto sobre a renda despesas com esses seviços é típico da hipocrisia fundante da nacionalidade. Faz-se uma bela declaração de intenções e, por vias laterais, faz-se outra norma a manter tudo como sempre esteve e a mesma sistemática de sangria de muitos em benefício de poucos, por meio do Estado.

Como sempre, percebido o esquema subjacente, hipocrisia e contradição são vertiginosos, até para nossos largos padrões brasileiros. E hipocrisia e contradição revelam-se também nas defesas do deformado sistema. Os beneficiários sempre dirão que tem que ser assim porque os serviços públicos são ruins e têm que partir para serviços privados.

Fiquemos com uma parte da objeção, desprezando a das conclusões, evidentemente, para minimizar os riscos de contaminação. Ora, se os serviços públicos são ruins, pode-se buscar sua melhora, ao invés de saquear o Estado para pagar por serviços privados. Pode-se também assumir postura mais sincera e honesta e deixar os serviços ruins para os pobres e pagar os serviços privados do próprio bolso, mas isso seria sonhar com um direitismo só direitista e não desonesto e oportunista, como é nosso comum.

O meio mais eficaz, não apenas de suprimir a contradição gritante, mas de encaminhar os serviços de saúde e aducação públicas para melhora é tornar as classes médias e altas clientes deles, deixando de ajudar esses grupos a pagarem por serviços privados, quando a constituição diz haver os mesmos serviços públicos, gratuitos e universais.

Brasil: promiscuidade público privada essencial.

Os estamentos mais elevados da burocracia estatal brasileira, seja eletiva, seja meramente seletiva, prestam enorme desserviço à implantação de uma república a merecer este nome. E não se trata aqui de falar desse moralismo difuso anti-corrupção, que não sabe mesmo de que fala.

Trata-se de vício essencial a demonstrar, primeiro, que as preocupações com corrupção são contraditórias e, segundo, que a percepção do que é corrupção é corrompida ela mesma.

Corrompida essencialmente é a noção de espaço público e privado, conveniente e inercialmente imbricadas num todo em que as distinções são pontuais e de mera conveniência.

É básico que funcionários públicos, que em teoria não atuam para nada mais que o interesse geral, não podem colocar-se em situações que insinuem conflitos de interesses. Todavia, no Brasil, esta noção básica é atropelada sem quaisquer cerimônias, ao tempo em que o discurso permanece absolutamente contraditório.

É deformante que funcionários públicos tenham e aceitem presentes e privilégios, mas aqui eles os têm e aceitam. Com relação aos presentes, habitualmente os esquecem, como a tentar fazer deles um nada ou uma normalidade silenciosa. Com relação aos privilégios, defendem-nos com o discurso puído de defesa da atuação e não das pessoas.

É antiquíssima a enunciação de que juízes não podem receber presentes. Tão antiga quanto evidente e coerente, posto que resolver conflito entre partes implica não se relacionar com elas. É intuitivo que o relacionamento do juiz com uma parte desloca sua percepção e anula qualquer possibilidade de imparcialidade. Sem imparcialidade, convidam-se os litigantes ao uso da justiça privada, da força.

Pois, no Brasil, acha-se normal que juízes, em grupos associativos, recebam presentes, que atendem pelo eufemismo patrocínio a eventos. Um sindicato ou associação de juízes recebe, assim, de empresas privadas, passagens aéreas, diárias em hotéis de luxo, refeições caras, automóveis para serem sorteados entre os integrantes.

Da mesma maneira, sindicatos e associações de funcionários públicos com algum poder decisório obtém junto a montadoras de automóveis descontos na compra desses produtos, obtidos única e exclusivamente pela circunstância de reunirem certa corporação estatal.

Curiosamente, os beneficiários desses presentes não acham que estejam a ser comprados nem detem-se a pensar na especificidade das benesses, ou porque o sindicato dos coveiros não obtém as mesmas coisas para seus associados.

Isso de não se acharem devedores dos dadores das prendas é realmente preocupante, porque pode ocorrer que realmente os agraciados acreditem-se merecedores daquilo tudo a troco de nada, a revelar imensa ingratidão e defeito de caráter maior que aceitar as prendas. Aceitá-las e dar nada em troca é realmente vil!

E quando finalmente a Yoani Sánchez fala…

A blogueira cubana superstar do momento, Yoani Sánchez, está de visita ao Brasil. Depois de anos pedindo permissão para sair de seu país, Cuba, e outros tantos vivendo na Suiça e por ai vai. A blogueira é polêmica por criticar as consequências atuais do que aconteceu em  Sierra Maestra há tempos atrás, mexendo assim com os brios de uma esquerda latino americana que não deixou, não deixa, e creio, nunca deixará de idolatrar os mesmos feitos.

Pois desde de que conseguiu a tal permissão de viagem, e desembarcou no Brasil, vinha enfrentando protestos onde quer que chegasse. Recife, Salvador, Feira de Santana, enfim… Por outro lado, li algumas contra-manifestações falando que no Brasil as pessoas mantivessem blogs anti-governo sem maiores problemas, assim como em qualquer lugar do mundo.

Pois pra não entrar nos feitos de Sierra Maestra, e nem da Yoani por enquanto, vou falar um pouco do prato principal, mas que ninguém se dá conta, os blogs. Não, não tem nada demais em ter o seu blog, e fazer dele o que quiser, como bem diz Andrei, usando de respeito e bom português, mas, o blog tem uma coisa pela qual os jornais não primam. E disso, quem pode falar é um blogueiro, que eu não sou, aprendi com o Cris Dias, esse sim, blogueiro. O que o blog tem que os jornais não primam, e por vezes tampouco têm, é credibilidade, assim simples e ponto final.

Porque só o blogueiro pra saber disso? Porque vive de seu blog. Jornalista não é blogueiro, blogueiro não é jornalista, são coisas diferentes, muito embora possam coincidir. Os blogs têm que primar pela credibilidade porque possuem audiência frágil, se eu que te leio, descubro que tu elogiou uma marca, porque foste pago, e não me disseste, deixo de ler o que tu escreves. Assim de fácil. Então qualquer blogueiro sabe que se começa a enganar seus leitores com frequência, os perderá, e por conseguinte, seus patrocínios.

Então, voltando pra Yoani… Ela chega no Brasil, enfrenta protestos, e todo mundo acha bonitinho ela calada, sorrindo, ou dizendo que as manifestações contra ela são um exemplo da democracia que não existe em Cuba. Ok… Mas nada dela falar…

Só ai ela resolve abrir a boca… E as primeiras palavras dela?

“A blogueira cubana Yoani Sánchez, em visita ao Congresso Nacional no início da tarde desta quarta-feira,  fez um apelo ao senador Aécio Neves: pediu que ele monitore a situação da restrição da liberdade em Cuba permanentemente. “

“Yoani Sánchez cobra posição “enérgica” do Brasil em relação a Cuba.”

Mas peraí cara-pálida, tu vais ao congresso nacional fazer palanque pra oposição, beleza… Que cada um joga com as cartas que tem… Agora tu saiu do teu blog, que é de conhecimento do reino mineral que se financia pela CIA (como diria Mino Carta), e quer ditar a política do meu país, sobre o teu? Além da ingerência aqui no meu quintal, tu ainda queres que, nossa presidente (ou o futuro presidente), meta o bedelho no quintal dos outros?

Vou te contar viu… Pelo menos o Bono Vox é recebido pelos presidentes… Talvez porque só peça informações sobre programas sociais, e não saia por ai dizendo aos que foram votados o que fazer com os votos…

Ativismo judiciário e mistificação.

Nomear alguma coisa já é condicionar as percepções e análises que haverá desta coisa ou, pelo menos, tentar estabelecer o condicionamento. Os próprios criadores de algo ou praticantes de certa conduta apressam-se a oferecer as balizas de compreensão de suas obras e ações, porque assim sempre se está mais seguro de oferecer tanto a coisa como sua roupagem discursiva.

Quem está fora da corporação atuante tende a deixar-se aprisionar pelos modelos interpretativos oferecidos pela própria corporação, o que leva ao desejado hermetismo e à discussão em círculos. Então, fica-se pelo contra ou a favor, sem que estas posturas consigam estabelecer precisamente sobre que incidem.

Ativismo judiciário é o nome de batismo do exercício ilegítimo de poderes estatais pelo judiciário, em nítida exorbitância do que o sistema prevê. Seus praticantes batizaram-no eufemisticamente, de maneira a pautar todas as análises do fenômeno político em questão. Trata-se, em resumo, de desequilíbrio no balanço dos poderes estabelecidos pela constituição de 1988 e, mais grave, de violação ao princípio de legalidade, que deveria ser a coluna central do estado democrático de direito.

Por outro lado, o nome revela uma contradição em termos, mesmo que isso não incomode os ativistas em questão. Contradição porque o sistema prevê a inércia da jurisdição e, ademais, sua imparcialidade. Daí, é inconcebível, em termos que não violem a lógica mais elementar, que a jurisdição seja ativa no sentido de possuir iniciativa, porque isso viola as duas premissas antes mencionadas: a inércia e a imparcialidade.

A evidente incoerência apontada no parágrafo anterior é contornada pelo mais sutil e perverso argumento de que se trata de interpretar para extrair da lei seu máximo conteúdo. Imagino que pouca gente honesta consigo própria em termos intelectuais se aventure na crença de que a lei tem conteúdos mínimos, médios e máximos, porque o conteúdo da vontade legislativa não é mensurado quantitativamente.

Lastimavelmente, entre as várias tolices que se ensinam nas escolas de direito – protótipos de escolas beneditinas e jesuítas – o postulado de que o juiz interpreta mesmo na clareza é dos mais repetidos e aceitos sem críticas. Mas, como é amplamente sabido, as coisas mais absurdas são as mais fáceis de granjearem simpatias.

Ora, na ausência de dúvida quanto à existência de lei aplicável e quanto à lei específica aplicável, nada há para ser interpretado, sim para a aplicação. Não é objeção viável o dizer que a interpretação estará na base da escolha ou descoberta da norma específica, porque isso dependerá do estabelecimento dos fatos, não de interpretação.

Provado o que ocorreu, encontra-se a norma cabível ou percebe-se a ausência de norma que discipline a situação. Nesta última hipótese, haverá, sim, espaço para interpretação judicial que atraia para o caso a norma mais semelhante possível àquela que se adequaria perfeitamente. Esta ação seria melhor chamada aproximação por semelhança que interpretação, mas sempre preferimos o nome mais propício à ambiguidade.

A lei destina-se a ter vigência e a ser aplicável eficazmente a todos os casos que se insiram nos seus moldes genéricos e abstratos. Por outro lado, o sistema legal brasileiro prevê as hipóteses de suspensão da vigência da lei e da eficácia. Sempre que a norma for contrária à constituição, é lícito o juiz não na aplicar, desde que diga expressamente onde está o conflito e declare a lei inconstitucional.

A suspensão da aplicação de uma lei dá-se em casos específicos, quando a norma inconstitucional é afastada para que se afaste assim a violação de norma superior. Nestes casos, a lei permanece válida abstratamente e segue a incidir em outros casos que não ensejaram a crítica judicial de inconstitucionalidade. Diferentemente ocorre quando a própria lei ou parte dela é atacada abstratamente, sem que isso ocorra em caso concreto, ou seja, em um litígio entre partes.

O supremo tribunal federal pode julgar a validade em si de ato normativo frente aos paradigmas constitucionais e concluir pela sua nulidade e consequente extirpação do sistema jurídico positivo. Nestes casos, a norma perderá completamente vigência e eficácia, o que se assemelha à revogação, embora não seja idêntico.

Negar vigência, pura e simplesmente, a qualquer ato normativo, sem lhe declarar a inconstitucionalidade, isso o juiz brasileiro não pode fazer legitimamente. Não obstante, é o que se tem visto cotidianamente.

Não é apenas no supremo tribunal federal que o voluntarismo judiciário – travestido nessa confusão conceitual que se chama ativismo judiciário – inspira muitas decisões aberrantes e, a rigor, nulas. Em todas as instâncias judiciais generaliza-se o voluntarismo judiciário e se veem decisões a negarem vigência à lei a partir de argumentos pueris e de voltas à lógica.

Raramente alguma decisão traz a declaração incidental de inconstitucionalidade da lei aplicável, somente o afastamento da incidência legal a partir de generalidades ou disfarçada em crítica judicial da validade de algum ato administrativo, o que é o desculpa mais comum para a negativa de vigência da lei a partir da simples vontade pessoal do juiz.

A disfuncionalidade é enorme, porque se trata de exorbitância de função e desvio de poder, em confronto com as competências do poder executivo e principalmente com as do poder legislativo.

O voluntarismo judiciário provindo do supremo tribunal federal é o mais grave porque foi apropriado e patrocinado pelo discurso superficial e oportunisticamente moralizante da maior parte da imprensa. Aqui, o voluntarismo que não aplica leis senão vontades pessoais está de mãos dadas com a teoria do estado de exceção.

A bem de promover uma moralização – como se a finalidade do Estado de Direito fosse a moralidade e não a legalidade – o mais elevado tribunal do país viola as leis e a constituição, que ele deveria proteger. É ocioso dizer que a cruzada moralizadora é de fancaria e não passa de perseguição política seletiva, porque seria demasiado estúpido, até para nossos padrões, achar que a moral é qualquer coisa mais que vontade de mandar nos outros.

Busca-se retirar da discussão o único âmbito que está a cargo do judicial, que é a legalidade. Assim procedendo-se, as coisas deslocam-se, tanto da política, quanto do jurídico, para o nebuloso campo dos códigos pessoais e grupais de condutas, de resto amplamente cambiantes e precariamente estabelecidos. A marcha da patifaria disfarçada conseguiu até inserir na constituição um nada jurídico que chamou de princípio da moralidade administrativa.

É aberrante postular-se que a administração pública obedeça à vacuidade conceitual que atende pelo nome de moralidade. A administração, como todos os cidadãos, atende, sim, à legalidade, que é o resultado da vontade popular manifestada pelos representantes eleitos legitimamente. Na lei, feita por quem a deve fazer, já estão todos os antecedentes axiológicos que levaram ao estabelecimento de prescrições gerais e abstratas.

Há pouco, o voluntarismo judiciário do supremo tribunal federal chegou aos píncaros. Na ação penal 470 foram condenados sem provas trinta e tantas pessoas e, entre elas, três deputados federais. Inúmeras garantias constitucionais foram violadas frontalmente neste julgamento de exceção, pautado pelo furor de linchamento da imprensa.

O princípio de que cabe à acusação provar a culpabilidade dos réus foi para os confins do sistema jurídico. O de que a ausência de provas e a presença de dúvidas ensejam a absolvição dos réus, idem. O do juiz natural e do duplo grau de jurisdição evaporou-se. Nesta encenação de julgamento, o supremo tribunal federal cruzou o Rubicão.

Porém, depois de passado o rio inviolável, o pior vem: o saque da cidade em que não estacionavam Legiões. Primeiramente, o tribunal que estabeleceu sólida jurisprudência contra a prisão antes da sentença definitiva ensaiou o autoritarismo de prender os réus antes do trânsito em julgado. Apenas impediu essa aberração de consumar-se a falta de habilidade do acusador geral, que tentou manobra infame até para quem à infâmia acostumado.

Depois, a pior violação ao sistema inaugurado e aparentemente regido pela constituição de 1988: a pretensão do supremo tribunal federal de cassar mandatos parlamentares de réus condenados. Aqui, servem-se da confusão de duas situações distintas.

No Brasil, há um anacronismo que é a justiça eleitoral. Ela julga a existência de partidos políticos, recebe pedidos de candidaturas, procede aos registros, analisa-as, julga-as, conta os votos, concede diplomas aos eleitos, nega diplomação aos que descumprem requisitos. Pode ocorrer que algum agente político eleito venha a perder o mandato popular porque a justiça reputou ausentes os requisitos para a elegibilidade e o julgamento final deu-se após a posse.

A perda do mandato, nestes casos, não decorre de cassação, mas de constatação de irregularidade prévia da situação do eleito e empossado. Aqui, quer-se dizer que o eleito não poderia nem mesmo ter disputado votos legitimamente. Trata-se de incapacidade política por fatos anteriores à eleição, constatados definitivamente pela justiça eleitoral após a consumação da eleição e da posse.

O direito brasileiro não conhece a cassação judicial de mandato eletivo de quem foi eleito legitimamente. Quem cassa um parlamentar é a casa legislativa a que ele vincula-se, somente. Trata-se de previsão constitucional expressa e sem ambiguidades, que se encontra no artigo 55.

Se um deputado federal ou senador da república é condenado criminalmente cabe à casa legislativa respectiva abrir processo de cassação de mandato por falta de decorro parlamentar, porque o mandato conferido pelo povo só pode ser retirado por seus representantes.

Preconceito de classe.

O caso mais evidente de preconceito de classe, a unir parte do 01% a parte da classe média escrava dos primeiros, é aquele que resulta na Lulofobia. Não é disso que pretendo falar brevemente. Lula é figura emblemática, mítica mesmo, que concentra essas manifestações, como alvo preferencial, e concentra também comentários e análises.

Todavia, o preconceito de classe tem várias manifestações, algumas delas até mais interessantes, afastando-se o viés puramente político, que a Lulofobia. Ele, o preconceito de classe, é mais forte que o verniz técnico e acadêmico que a classe média ostenta orgulhosamente. Ele está em tudo e sua mais interessante manifestação é a contradição de um grupo que se diz democrático pregar diretamente contra a democracia.

Ocorre, no Brasil, de se elegerem, aqui e ali, parlamentares não extraídos do empresariado e das máfias do direito, da medicina, das igrejas cristãs e da engenharia. Ainda é raro, mas tem havido a escolha popular de representantes populares. Um dia, teria que haver.

Esses parlamentares, deputados federais, deputados estaduais e vereadores, costumam ter alcunhas deliciosamente arcaicas, daquelas que associam a um nome a profissão ou o lugar de origem do sujeito. São os Chico da Feira, Zé da Sopa, Antônio Sapateiro. Isso dos nomes faz a delícia da pequena burguesia, grupo ávido pela chacota vulgar e apontadora do dedo. Ávido por rir da queda, do aleijão, da gagueira.

O médio-classista típico, ascendido socialmente há uma ou duas gerações, orgulhoso do seu diploma de alguma coisa, piegas e grosseiro porque o diploma não o instruiu nem o tornou delicado, volta suas baterias contra o palhaço, o futebolista e o feirante que se elegeram parlamentares. O foco centra-se precisamente na origem do parlamentar, que se evidencia nas suas posturas, expressões corporais, na maneira de falar, na sua vestimenta. A crítica pequeno-burguesa é baseada nos símbolos que ela percebe e a partir dos seus padrões distorcidos e pobres.

Dirão, em uníssono, que é absurdo o nível dos parlamentares que se encontram nas casas legislativas. E o dirão com ares e falares que são exclamações a cada pausa. Dirão que esse povo é mal educado e por falta de educação elege representantes inadequados, porque vestem-se, falam e têm origem social que os associam ao burlesco.

Esquece-se a pequena-burguesia enfurecida que ela é meio de cultivo da grosseria, do arremedo de modos estranhos, da cultura semi-letrada, da moralidade de mão única, do oportunismo, do cultivo da falsa ingenuidade e da falsa modéstia, da covardia. Ela é incapaz, salvo por alguns exemplares que devem sua excelência ao azar, de valores positivos e não copiados.

O pequeno-burguês afirmativo faz-se forte na meritocracia, que identifica ao seu saber meramente técnico, que não transborda um mililitro para outras sendas. O sujeito licencia-se em direito – para usar o exemplo mais comum – e não sabe coisa alguma que não seja o besteirol que aprendeu na faculdade e nos  cursos para ingressar no nirvana do serviço público.

Ou seja, são vagas de técnicos superficiais, ruins até na técnica que estudaram, incapazes de juízos estéticos, incapazes de pensarem por sí próprios, desconhecedores de história, de literatura, de ciências naturais, de boas maneira, de tudo, enfim, a porem o dedo acusador sobre o personagem burlesco que traz a legitimidade popular.

E essa gente repete – sem saber o que significa – o discurso aprendido segundo o qual há um estado de direito, que passa por eleições e é, por isso, democrático. Mas, no fundo, ignora o que pode haver por trás do discurso, seus fundamentos; sabe nada de democracia e suas noções de encadeamento lógico são primárias.

O que o pequeno-burguês linchador acusa no parlamentar de origens humildes é ele mesmo, é o que há nele mesmo, exceto o oportunismo, claro.

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