Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Hipocrisias (Page 2 of 14)

Suárez, a FIFA, o fetichismo e a construção da anomalia.

Todas as entidades, sejam públicas ou privadas, com origens culturais no mundo greco-romano-judáico recorrem ao discurso jurídico para afirmar-se. O que caracteriza a cultura ocidental, mais que qualquer outra coisa, é a lógica de tribunal e a hipocrisia.

Justiça, no sentido de equidade, nada tem a ver com lógica de tribunal. Na verdade, esta última é a grande avalizadora da injustiça, o que não representa problema algum para nós, que afastamos esta contradição com boas doses de hipocrisia.

A FIFA é aquela entidade a cuidar do futebol no mundo todo, servindo-se de seus tentáculos em cada país. É um negócio multi milionário mesmo se não se contabilizarem os dinheiros sujos que por ela passam.

Recentemente, a inclinação da FIFA para a delinquência financeira, notadamente o pagamento de subornos e o branqueamento de capitais, vem merecendo mais destaque. Aqui e acolá sabe-se de algum caso e não é de todo impossível que algum funcionário menor tenha que haver-se com a justiça na Suíça.

Suárez é um brilhante atacante uruguaio que atua no Liverpool, atualmente. É o atual artilheiro do campeonato inglês, tendo marcado apenas trinta e um gols…

Eis que Suárez, num lance típico de área, em que atacantes e defensores se agarram numa cachorrada imensa, mordeu o ombro do defensor italiano. Começou um movimento estranhíssimo para tornar esta imensa banalidade num ilícito gravíssimo.

Pois bem, a FIFA puniu Suárez com suspensão de nove jogos, multa de U$ 247.000,00 e banimento por quatro meses, por este nada acontecido no jogo entre Uruguai e Itália. Um dia depois de anunciada esta punição redentora, de caráter preventivo, como tem que ser alardeado para seduzir as massas, a própria vítima da mordida disse que era um despropósito.

Coisas muitíssimo mais graves ou nunca foram punidas, ou mereceram punições muito mais suaves. Basta lembrar a cotovelada de Leonardo em Tab Ramos, que caiu desacordado imediatamente, no jogo entre Brasil e EUA, em 1994. Por esta ação violentíssima, Leonardo foi punido com suspensão de quatro partidas.

O mais significativo desta encenação de vaudeville no caso Suárez é como é fácil tornar uma banalidade, um nada, em algo a espelhar a seriedade da entidade, que pune exemplarmente as ações violentas. A construção dessa fraude discursiva faz lembrar o pensamento de Foucault.

O discurso baseia-se fortemente na premissa de que é necessário punir para evitar que ocorra novamente. E todos dizem, a todo momento, que esta já foi a terceira mordida dada por Suárez, como se isso tivesse alguma importância. Há futebolistas que dão dez ou mais pancadas violentas por partida, enquanto o sacrificado Suárez deu três mordidas em toda a carreira.

Aqui, novamente, algo que Foucault sempre chamou atenção relativamente à construção discursiva da figura do infrator: há que se fazer um arrolamento de condutas, uma listagem pregressa que constitua um fio delitivo contínuo a indicar que se trata de uma personalidade anormal.

É curiosíssimo perceber como a enumeração de três condutas iguais leva a frêmitos e acusações de reincidência, como se não houvesse dezenas de casos muito mais graves e mais constantes, que não merecem qualquer punição.

A coisa tem ares de fetichismo, por outro lado. Das mordidas de Suárez não resultaram quaisquer danos aos outros jogadores. Muito diferente das cabeçadas, cotoveladas, soladas na canela, carrinhos por trás a prender o pé de apoio da vítima, pontapés e até socos, que não são incomuns. Muito ao contrário, o futebol, hoje, é bastante violento e duro.

O que mais escutei falar disso, depois de opinar que se trata de uma palhaçada, foi: porra, mas foi uma mordida! Sim, foi uma mordida, e daí? Acaso é pior que uma cotovelada? O caso é que poucos param para um momento e daí, em que se pensa com calma e se vê a bobagem erigida em delito grave.

Qual o problema que foi uma mordida? Nenhum. O caso é que mordida é como se fosse algo impróprio ao futebol, como se houvesse algum tipo de violência própria a este esporte. Este é o campo da interdição simbólica, do medo e do fetichismo.

Não pode morder, embora possa dar pontapés, por em risco tíbias, perônios, tendões e outras coisas mais cujas lesões são graves e de difícil recuperação. A mordida foi erigida em quase tabu e um mal em si mesma, independentemente de considerações sobre sua lesividade potencial e real no caso concreto.

As interdições de matriz no tabu são assim, elas não são por parâmetros objetivos e racionais dirigidas a condutas mais graves que quaisquer outras. Elas são graves porque subjaz algo de sexual nessas condutas, algo de fetichista e algo de religioso.

A gravidade da mordida que não machuca é semelhante à interdição católica da masturbação, algo cuja lesividade é zero e cuja reprovação é puramente baseada em simbolismo.

Fato é que esta comédia em que se sacrificou Suárez no altar da delituosidade criada a partir de fetichismo serviu à FIFA, que pode pôr em prática o discurso de tribunal, invocar a sedução das punições exemplares e preventivas e distrair a atenção do público das coisas reais que são seus casos de profunda corrupção.

A juridiquice a serviço da demofobia e contra a constituinte da reforma política.

Resultou da assembléia constituinte instalada pela emenda nº 26 à constituição de 1969 o que se esperava dela: um documento de compromisso, muito longo, mal redigido, apto a alimentar o fetichismo litigante, enfim, uma obra feita à semelhança dos seus autores, tanto quanto às suas capacidades, quanto relativamente às suas aspirações.

Claro que há coisas boas e elas são, basicamente, o elenco dos direitos fundamentais, abrigados sob a cláusula de imutabilidade exceto por rutura institucional plena. Não podiam escapar a esta tendência jurídica à irrealidade, a par com a não aceitação de suas pretensões geológicas. A conformação do Estado, essa ficou especialmente mal feita, o que não se sabe se foi de caso pensado ou por puro descuido.

A federação não apresenta incompatibilidade com o parlamentarismo e deveríamos ter adotado esta forma naquela ocasião. Posteriormente, sempre foi adiada ou afastada a discussão, porque ela sempre retornou como golpe de ocasião contra o grupo instalado no poder. Semelhantemente dá-se com a reeleição para cargos executivos, que deveria ter sido prevista no texto original e que foi criada como golpe, depois, ao sabor de circunstâncias.

Curiosamente, os constituintes quiseram proclamar, logo no início, que o poder emana do povo, que o exerce por meio dos seus representantes eleitos, ou diretamente. A fórmula, a despeito de meio piedosa, está suficiente e merece o destaque. Tanto merece, que foi esquecida pelos guardiões das juridiquices, que aspiram muito mais à criação de um Estado tecnocrático que à democracia.

Certamente que a puseram lá no início e sem ambiguidades – algo raro nos textos legais brasileiros – porque nela nunca acreditaram. O poder nunca emanou do povo, nunca foi por ele exercido e a expectativa das classes dominantes é que nunca fosse, ainda que timidamente.

Agora, fala-se na convocação de plebiscito para consulta popular sobre a instalação de constituinte parcial a visar a reforma política. Melhor seria dizer reforma do Estado, mas o nome não compromete a ótima idéia. A governação do presidencialismo de maioria circunstancial é especialmente complicada no Brasil e as coisas precisam ficar mais claras, até para ficarem mais baratas.

Parece-me que mais uma vez perder-se-á a ocasião de afastar a figura do Chefe-de-Estado das intrigas mesquinhas do dia-a-dia, ou seja, não haverá parlamentarismo. De qualquer forma, convém redesenhar o presidencialismo brasileiro e retirar do congresso nacional as possibilidades tão amplas de ser chantagista e pusilânime, ou seja, dar-lhe responsabilidades a par com seus vastos poderes.

O espectro político ideológico não comporta tantas variações quantos são os partidos políticos. Conclusão óbvia é que várias agremiações representam as mesmas coisas ou representam coisa nenhuma, o que vem a dar praticamente no mesmo. Não se cuida de querer alguma espécie de bipartidarismo, mas da evidência da utilidade da cláusula de barreira.

O financiamento das campanhas eleitorais tem de ser público, a partir de um fundo a ser repartido conforme as representações existentes antes do pleito futuro. Isto evita a captura despudorada dos partidos pelos interesses econômicos e afasta a insegurança jurídica subjacente aos financiamentos privados por caixa 2.

Todavia, além dos aspectos puramente eleitorais, ou seja, relativos diretamente à forma de se fazerem eleições, é ocasião para reformar o Estado e inibir um jogo perigosíssimo que se tem visto aprofundar-se. É necessário estabelecer o que é o poder judiciário, que padece da legitimidade do voto popular.

O aplicador – e excepcionalmente intérprete – da lei não vai além disso, porque não pode escolher nem criar a regra sem para isso ter sido escolhido pelos cidadãos. O judicial brasileiro viola esta regra básica há tempos e fá-lo sem quaisquer críticas consistentes nem dá sinais de querer retornar a ser o que pode ser num panorama estritamente formal.

O Brasil tem uma aberração chamada justiça eleitoral, que avança sempre no seu afã de legislar sobre as eleições, superpondo umas às outras camadas de resoluções confusas e muitas vezes contraditórias. Vezes há que avança contra competências do poder legislativo como se fosse uma brigada de ungidos de Deus.

 É comum a insegurança persistir até depois das eleições e é possível entrever que situações mantidas em suspensão servem bem à causa da desmoralização da política, algo que interessa às corporações burocrático-jurídicas, mas não ao país.

Evidentemente, a corporação jurídica, dentro e fora do Estado, cerrou fileiras contra a convocação da constituinte exclusiva para a reforma política. A demofobia funciona como o medo do fogo nos animais que não falam: é instintiva. É tão forte que a primeira barreira violada é a da coerência.

Ora, nada há de juridicamente impróprio na convocação de uma constituinte parcial e específica, por meio de plebiscito. A própria constituição vigente previu os instrumentos de participação popular direta, bem como as duas formas de consulta aos cidadãos: plebiscitos e referendos.

Por outro lado, a reforma que se busca não atinge os fetiches supremos dos juridiquistas, as cláusulas pétreas. Aqui, não me contenho e abro um parêntesis para admirar o gosto do ridículo e o romantismo tardio do juridiquismo. O sonhar com regra petrificada beira a loucura! Não se petrifica nada na história e o direito está dentro dela, não fora.

Se os constituintes não tiveram a coragem de evitar fórmulas democráticas e a criação de instrumentos de participação popular, seus sucessores deveriam obedecer às aparências e jogar o jogo pelo regulamento. Aberrante é, com medo do que pode resultar, trabalharem contra a idéia socorrendo-se de grupos que, se puderem, suprimem o próprio congresso.

Enfim, não interessa à melhoria da governação do país afundar-se em discussões tão bizantinas quanto insinceras sobre a possibilidade da instalação da constituinte parcial e específica, após aprovação popular da convocação. É perfeitamente possível submeter a idéia ao povo e instalar a assembléia constituinte, porque, afinal, a soberania é popular.

Absolutamente tutelados.

A rebelião das massas é indissociável do mito da invulnerabilidade e da crença irracional e fetichista no progresso. Portanto, é indissociável da pequena-burguesia, seu meio de cultura por excelência.

Essas crenças, hoje triunfais a ponto de não se indagar do estado anterior de coisas, como se estágio anterior não tenha havido, não resultaram de alguma evolução natural. Realmente, a história e as conformações sócio-culturais nada têm de naturais, assim como não há natureza humana. Essas coisas são criadas dentro das possibilidades e da plasticidade social.

Aquilo que uns anteviam nos anos de 1920, estabeleceu-se avassaladoramente depois da segunda grande guerra. O modelo norte americano de superficialismo, consumismo e auto-engano triunfante dominou os dois lados do Atlântico e parte da Ásia. E fez estragos duradouros, que não mostram sinais de reversão. Antes, contrariamente, a rebelião das massas continua a dar seus mais patéticos exemplos.

Não é no povo mais pobre que a massificação revela-se no seu mais profundo ridículo, mas na classe média alta. Está última adotou o plebeísmo supremo que é viver conforme à moda como estratégia constante de uma ação que parece pressupor a inexistência de história, ou seja, o presente contínuo. Há um aparente paradoxo em viver na moda e estar como em um presente contínuo. Mas, como dito, somente aparente, basta pensar um pouco.

Incapaz de construir a própria narrativa de suas aspirações e defesa de seus interesses de classe – por demasiado ignorante e insincera – ela recebe da imprensa o que reputa ser um discurso a revelar absoluta comunhão de interesses entre os emissores e os receptores. Não percebem que os pontos de contato são esporádicos e que a imprensa defende-se apenas a si própria.

Essa incapacidade de percepção decorre de ter acreditado – entre outras dezenas de tolices – na inexistência de classes. Assim, recebem discurso pronto desde cima e creem que ele representa a defesa de interesses comuns a vários grupos muito diferentes. Há nisto, obviamente, algo mais patético, que é o constante achar-se parecido com o 01%, ou seja, o identificar-se por cima, que é muito revelador do espírito do servo.

A moda, a poucos dias do início do mundial de futebol no Brasil, é torcer contra a seleção nacional. Torcer contra a seleção brasileira é, para a classe média alta, uma forma de reclamar do governo central, porque queriam apropriar-se do que é gasto com os mais pobres. Foi-lhes ensinado pela imprensa que esta é atitude eficaz e de gente cosmopolita, ou seja, de gente que já foi comprar tudo que podia em Buenos Aires e Miami e aborrecer-se em Paris sem poder dizer isso, claro. Mas, esse discurso soa moderninho apenas dentro da classe média alta, embora ela não o perceba.

Acontece que a imprensa faz e desfaz o discurso anti seleção brasileira conforme seus interesses comerciais e é certo que ganharão muito dinheiro neste mundial. Ou seja, há um momento em que se mostra necessário recuar desta estupidez, sob pena de, além de perder dinheiro, indispor-se com outros setores que também ganham muito e com a maioria da população, que não acha muita graça nesse sentimento contra a seleção do país.

Dos aspectos mais curiosos é que a classe média alta não se sentirá traída quando a imprensa esquecer-se do besteirol de torcer contra a equipe nacional. Sim, porque ela crê sinceramente que a idéia é sua e não algo recebido de fora e assimilado perfeitamente porque a mensagem tinha destinatário certo.

Não apenas ignorante e insincera, esta classe caracteriza-se pela covardia frente ao grandioso a par com a disposição para fazer muito barulho por bobagens. Assim, ela não tem coragem para ir brandir seu espírito anti-copa e anti seleção nacional em frente aos sindicatos dos hotéis, bares, restaurantes, aeronautas, trabalhadores nos transportes em geral, por exemplo. Seria interessantíssimo que o fizesse…

Interessantíssimo também, a revelar que replicam com defasagem o que se lhes ensinou, é que nunca houve coisa semelhante, nas mesmas dimensões, nos outros mundiais de futebol, disputados em toda parte. Ora, se se tratasse de algo pensado e original, sua ocorrência seria mais ou menos estável ao longo do tempo. Mas é histeria e tem todos os ingredientes disto.

Uma parte dos alto médio classistas abandonará esta tolice e torcerá pela equipe nacional, esquecendo-se da anterior fúria discursiva e atendendo à temporária suspensão do discurso pela imprensa, que estará ocupada em ganhar dinheiro com publicidade. Outra parte permanecerá como está, mas não acusará a imprensa de ter cessado a carga, porque é fiel à crença de que este anti seleção saiu das suas próprias cabeças.

Agora, engraçadíssimo será se o Brasil for campeão….

A má-consciência do ladrão. Ou, tirem esses pobres da minha frente!

Em países do que se convencionou chamar mundo desenvolvido, avançam medidas de higiene social. Trata-se de tanger os resultados da concentração obscena de rendimentos para longe das áreas habitadas e frequentadas pelos que ainda se mantém nos 10%.

Vêm à mente os casos de Espanha e EUA. Na Espanha, recentemente, foi aprovada norma que viola as bases do Estado. Ela permite que grupos de segurança privada exerçam poderes de polícia em áreas comerciais, ou seja, permite que detenham, afastem, mesmo que não se trate de agentes do poder público. É aberração por dar função própria da soberania a grupos privados.

Ainda em Espanha, normas recentes criminalizam catar lixo, outra aberração, porque não há violação qualquer ao direito de propriedade no apropriar-se do que ninguém mais quer.

Nos EUA, ressuscitam normas que criminalizam dormir nas ruas, o que visa evidentemente a tanger os pobres para fora do campo de visão dos que ainda se mantém como súditos fiéis do 01%.

Neste passo, convém lembrar que o tal mundo desenvolvido é aquele a não ter crescimento econômico significativo, há pelo menos uma década. A conjunção de estagnação e escalada de concentração de rendas leva à conclusão de que é um processo de enriquecimento de poucos à custa do empobrecimento de muitos. Nisto não há livre iniciativa, nem mérito, nem mobilidade social, nem nada disso que habitualmente se diz para iludir as massas.

Há somente inércia de quem já tem e, à semelhança da física, ela é proporcional a quanto já se acumulou.

Inicialmente, nos EUA e nos seguidores de seu modelo social e urbano, a saída era realmente sair das cidades e residir naqueles condomínios suburbanos em que reinam a harmonia social e a mediocridade dos interesses. Acontece que não conseguiram levar seus escritórios, as escolas e os hospitais para dentro desses micro paraísos. Ou seja, o sujeito precisa sair do paraíso e enfrentar o inferno, que é a cidade e suas desigualdades escancaradas.

Na cidade, o empregado do 01% é obrigado a ver que existem pobres, mal vestidos, famintos, mendigos, loucos, essas malditas motocicletas que a classe média baixa insiste em comprar só para dificultar a vida dos donos de carros e outras mazelas mais.

Daí para principiar a conceber medidas de higiene social é um pequeno salto. As classes altas não têm qualquer compromisso com coerência ou com o sempre aclamado direito e parecem decidir e legislar como se acreditassem estar num mundo de pessoas iguais a elas. Agem, aqui sim coerentemente, como se não houvesse pobres.

Assim, legislam contra a vadiagem, contra a mendicância, como se se tratasse de posturas optativas de algum rico diletante que resolveu trair as origens e agredir seus parecidos com agir diverso. Cuida-se, na verdade, de necessidade, de pobreza, mesmo que um e outro sejam impelidos voluntariamente pela negação de tudo ou mesmo pela preguiça.

Essa ânsia de retirar os pobres da linha do horizonte é reveladora de um mal estar, de um estado de má-consciência dos predadores. Sim, porque se acreditassem no que dizem, ou seja, no mérito, na mobilidade social, na liberdade de escolhas, não se sentiriam tão agredidos pela ocorrência de mendigos, de moradores de rua, de gente que busca comida nos lixos.

É preciso, então, criminalizar a pobreza e dar-lhe a oportunidade, se não quiser parar num presídio, de escapar-se para onde o pessoal de cima não os veja. Pouco serve lembrar aos donos e empregados chegados da Casa Grande que o herdeiro que não trabalha é igual ao mendigo que não pede e apenas expõe sua orgulhosa pobreza e sujidade.

Claro que está tudo impregnado pelo moralismo de raiz luterana que vê no trabalho um valor maior que a perspectiva de ressurreição. Vistas assim as coisas, quem não trabalha é porque não quer, quem não saiu da pobreza foi porque não quis. E quem não quer atingir os máximos valores, trabalho e dinheiro, merece todas as punições, evidentemente.

A Casa Grande dá-se o luxo de querer manter-se hermética e afastada de todos os espelhos que possam refletir suas deformações. A dessemelhança deve ser afastada a qualquer custo para que a inércia social continue a poder ser chamada de mérito e para que ninguém precise ou possa invocar o mérito real, que é manter escravizada a maioria a trabalhar para o enriquecimento da minoria.

O jantar de Dilma em Lisboa e a mediocridade ativa da classe média brasileira.

Carlos Lacerda, que sabia ler e escrever bem, estaria entre encantado e estarrecido com os seus atuais rebentos. Encantado, porque a classe média alta brasileira é-lhe à imagem e semelhança no que diz respeito ao moralismo oportunista e à tenacidade anti governista, sempre que se tratar de governo que aumenta o preço dos escravos.

Estarrecido ficaria ao perceber que sua descendência é bastarda no que diz respeito ao nível intelectual. É preciso alguma inteligência e alguma cultura para ser de qualquer lado ativamente, sob pena de repugnar tanto à direita, quanto à esquerda que se alfabetizaram. Da mesma forma, é preciso não ser estúpido para ser ladrão…

Vamos às circunstâncias que deram ao prototípico brasileiro de classe média alta a oportunidade para reproduzir o que a imprensa disse-lhe e achar que pensara por si : a Presidência da República Brasileira tem um avião para os deslocamentos do chefe de Estado. Este avião não tem autonomia para cumprir a rota que vai de Genebra a Havana. A presidente Dilma estava em Davos, na Suiça, para o encontro do grande capital, e ia a Havana, para o encontro dos países sul-americanos.

Esse deslocamento implicava uma paragem. Ela foi feita em Lisboa, o que é mais que óbvio em todo vôo de longo curso que cruzará o Atlântico. Chegada em Lisboa, a comitiva brasileira pernoitaria e sairia no dia seguinte, como aconteceu.

Eis que a histeria propagou-se relativamente aos preços das hospedagens, porque a comitiva da presidente passou a noite em hotel de cinco estrelas, em Lisboa. Qualquer pessoa que não tenha empenhado seus lobos frontais na casa de penhor do fascismo brasileiro sabe que isso é um nada. Qualquer um – e são poucos – dos médio classistas que tenha memória sabe que os presidentes não se hospedaram em pensões no andar de cima de uma casa de fados na Mouraria.

A histeria, por lógica, permite concluir que os histéricos nem têm memória, nem sabem o que é um presidente da república. Além dessas ignorâncias, os histéricos revelam sua vontade íntima de agredir uma governante que cometeu crime: agiu marginalmente a favor dos sempre escravizados, e nada mais.

O lacerdismo mal alfabetizado atinge preferencialmente uma camada social composta de gente que ignora o conflito de interesses – embora acuse no governante que não lhe agrada coisas que consente em si.

A gente que se escandaliza com os preços das diárias dos hotéis em que a presidente hospeda-se gostaria de neles se instalar à custa do Estado, desde que ninguém soubesse. Gostaria de neles se instalar recebendo diárias mesmo no gozo de férias, como fez um campeão da moralidade nacional.

A gente que fez do preço da diária de hotel da presidente da república um assunto recebe descontos na aquisição de automóveis por conta dos cargos que exerce na função pública. Essa gente, quando exerce a profissão médica, aceita prendinhas de viagens à custa de indústrias dos produtos que constarão de suas prescrições.

Essa gente vende-se a acreditar não se ter vendido, o que é atentado duplo contra a honra. Ora, aprendemos que não convém nos vendermos, mas que, se o fizermos, convém entregarmos. O pessoal da classe média alta brasileira vende-se e faz-de-conta que se não vendeu.

O duplo da desonra é vender-se e não entregar. Mas, aí, se for para um alto médio classista brasileiro perceber, é demais…

Os três pilares do golpe: udenismo, esquerdismo Cabo Anselmo e judiciário.

Antes de qualquer coisa, convém uma pequena advertência. Conversando com um amigo sobre o segundo pilar apontado no título, ouvi que Cabo Anselmo lembrava imediatamente delação. Sei bem disso, mas a referência a Anselmo, como inspirador de certo discurso, não tem a ver com seu caráter delator, mas com a incitação irresponsável a um esquerdismo supostamente radical, que serve bem à direita golpista. Enfim, a lógica Cabo Anselmo, para mim e para este texto, tem a ver com esta incitação irresponsável, não com a delação.

Ao contrário de países vizinhos, o Brasil não tomou cuidados para evitar um golpe que subverta a vontade popular nas próximas eleições para a chefia do Estado. Ao contrário do que a maioria da imprensa diz, o Brasil tem níveis de liberdade que implicam verdadeira negação da soberania, da constituição e dos crimes de injúria, calúnia e difamação.

Contrariamente ao que fizeram Argentina e Venezuela, o Brasil, mesmo governado por gente que pensa mais no povo que na minoria de 15%, achou que era possível ter imprensa concentrada, monopolista, sem limites e entregue a capital estrangeiro. Os que estão no governo acreditaram que era possível comprar esta imprensa e receber dela o mínimo, ou seja, que ela fosse imprensa e não partido político. Mesmo tendo provas contínuas da impossibilidade, o governo continuou pagando para ser caluniado dia e noite…

Contrariamente ao que fizeram Venezuela e Argentina, o Brasil, pelos governos que estão há treze anos, acreditou que a honradez é paga com honradez e que não existem identificações de classe nem subornos. Não purgou a cúpula do judiciário dos golpistas e experimentou o sabor amaríssimo de juízes ignorantes, recalcados, vaidosos, cúpidos, farisáicos, oportunistas e com nenhum apreço à constituição que supostamente guardam. Vimos, então, o espetáculo horrível de juízos de exceção que degradaram homens inocentes e que foi a antesala da interdição de gente querida pela maioria.

Os que governaram e governam o país há treze anos trabalharam para reduzir a desigualdade social, o pior problema do país, e tiveram êxito marcante. Não trabalharam suficientemente para que a maioria tivesse consciência de classe e para que esta maioria pudesse escolher livremente doravante, todavia. Eles ignoraram os instrumentos do golpe e acreditaram que o povo e os que vendem para o povo seriam apoio suficiente.

Ignoraram que há, sempre, quem os queira tirar não apenas do poder, mas da vida, e que têm tenacidade para seguir a tentar. Sinceramente crentes que todo poder emana do povo, deixaram agir com poder de Estado os que nada têm emanado do povo e não tiveram coragem de dizer que funcionários a 10.000,00 euros mensais não podem trabalhar pelo povo, porque num país de renda mensal média de 300 euros, quem ganha 33 vezes mais que a média não é povo e, obviamente, age por sí e por quem está acima.

Aceitaram o jogo udenista, porque parte de seu êxito deveu-se a terem feito discurso udenista, lá atrás, há quinze ou vinte anos. O moralismo, aquilo que passa por dizer que tudo se trata de fulano ou sicrano ser ladrão ou infiel ao cônjuge ou adicto de drogas ilegais ou de álcool, foi uma das bases de seu discurso inicial. Hoje, este discurso é base da oposição a eles, com a amplificação da imprensa e da corporação judiciária.

Nunca insistiram unicamente nas conquistas relacionadas à melhoria na desconcentração da apropriação de rendas, que efetivamente realizaram. Nunca disseram que o ponto central da dinâmica social é a luta de classes, porque aliaram-se àqueles que passaram a vender mais. Assumiram a vergonha de serem de esquerda – que foram, realmente – e aceitaram as regras do discurso da oposição, que insiste em moralismo e na inexistência de esquerda e direita.

O grupo que hoje é governo no Brasil terá êxito nas eleições do ano próximo, mesmo que a seleção nacional não triunfe no mundial de futebol. Mas, ter êxito nas urnas, no voto, na preferência dos eleitores, não significa assumir o posto obtido pelo voto. Haverá um judiciário ávido por encontrar alguma questiúncula, um detalhe qualquer, ou mesmo servir-se de farsa pura e simples – e há precedente – para interditar a opção que não seja a do retorno da concentração de rendas e da entrega ao estrangeiro.

Há uma opção para o grupo que está no governo, se quiser resistir ao udenismo, ao esquerdismo Cabo Anselmo e ao judiciário: falar para a maioria e deixar claro o que ganharam e deixar claro o que é o judiciário e de que é composto. Com relação ao moralismo udenista e ao pseudo esquerdismo Cabo Anselmo, o primeiro deve ser ignorado e o segundo deve ser mais que ignorado.

Um pequeno pós escrito tem lugar. O que chamo de lógica cabo Anselmo fica claro num episódio recente e no comentário que fez um jornalista que posa de simpático, aberto e outras coisas bacaninhas do gênero. O Kenedy Alencar – jornalista que é empregado do Frias da Folha de São Paulo –  faz de conta que é livre e que segue sua pauta.

Pois bem, há cinco ou mais dias, o Congresso Nacional, em sessão plena, devolveu o mandato do Presidente João Goulart, deposto pelo golpe militar de 1964. Na ocasião, em abril de 1964, o congresso, amedrontado, considerou vacante a Presidência da República, o que ajudou a malta golpista a dar aparências jurídico-formais ao golpe.

Na sessão que anulou a farsa de cinquenta anos atrás, os comandantes do exército, da aeronáutica e da marinha de guerra estavam presentes e não aplaudiram quando o Presidente do Senado proclamou a anulação da vacância declarada cinquenta anos antes. Todos os demais presentes aplaudiram quando da formal proclamação.

O tal jornalista Alencar – de prenome Kennedy – escreveu artigo a dizer e pedir que a Presidente Dilma punisse os comandantes militares porque não aplaudiram a reabilitação de João Goulart. E essa cretinice repercutiu e foi repetida, tanto por quem fazia ironia, quanto por aqueles que viram nisso um grande arroubo de esquerdismo cioso da história.

Isso do Kennedy Alencar é Cabo Anselmo puro. Primeiro, militar não aplaude nada. Segundo, aplaudir não é obrigação de ninguém. Terceiro, não aplaudir não é falta funcional, portanto não é infração. A Presidente Dilma não tinha, nem podia punir algo que não é infração.

Síria: porque mísseis são melhores que discursos de direitos internacionais.

Os EUA bombardearão a Síria em breve, por razões que não incluem a morte de sírios por armas químicas. Eles, os mandatários norte-americanos, nunca se preocuparam com a morte de ninguém, por qualquer razão e meio que seja; eles sempre promoveram matanças enormes quando isso lhes interessou. O problema não é esse, até porque provavelmente as armas químicas foram fornecidas por eles aos mercenários recrutados para desestabilizar o governo sírio.

A ONU presta-se ao papel ridículo de sempre, ou seja, a preocupar-se com formalidades e com aparências, quando isso vale nada na decisão do governo americano de despejar mísseis de cruzeiro sobre o território de alguma nação soberana, destruir infra-estrutura, matar muita gente. A ONU, enfim, cuida da parte do falatório e das aparências; o governo dos EUA cuida da destruição e está tudo assim bem resolvido.

Ainda me assusto um pouco com a parte dessa estória que paga tributo à hipocrisia em doses elevadíssimas. Falo da necessidade de mentir, de fazer discurso com solenidade, como se o discursante acreditasse no que diz e como se todos os restantes fossem absolutamente imbecis, quando é verdade que somente 95% das pessoas são totalmente imbecis.

No rastro dessa crença – quase sempre exitosa – na imbecilidade de 100% das pessoas, ouve-se a aberração lógica da destruição humanitária e coisas do gênero. E cria-se o falso problema da autorização da ONU e traz-se à cena a farsa da legitimidade de um punhado de países autorizarem a destruição física e a matança humana. Isso tudo é conversa para induzir sono em bovinos.

No oriente próximo só há dois países que não são vassalos do esquema EUA, Europa e Israel: o Irã e a Síria. Estes dois articulam-se comercialmente com a China, a Índia, a Rússia, mas não têm com estes países relações de vassalagem. Isso não convém aos EUA, nem a Israel e em menor medida não convém à Europa.

Por um lado, trata-se de petróleo, mas de uma forma mais sutil e complicada do que pode de início parecer. O ataque norte-americano significará um aumento imediato nos preços do petróleo e, se a coisa se tornar crônica, pode significar o estabelecimento de novos e estáveis patamares para o preço do óleo.

Aumento do preço do petróleo significa despesas maiores para quase todos os países do mundo; redução do preço do dólar norte-americano e aumento de receitas dos exportadores do óleo. Além disso, torna economicamente viável a exploração do gás de xisto nos EUA e do petróleo das areias betuminosas do Canadá. Além dessas consequências relativas ao óleo, há as despesas militares e o aumento da demanda por crédito. Ou seja, é um belo negócio.

A par com esta parte logicamente compreensível, temos o que todos negam. A guerra tem seu quê de não utilitária à vista de parâmetros econômicos e estratégicos mais evidentes. Israel quer ser territorialmente duas vezes maior do que é presentemente e quer matar todos que ao seu redor não sejam depositários da verdade revelada por seu deus mesquinho, guerreiro, sanguinário e fútil. Isso não é desprezível e eles são capazes de fazer a guerra até se for para a perder.

Tito Flavio Vespasiano teria muito a dizer sobre essa inclinação até honrosa a criar confusão e leva-la até ao sacrifício. O Arco do Triunfo até hoje nas ruínas do Foro de Roma conta pouco do que foi a campanha de 70 contra a sedição dos judeus. Uma campanha que resultou em pouco saque, muitas mortes e muito trabalho, para reduzir um povo desprezado, em uma província pobre.

Mesmo depois de ricos e não mais desprezados, persiste a inclinação bélica desmesurada, para além do cálculo cuidadoso dos banqueiros que verão a guerra desde a Côte D´Azur, pouco preocupados que suas mãos sequem e seus olhos ceguem, caso Jerusalém pereça esquecida por eles. Os do cálculo são os menos arqueologicamente judeus; eles ganham com a guerra, mesmo que ela liquide o templo pela terceira vez.

Os do meio, que são empregados com muita autonomia, esses vão até ao fim, ao que parece, não apenas pelos ganhos financeiros.

Se se tratasse somente de elevar os preços do petróleo, subitamente e até para outros patamares estáveis, havia outros meios mais fáceis. Qualquer afundamento de um grande petroleiro, posto na conta de ação terrorista de algum grupo de mercenários seria suficiente. Além disso, convém lembrar que a Síria tem pouco ou nada a ver com petróleo; a questão é o Irã e não é apenas aumentar o preço do óleo, que isso já se conseguiu, resta apenas esperar alguns dias.

Há pouco, celebrou-se a negativa do parlamento inglês ao ataque à Síria, porque faltam evidências da autoria dos tais ataques. As pessoas que transitam no espaço que o poder deixou para a burocracia dos bacanas bem intencionados que acreditam e falam em direitos disse que isso era importante. Não é. Os EUA farão o ataque sem a Inglaterra e com ou sem a França – pouco importa – porque esses países contribuem com nada ou quase nada do esforço bélico.

Que o parlamento inglês tenha rejeitado o ataque foi ótimo para o bandido Cameron, mas foi nada para a realidade próxima da destruição. Que o bandido prêmio Nobel da Paz Obama leve o ataque a cabo sem se preocupar com Parlamento Inglês, ONU e outras besteiras mais é ótimo também. É mais uma volta no parafuso do império incondicionado, que não precisa pedir desculpas.

Ao final e ao cabo, o certo é que melhor que ONU, parlamentos, discursos, evocações humanitárias, pruridos europeus por aparências e outras mais idiotices, são sistemas de defesa anti-aérea e anti-navios.

Antigos senhores de escravos vivem saudosos.

É longa a recuperação das sociedades que conhecem pessoas com estatuto de coisa, objetos de direitos e não sujeitos deles. Esta situação, a do escravismo legalizado, somente é superada por dois meios: a luta – o que implica escravos relativamente bem instruídos – e a inviabilidade econômica de manutenção da escravidão legal.

No Brasil, que foi aquinhoado por Deus e por seus espíritos mais próximos, caídos ou não, com uma classe dominante especialmente genial, o escravismo legal foi abolido porque não fazia mais sentido econômico e porque prejudicava as exportações de colônias inglesas que não tinham mais este tipo de mão-de-obra.

Ele deixou de ter estatuto legal, mas permaneceu longamente após a aquisição pelos ex-escravos do estatuto de sujeitos de direitos. Os câmbios sociais são muito mais lentos que alguma mudança jurídica abrupta possa fazer crer, o que revela o caráter teatral do jurídico quando se o compara com o social e econômicamente dinâmico.

Um grupo humano ter, em qualquer lugar, nos seus tempos iniciais, a divisão das pessoas entre coisas e donos de coisas é nada mais que evolução da anterior prática de matar os vencidos. Escandaliza os ignorantes e os preguiçosos de pensar a evidência de que a escravização é um passo evolutivo relativamente à simples eliminação de todos os vencidos.

Todavia, outro passo evolutivo é dado quando se reúnem as condições para explorar os vencidos de maneiras mais sutis que simplesmente os reduzir a coisas, objetos de compra e venda. O passo seguinte mantém estratificação social, com classes de cidadãos, embora suprima as distinções legais, exceto por um e outro grupo que mantém privilégios legais explícitos.

No Brasil, o escravismo de pretos era legal até há pouco, precisamente há cento e vinte e poucos anos. A escravidão persistiu muito forte até hoje, o que fica evidente para quem vir a divisão na apropriação de rendas, os índices de mortalidade por crimes, os índices de encarceramento por faixa de renda e por etnia. Enfim, todos os indicadores que se usem apontam para um fosso entre dois grupos.

É óbvio que as coisas estão muito menos ruins hoje, porque ao menos se tem a igualdade jurídica formal, aquela maneira de praticar a injustiça com mais aleatoriedade, o que dá às massas a sensação de que a igualdade material está próxima ou que nem mesmo é algo desejável. Hoje, em poucas palavras, os escravos têm TVs, aparelhos telefônicos móveis, leem tão precariamente quanto a classe média e recebem vez e outra o que os senhores lhes deixaram de pagar.

O aspecto mais destacado da herança escravista no Brasil é o emprego doméstico. Uma pesquisa recente, não me lembro de qual instituição, constatou que não há outro país com mais empregados domésticos que neste paraíso tropical dos 10%. É impressionante, principalmente porque não somos o país mais populoso do mundo e estamos muitíssimo atrás da China, da Índia, dos EUA, da Indonésia e provavelmente do Paquistão.

Uma quinta posição relativa a par com uma primeira absoluta – e considerando-se a imensa diferença para os mais populosos – é realmente uma vitória indiscutível nesta modalidade. É extraordinário em termos quantitativos e em termos qualitativos e revela que ficamos com o escravismo em realidade muito mais que com traços arqueológicos que se possam encontrar.

O emprego doméstico até há pouco não tinha jornada limitada em lei, não tinha fundo de garantia contra despedidas arbitrárias, coisas que todos os demais empregos têm há mais de cinquenta anos. A distinção, para quem se disponha a pensar – só a pensar, esquecendo-se de seus interesses de classe e pessoais – era simplesmente absurda, por destituída de qualquer razão.

Mas, vale a pena observar a distinção entre o tratamento legal de um trabalho e dos demais e a recente supressão dela. Ela, a supressão da escravidão formal e da violação ao princípio da igualdade, gerou reações que beiram a loucura. Além dessas reações, permite ver o quão longeva era uma diferenciação baseada em nada e que sempre pareceu a coisa mais comum e aceitável do mundo.

Tornou-se hábito repetir o lugar-comum tolo de que o texto produzido pelo congresso nacional em 1988 é a constituição cidadã. Ora, essa magnífica obra dos jurisconsultos brasileiros oriundos da oposição permitida ao regime ditatorial de 1964 a 1985 continuou a distinguir todos os trabalhos do trabalho doméstico.

Agora, o trabalho doméstico assemelha-se juridicamente, formalmente, aos demais e isso causa escândalo às classes médias e altas. Esse escândalo revela algo feio de ver-se, que é a estupidez. A burrice é mais feia que a má-fé, em qualquer perspectiva que tome em conta a estética e a história. A burrice é muito mais nociva que a má-fé pura.

Os médio classistas brasileiros, useiros contumazes do trabalho doméstico semi-escravo, insurgem-se contra a igualdade de direitos dos trabalhadores domésticos apenas com a sua raiva de quem perdeu algo e quer que esta perda tenha alcance de argumento. Assim, neste ambiente, tornou-se comum dizer-se que bons eram os tempos antigos, que as pessoas antigamente sabiam dos seus lugares, que se faz um favor oferecendo um trabalho doméstico a alguém e outras tolices do gênero. Claro, neste ambiente povoado por estupidez, há o argumento do mérito…

Para comparação, posso dizer que bons eram os tempos em que o Estado pagava 40% de juros ao ano, sem riscos quaisquer, sem ameaças inflacionárias, a troco de nada mais que ter o que emprestar ao Estado, por intermédio de algum banco. Era bom para mim, se tivesse o que emprestar, mas era absurdo para todos os mais que 90% que nada emprestam ao Estado.

Se eu ou a personagem que se enquadre neste papel for além de cuidadoso consigo um pouco menos estúpido, saberá que o assalto revertido não será uma violação de lei divina e estável, apenas a recomposição de forças e algo que me contraria. O que é ruim para alguém decorre de alguma vitória de quem estava perdendo, apenas.

Ter que pagar um pouco mais caro por escravos domésticos não é algo a violar os estados naturais, até porque o humano, pessoal e coletivamente, nada tem de natural: É algo violador dos interesses pessoais e de grupo e não significa violação de algum balanço natural de forças e de classes e de trabalhos.

Para as classes médias moralistas brasileiras, isso agrediu até um de seus patrimônios mais valorosos: a idéia de estar a fazer favores. Quando algo torna-se direito escrito, reduz-se um pouco o campo do discurso da concessão graciosa do que sempre se deveu. Eis aí algo mais importante que o preço em si: suprimiu-se de certa classe média piedosa a sempre conveniente oportunidade de dizer-se caridosa porque dá aquilo que a lei não exige.

Revista Veja nos estertores finais?

Tenho a impressão de que o pior da imprensa brasileira, que são a Globo e a Veja, experimentam mais uma volta no já apertado parafuso do baixo nível, do partidarismo aberto e da desinformação mal-disfarçada. Chegaram a tal ponto de maniqueísmo rasteiro e de destinação evidente a semi-alfabetizados e nazistas de nascimento que a coisa parece um pedido de socorro.

No caso da Globo, tenho para mim, com poucas dúvidas, hoje, que é sim um pedido de socorro e de acordo com o governo federal. A Globo deve muito a credores privados nos EUA – algo à volta de 2 bilhões de dólares norte-americanos – e deve muito ao Estado brasileiro, por conta de sonegações oceânicas de tributos federais, dívida que corrigida e acrescida de juros chega próximo a 800 milhões de reais.

Não é pouco dinheiro nem para uma grande corporação detentora de alto poder de desinformação e chantagem. Por isso, calculou cuidadosamente os movimentos de ataques infundados e violentíssimos ao governo e seus integrantes, sempre por um nada ou quase nada, na medida cronológica certa para interditar a presidente para as próximas eleições, dando o golpe, ou fragilizá-la a ponto de não precisar do golpe mediático judiciário e ganhar o pleito com qualquer um dos postulantes à direita.

Talvez a campanha moralista dos amorais natos tenha iniciado-se muito cedo, notadamente para empresa que se serviu de expedientes demasiado iníquos até para padrões da imprensa brasileira. Parecia que o governo seria mais covarde que o habitual, mas houve alguma reação à campanha sistemática de agressões quase sempre fundadas em puras inverdades.

Vieram à tona os casos das enormes dívidas de subsidiárias da Globo nos EUA onde, inclusive, a coisa foi parar nos tribunais e soube que girava em torno aos expressivos 2 bilhões de dólares. Soube-se, também, que a empresa fora autuada pela Receita Federal por vários ilícitos contra a legislação tributária brasileira, notadamente manobras para escamotear a ocorrência de fatos geradores de tributos.

O processo no fisco brasileiro montaria, em valores atuais, a cerca de 800 milhões de reais de multa. Este caso teve o agravante de envolver episódios dignos de novela, como foi por exemplo o caso da funcionária do fisco que roubou os autos e teria desaparecido o processo.

Particularmente, apesar das discretas mas desesperadas propostas implícitas de acordo, não creio que fosse inteligente o governo anuir porque acordo com a máfia só faz quem é mafioso e se dispõe a assim agir do começo até ao fim. Aconteceria o previsível: o governo deixaria de ser maltratado por qualquer coisa por três ou quatro meses e mais tarde voltaria a tomar pau no lombo em editoriais e matérias supostamente jornalísticas diariamente, ainda a tempo de jogar-se o resultado do pleito de 2014.

O caso da revista Veja é mais interessante, porque algo vertido em linguagem escrita apresenta por contraste e pela expectativa gerada contornos mais nítidos da baixeza de visão e superficialidade de abordagens. A Veja não pode ir além no maniqueísmo, na superficialidade, na manipulação, na negação da realidade, na distorção dela, na mentira pura e simples, porque ela chegou aos limites viáveis.

Mais além do que já foi, somente se se dispuser a estimular o assassinato de pretos, pobres e petistas somente por o serem, sem mais quaisquer arremedos de desculpas ou sofismas de botequim.

Uma revista destas semanais pseudo-informativas vive, entre outras coisas, do mito da imparcialidade, algo que lhes confere autoridade junto a seu público. Sua prática, além de violar evidentemente a imparcialidade, coisa que não existe nem é necessária na imprensa, consiste em levar o público ao desconhecimento. Assim, muito mais importante que noticiar e moldar respostas do público é deixá-lo na escuridão quanto a tal ou qual assunto, seletivamente.

Não era à toa que o falecido barão da Globo dizia, com muita sagacidade, que o importante não era o que o jornal da noite dava, mas precisamente o que não dava, porque assim era inexistência. Não é preciso ser tão sagaz quanto o barão global para saber que esta lógica diabólica funciona muito bem, mas pressupõe o monopólio da comunicação de massas.

A revista Veja não tem o monopólio das comunicações escritas, mas certamente atinge e seduz metade da classe média brasileira, o que se percebe a toda evidência quando se chega ao trabalho na segunda-feira. Qualquer ambiente de trabalho e principalmente alguma repartição pública terá dois ou três versões faladas do que continha a versão mal-escrita do final de semana passado. Essa gente chega ao trabalho ávida por reproduzir as propostas de linchamento que leu no seu veículo instrutor, bem como as jóias de ciência de astrólogos que a revista veicula.

Ora, a aposta na burrice é das mais seguras que existem, porque ela é superabundante. Acontece que nem todo o público cativo de alguma publicação deste nível integra uma malta criminosa organizada, ou seja, nem todos são empregados diretos e beneficiários do pessoal para quem trabalham as Vejas. Daí que essa gente que é apenas moralista histérica, semi-alfabetizada e demofóbica pode sentir-se traída em certas ocasiões.

Se se retirarem os associados e beneficiários diretos e indiretos da atividade mafiosa da revista e de seus patrões e os visceralmente conservadores – mesmo quando seu conservadorismo é contra si mesmo – restam as pessoas de boa-fé que se assustam e se escandalizam com a imoralidade da semana. Se a revista omite algum escândalo de roubo de dinheiros públicos, como no caso dos trens de São Paulo, ela pode estar sucumbindo à burrice que contra encontrar nos seus leitores.

A parcela do público médio que, mesmo com raciocínio binário, conservador e moralista, vir na capa de outra revista que um esqueminha desviou 500 milhões de reais do Governo de São Paulo, ao longo de vinte anos, e que foi comprovado por depoimentos dos que pagaram o suborno, ao ver na capa de sua Veja a milésima reportagem sobre exercícios físicos, boa forma, emagrecimento e que tais pode sentir-se um tanto traída.

Pois a Veja ignorou solenemente o que nem mesmo a Globo, o Estadão e a Folha de São Paulo tiveram coragem de fazê-lo. Esses outros meios deram a notícia banhada em eufemismos, mas a Veja suprimiu, pura e simplesmente.

A Globo, a Folha e o Estadão são demofóbicos e entreguistas e trabalham a bem da demofobia e do entreguismo, mas parecem não ler ligações umbilicais com certo partido político – ou a disfarçam razoável e esporadicamente – e têm algum instinto de sobrevivência. Dá-se algo notável com a Veja, que é sim e claramente um panfleto de um partido, sem mais disfarces.

Seu jogo é arriscadíssimo, porque o governo não a procurará e porque parte dos que a leem sentir-se-á traída pela gritante seletividade que omite algo impossível de ser ignorado, como é o caso oceânico de roubalheira nas compras de trens à Alstom e Siemens pelos sucessivos governos tucanos em São Paulo. Há conservadores que não integram bandas criminosas: são apenas conservadores e demofóbicos, mas emprestam sinceridade ao seu moralismo pós-udenista. Estes podem sentir-se feitos de tolos.

O assalto corporativo-burocrático ao Estado e as perspectivas com uma viragem à direita.

No Brasil, desde que ele existe, o Estado sempre foi instrumento do grande capital e das camadas médias. Prestou-se à drenagem das riquezas da maioria, para transferi-las à minoria, ou seja, foi apropriado como instrumento de concentração de propriedade e de rendimentos.

Para o grande capital, o Estado é quase um prolongamento de empresas que negam frontalmente idealismos pueris como a livre iniciativa, a livre concorrência, o predomínio dos mais aptos, o perecimento dos piores e, suma incoerência, o Estado eliminou o risco das iniciativas do grande capital. É bom esclarecer que a expressão grande capital é aqui usada no sentido próprio e sem as ambiguidades que no Brasil chegaram a ter expressões inequívocas como exclusiva ou máximo.

O grande capital nunca perde realmente. No máximo, reduz-se um pouco a velocidade de sua acumulação e isso basta para que se ponha em marcha a convocação dos explorados por ele para trabalharem a favor dele. Recentemente, ele convocou as classes médias, que vivem das migalhas a caírem de sua mesa, a comandarem uma viragem à direta, ou seja, a pedirem a volta da concentração, mesmo que isso seja ruim para as próprias classes médias.

As classes médias perceberam que lhes convém estruturarem-se em corporações e defenderem interesses de grupos como se fossem coletivos. Assim, elas tomaram conta, por exemplo e principalmente, da burocracia estatal, que existe em função de si mesma e não da prestação dos serviços que teoricamente deve oferecer. Isso explica porque os serviços públicos são ruins.

Os serviços que tiverem opções privadas a que os burocratas possam recorrer serão invariavelmente ruins, porque a burocracia existe para que haja burocratas. Parece excesso de auto-referência, mas olhando-se com calma percebe-se que nada será excessivamente predador e auto-referente para esse grupo.

A lógica disso deve muito ao modelo ateniense, sempre lembrado e sempre incensado sem que se diga como e porque funcionava. Atenas foi, em certo momento, democracia modelar, quase perfeita, porque funcionava para 10% da população. Esta democracia formal precisa de elevada percentagem de excluídos, seja por escravidão, seja por gênero, seja por patrimônio.

A nossa democracia, para os interesses do grande capital e das classes médias, precisa exatamente do mesmo que Atenas: tem que implicar na participação efetiva no processo decisório de no máximo 15% da população. Além disso, ou o processo sai do controle dos dominadores ou a coisa toda marcha para tornar-se outra. Então, em dados momentos, é preciso que tudo aparentemente mude, para que se mantenha igual. Mas, isso vale como regra para o 01% e não se estende necessariamente para as corporações pequeno-burguesas que vivem das maiores migalhas.

A maior cegueira das corporações pequeno-burguesas é não perceberem a fragilidade ou mesmo inexistência do vínculo de solidariedade com o grande capital. Esquecem-se que com escravos mais frágeis são precisos menos feitores numa fazenda.

Com mais uma volta no parafuso da concentração de riquezas, será menos necessária a manutenção de corporações a predarem o Estado, porque os escravos estarão mais frágeis e será menos necessária uma classe intermédia a amortecer tensões e fazer o trabalho sujo. Mas, é próprio das corporações pequeno-burguesas, notadamente das que vivem direta e adjacentemente ao Estado exagerarem sua importância e passarem a acreditar que seus papéis formais são materiais.

Não é para que se distribua justiça, nem para que haja acesso amplo à saúde que o grande capital consente que haja milhões de pequenos-burgueses a ganharem muito por trabalhos que rendem pouco ao todo. Nem é para que julguem contra o grande capital, nem para que prestem saúde pública com o dinheiro apurado com os impostos cobrados ao grande capital. É para que exista e defenda os patrões, só isso.

Seria sábio, se sabedoria houvesse, que o médio classista típico percebesse que não há, nas duas pontas do espectro, nenhum sentido no Estado pagar, com dinheiro saqueado aos mais pobres, salários de 10.000 euros a médicos, juízes, promotores, advogados, fiscais e outros burocratas mais. Isso, para o grande capital, é um estorvo, porque ele próprio poderia ficar com esse dinheiro, e para a maioria um desconhecimento, porque afinal não sabe quanto custa a pequena-burguesia nem sabe precisamente que ela vive às custas dele povo.

Seria sábio levar mais a sério as bobagens que são as normas criadas pela própria burocracia estatal, inspiradas no seu moralismo, que nada mais é que a face visível da sua hipocrisia e do seu instinto de permanência. Se se portasse ao menos conforme aos disfarces postos por ela própria, talvez mais êxito tivesse na sua manutenção, mas, ao contrário, trabalha para facilitar sua própria degradação, quando isso convier aos patrões.

No Brasil, o moralismo de ocasião levou a que se fizessem leis que definiriam limites aos saques ao tesouro estatal. Se estas regras fossem respeitadas, isso não evitaria o aniquilamento da pequena-burguesia estatal, mas lhe daria alguma chance de resistência, quando o grande capital resolvesse que a festa já ia longe. Todavia, foram feitas e violadas desde o nascimento, num espetáculo de falta de honra digno de nota até onde escasseiam traços de honradez.

Inventou-se um limite remuneratório para os que recebem do Estado e esse limite foi continuamente violado desde a criação, sob os mais pueris argumentos formais. Inventou-se a deidade e a concepção imaculada do poder judicial e da magistratura do ministério público, que zelariam pelas declarações de boas-intenções que se encontram na constituição e nas leis. E eles fizeram pouco mais que custar obscenamente ao tesouro, sem dar contas de seus gastos.

Inventou-se a ciência tão perfeita, quase revelação divina, que receberam os integrantes da corporação médica, de tal forma que é impossível contrapor ao discurso destes filhos de Zeus qualquer coisa, pois de todas as coisas eles possuem a verdade final. E possuem, principalmente, a capacidade de ditarem os preços dos seus préstimos voluntários, porque afinal há mais a precisarem que a ofertarem.

Inventou-se que todo um grupo de pequenos-burgueses era bom, essencialmente bom, probo, capaz, produtivo e outras valorações mais do repertório da moralidade plebéia, só porque nasceram na classe em que nasceram e ocuparam os empregos que sempre estiveram às suas disposições. E essa invenção aproximou da divindade o subgrupo dos que ingressaram na burocracia estatal porque foram aprovados em testes de suficiência técnica e capacidade de detectar capciosidades em perguntas iniciadas por negativas.

Essa gente acreditou que está onde está porque deve ser assim e porque haveria inabalável aliança com o grande capital. Todavia, o grande capital não tem qualquer dificuldade em romper esta frágil aliança, principalmente quando a pequena-burguesia tem conduta tão próxima à dos escravos.

Na história bem recente do Brasil, há dois exemplos interessantíssimos dos efeitos da viragem à direita. Um, súbito e esquizofrênico, foi estancado porque era tão confuso que atrapalhou a vida do grande capital, como efeito lateral, porque não visava a isto. O outro, organizado e sistemático, com apoio da imprensa, quase destrói o pouco de serviço público que havia e o muito de burocracia estatal que sempre houve.

Fernando Collor de Mello chegou ao governo como as Erínias a Orestes. Ele teria liquidado tudo, burocracia estatal pequeno-burguesa e inclusive um e outro pedaço do grande capital. A fúria revelava muita força e até a grandeza que não se deve negar aos loucos, mais que a patifaria que o grande capital marcou como própria dele. Fato é que não servia, nem à pequena-burguesia, instalada direta ou indiretamente no Estado, nem ao grande capital. Foi preciso afastá-lo, depois de criar comoção moralista por nada.

Fernando Henrique Cardoso chegou como Odisseu de volta à casa e agiu como Odisseu com os pretendentes de Penélope. Quase destrói as corporações pequeno-buguesas que ocupam a burocracia estatal e teria levado a tarefa a cabo se houvesse tempo hábil. A grande finalidade não era especificamente a aniquilação da classe média a soldo do Estado, senão que era vender serviços e patrimônio estatal ao grande capital, mas uma coisa trouxe a outra e isso agradou aos patrões.

Esses dois ocupantes do governo apresentaram-se ao público como veículos da novidade e da moralidade e nunca deixaram muito claro para as classes médias viventes do Estado que suas propostas implicavam a aniquilação ao menos parcial delas, até porque os patrões delas não precisam de escravos que ganhem mais que a maioria dos escravos.

Novamente, apresentam-se propostas que não vão além de retornar à crescente concentração de rendas e novamente as classes médias em geral e em particular a burocracia estatal apoia estas propostas com sinceridade comovente. É própria da classe média brasileira a sinceridade que namora a hipocrisia e segue de mãos dadas até ao cadafalso ou até o átrio da mansão, conforme a sístole ou diástole histórica.

Será, de qualquer forma, interessante ver essa gente no próximo influxo da queda de migalhas da mesa do grande capital, desassistida pelo Estado, ávida em manter o discurso mesmo à medida em que recuam os rendimentos, ávida em justificar o novo agente do patrão, mesmo que ele seja um tantinho distante.

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