Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Hipocrisias (Page 4 of 14)

Lula e o ódio de classe.

Está em marcha um conjunto de ações concertadas para interditar politicamente o ex-Presidente Lula. À frente desta operação estão parte majoritária da imprensa, dois ou três partidos políticos em decadência, um em ascensão, meia dúzia de empresários, meia dúzia de banqueiros privados, partes do judiciário e do ministério público.

O ódio profundo a Lula, como tudo muito intenso, não se explica apenas por razões utilitárias, assim como não se explica racionalmente o ódio de alguns homossexuais e de algumas mulheres reprimidas pela liberdade sexual . Se fosse resultado do conjunto de ressentimentos dos que perderam algo por conta das ações do ex-Presidente ao longo de oito anos de governo, seria muito menos intensa essa raiva. Mas, é algo a passear no campo do fetiche.

Nos anos de governo Lula, os banqueiros privados perderam alguma coisa, mas foi pouco. O que se perdeu por os juros dos títulos públicos terem baixado de patameres obscenos para níveis razoáveis, ganhou-se com a ampliação da tomada de crédito pelas camadas mais baixas. Ao final, ampliou-se a base de clientes e os bancos foram obrigados a agirem como bancos e não apenas como receptores de juros de títulos públicos, extorquidos à sociedade por meio do Estado.

A imprensa não perdeu por conta do Lula mais que perderia pela marcha da história. O que perdeu, deve-o ao seu laborioso projeto de estupidificação coletiva, coisa que tornou seu público mais difuso e menos fiel. Na verdade, em termos financeiros, a imprensa teve perdas a se porem na conta de seu próprio funcionamento anti-empresarial. O governo Lula não diminuiu os gastos públicos com propaganda, nem alterou sua divisão entre os meios.

As classes sociais intermédias e alta nada perderam, embora tenham a percepção de ter perdido. É que elas fazem a comparação sem termo fixo, o que conduz ao equívoco das relações entre expectativas. Ora, se eu comparo o que recebo com o que acho que receberia idealmente, em tal ou qual situação, o resultado pode ser um abismo.

As classes altas, o 01 %, esses nunca perderam nem perderão, mesmo se houver uma revolução. Nos grandes rompimentos que às vezes vêem com as revoluções, o 01% perde alguns espécimes por eliminação física, mas nunca o que possuem. Lembrem-se os superficiais que 01% não é uma figura metafórica, é um em cem mesmo. Lembrem-se, para evitarem equívocos vulgares, que os expropriados de terras na revolução russa de 1917 não compunham o 01%. Os componentes desse seleto grupo foram-se para Lutécia e seu dinheiro continuou a escravizar o novo governo e o povo, claro.

Na verdade, em termos materiais, todos ganharam nos oito anos de governo de Lula, porque a distribuição de rendas melhorou marginalmente e a economia cresceu substancialmente, o que significa dizer que o 01% foi quem mais ganhou, o que é quase uma lei natural. É claro que poderiam todos terem ganhado mais, se o mundo não entrasse numa crise de excesso de dinheiro falso.

O que explica, portanto, o ódio a Lula, não é o que realmente perdeu-se, é o que se deixou de ganhar em comparação à expectativa de manutenção de uma escravidão absoluta. Essa perspectiva de manutenção pétrea de uma massa de escravos permite esperar um aumento constante de apropriação e o distanciamento relativo das classes médias das mais baixas. Pouco importa, para a classe média, que a distância entre ela e o 01% também aumente, porque ela, cega, não vê o 01%, embora arremede o que acha serem os modos desses poucos desconhecidos.

O ódio ao Lula tem raízes no preconceito de classe. Se assim não fosse, seria impossível vender, com êxito relativo, essa raiva a quem não tem razões para tê-la. O preconceito de classe é atitude profundamente inercial, ou seja, quem não o tem tem pouca propensão a desenvolvê-lo e que o tem tem grande propensão a mantê-lo.

As classes médias são a inércia transplantada para o âmbito social, com relação aos costumes. Um acúmulo de energia que trabalha para a conservação como o leão busca matar sua fome, como busca matar sua fome quem não tem a sensação de segurança ou a de total insegurança.

Esse grupo não percebe as diferenças entre pertencimento de classe social e pertencimento de classe econômica, o que vem muito a calhar para seu oportunismo atávico. Talvez, em verdade, perceba e confunda propositadamente as coisas, e isso devo confessar que não é muito claro para mim. Um exemplo vem a calhar: pertenço à mesma classe social de muitos dos mais ricos da minha cidade, mas não à classe econômica deles.

 O esforço de conservação das classes médias é o elo perdido das ciências sociais, ou seja, é a ponte entre o natural e o social. Aquilo que denuncia a inverdade do puramente natural e do puramente social, coisas que existem misturadas nesse estrato, como se tudo fosse uma inclinação e uma repetição, ao mesmo tempo.

Lula significou para essa gente uma ameaça à inércia. As coisas iriam mover-se novamente e, por mais óbvio que o movimento não deslocasse muito as posições relativas, haveria ameaça e houve. O sujeito que pemanece ou ascende, mesmo que tenha posição subalterna em relação a outros, é cioso de sua posição superior relativamente aos que escraviza. Isso deve permanecer assim para que as coisas pareçam normais.

As relações do tipo superior e subalterno não se modificaram – houve apenas deslocamento em bloco para cima – mas o temor incutiu-se na classe mais medrosa, venal e moralista que há. Ela eriçou-se, amedrontada, contra a ascensão que em muitos casos foi dela própria.

Agora, cabe distinguir agentes e objetos da ação, em dois graus. Agente é o 01%, que pretende o aumento da acumulação até ao infinito, o que não é teoricamente impossível e desculpe-me Carlos Marx. Objetos e agentes da ação são, em grau menor, os componentes da camada média, que obedecem aos desígnios de cima e à inclinação própria de quem está no meio.

Assim, o que a imprensa fez foi semear em terras férteis, embora pouco extensas. Ela obteve o ódio irracional, mas isso dará em quê, excepto na denúncia inútil de atemporal moralismo de amorais? Em golpes de estado patrocinados, hoje, pela burocracia estatal judiciária pseudo-meritocrática?

Depois de impedir politicamente Lula, o que farão? Impedirão partidos? Ou impedirão um a um, caso a caso?

Obama e a aposta certa na massificação.

Todos os governos norte-americanos desde o Presidente Jonhson apoiaram incondicionalmente o sionismo e trabalharam basicamente para os interesses de três complexos econômicos: o sistema financeiro, a indústria bélica e a indústria químico-farmacêutica.

Não é que me esqueça do complexo mediático, mas que o ponha na condição de intermediário entre o poder real e o poder político, o segundo desepenhado por empregados escolhidos pelo primeiro. A imprensa não é propriamente um complexo para que os governos trabalhem, mas a voz dos três grandes grupos onde está o poder real.

Essa voz permite que exista a aparência que é o jogo democrático, falsa peleja que só pode ser encenada com massas não apenas incapazes de pensar, mas incapazes de ter acesso a fatos.  Claro que estágios mais avançados da imbecilização espetacularizante chegam até a permitir a livre circulação de fatos, tal é o nível de lógica de partido e cegueira a que se terá chegado.

Hoje, de certa forma, atingiu-se o nível ideal de espetacularização para que o domínio seja quase pleno. É possível que evidências passeiem às vistas das pessoas e sejam percebidas exatamente como se não tivessem ocorrido ou, pior, que delas se extraiam conclusões contrárias ao que um ser mais ou menos livre extrairia.

Pois bem, o Presidente Obama disse, a respeito de mais uma erupção do afã matador israelense, que nenhum país tolelaria mísseis vindos de fora a cairem no seu território. A proposição é irretocável, sob um prisma abstrato, formal e sem quaisquer aparentes juízos de valores a turvarem o entendimento. O evidente da frase, deixemos para lá: que Obama simplesmente quer defender Israel, pois é natural defender o patrão.

Não me parece inteligente supor que Obama é pouco inteligente e que ele mesmo age e pensa como os destinatários da fórmula, de resto tão lógica. Ele não é burro; ele é um empregado bem formado, que consegue demonstrar simplicidade e sofisticação com certa naturalidade e por isso foi escolhido para o posto. Ele é muito mais serviçal e violento que os brutos, exatamente porque não age com brutalidade, mas com sutileza.

Recorrer às formas para esconder a matéria é usual. No âmbito político, implica público ignorante de história e já deformado para ter o campo de opiniões reduzido ao maniqueísmo mais binário possível.

A redução do público ao homem massa total – aquele que até a linguagem perdeu – e ao homem massa aparentemente não-massa  – aquel que detém a linguagem, alguma lógica formal, mas obra já no maniqueísmo atemporal – foi trabalho levado a cabo pelo cinema, pela TV, pela imprensa escrita e pelos escritores a soldo de um público inculto e da academia.

Obama diz que nenhuma nação aceita chuva de bombas extrangeiras, o que é o mesmo que dizer que não aceita invasão externa. Os palestinos constituem uma nação. Assim, os palestinos não é suposto que aceitem invasão e usurpação de suas gentes e territórios pelos israelenses, há cinquenta anos.

O trágico em Obama não é sua lógica, mas que a possa usar para extrair aplausos por ser tão lógico, de um público tão massificado que não perceba que a fórmula serve para qualquer situação.

As famílias brasileiras: metonímia involuntária e reveladora.

O jornal de domingo às vezes dá o que pensar, daquele pensar sem ser contra, nem a favor. Ou seja, ainda vale a pena ler o jornal, por mais superficial e ruim que se venha tornando, sempre e sempre. Em geral, as notícias são as mais desimportantes e ligeiras, os editorias os mais partidários e acusativos e as reportagens pecam por agredirem a língua insistentemente.

Todavia, reportagens há delas que mesmo superficiais e mal escritas fazem pensar e revelam posturas bem estabelecidas. Algumas interessam pelo que há por trás e ao lado delas, pelo que não querem dizer. Não falo necessariamente do que elas escondem propositadamente, mas do que esconde-se por baixo do que são seus objetos principais declarados. Podem ser ponto de partida da percepção de anseios conservadores talvez involuntários.

Há poucos anos, a Folha de São Paulo saia-se com uma matéria que tratava da dificuldade das madames das classes médias e altas encontrarem serviçais domésticas. Era um lamento bastante direto e uma acusação mais ou menos indireta dos programas de apoios sociais governamentais, que aumentaram discretamente os preços dos escravos domésticos. Era, também, um caso de desonestidade intelectual, porque o problema anunciado não era daqueles abertos e insolúveis. Bastava às senhoras pagarem mais…

Hoje, vejo uma reportagem meio ingênua, no Diário de Pernambuco, sobre vantagens e desvantagens de as famílias terem empregadas domésticas ou contratarem serviços domésticos autônomos e eventuais. O texto não escorrega para o lamento puro e simples do aumento dos preços desses serviços semi-escravos, ele passeia ao redor de análises de custo e benefício de uma e outra alternativa.

Interessantíssimo que os pólos da relação sejam, de um lado, as famílias contratadoras e, de outro, as serviçais contratadas. A primeira coisa a vir a tona é que – para o texto – as famílias são aquelas das classes mais bem aquinhoadas, o que leva a concluir que do lado das contratadas não há família. Só há família de um lado, pois do outro está a empregada, constante ou eventual.

Família é usado como termo unívoco, o que só é possível rigorosamente se o compreendermos com os qualificativos ali suprimidos: de classe média, média alta ou alta. Famílias, assim sem qualificativos, são todos os grupos reunidos a partir de vínculos de parentesco ou de afinidade, e que vivam juntos na mesma moradia. Ou seja, as serviçais também podem ser parte integrante de famílias.

Porém, a reportagem não usa a distinção identificadora de quais famílias sejam as que contratam serviços domésticos, o que revela que toma a parte pelo todo de forma provavelmente involuntária. O autor do texto não sente necessidade de qualificar família porque isso para ele só pode ser um tipo de família. A figura de estilo aqui deixa de sê-lo, propriamente, porque o autor realmente pensa que a parte é o todo.

A família, na sociedade brasileira, é conceito de resistência. Mais que o significado claro que tem na teoria econômica, no imaginário do conservadorismo ela é um núcleo que supera o conceito de indivíduo e de linhagem e grupo amplo ligado por parentesco.

No sentido que as classes dominantes fizeram o termo ter, família liga-se à estabilidade social e econômica que implica morar em certos tipos de habitação, em certos locais da cidade e a poder ter a serviço empregados domésticos. Esse grupo pode compor-se de casais homo ou heterossexuais, com ou sem filhos, monoparentais com filhos e outros muitos arranjos.

Apenas não pode ser composta por grupo que somente alugue seu trabalho. Ela, na compreensão do tipo expressa no texto da reportagem, tem que ser um grupo que potencial ou efetivamente alugue serviços domésticos. O grupo pode até não querer alugar serviços, mas se o puder fazer está inscrito no âmbito de família.

O critério de pertencimento é preponderantemente econômico, pois perdeu-se a rigidez dos critérios sociais acessórios que complicavam a definição. Família não é mais necessariamente um vasto grupo sob liderança patriarcal, senão um indicativo claro de poder de compra de serviços. Foi reduzida a isso, o que, por um lado, a torna mais simples de perceber e, por outro, mais apta a trair seu real significado.

Antes, mais elementos deviam estar presentes para que um grupo, no discurso social predominante, fosse considerado família. Um pai, líder econômico e simbólico, uma mãe, líder do lar e talvez economicamente ativa, uns filhos, um avô, uma avó, talvez, até mesmo um tio, tia ou algum agregado. Isso tudo com papéis sociais bem estabelecidos e o acréscimo da moradia bem situada e dos serviçais domésticos era uma família.

Hoje, papéis sociais podem ser menos rígidos em comparação com protótipos anteriores, o número de integrantes pode ser menor, mas a possibilidade de assalariar serviçais permanece firme como critério principal para definir uma família brasileira no sentido socialmente dominante.

A linguagem, principalmente a jornalística, precisa servir aos mecanismos de conservação, por meio de seu efeito fixador de idéias. Assim, é comum usar-se termos como se fossem unívocos, quando eles precisam de qualificadores a lhes precisarem o alcance. Às vezes o termo não qualificado serve para dar a falsa impressão de ampla compreensão de todos os elementos em uma categoria, outras serve para induzir a percepção da parte como se fora o todo. Ou seja, a imprecisão é ambivalente.

Às vezes dizem que os brasileiros tiveram seu poder aquisitivo aumentado, como se isso tivesse acontecido com todos os brasileiros e ainda como se o aumento de potencialidade aquisitiva significasse também de qualidade de vida, de conhecimento, de pertencimento nacional. A proposição desse tipo supõe que os brasileiros são todos os mesmos, quando se sabe que os vinte milhões de miseráveis existentes não são brasileiros, argentinos, peruanos, venezuelanos, são nada, a nada se identificam, a símbolo homogeneizador nenhum se ligam.

Outras vezes diz-se que os brasileiros viajam mais para o exterior, quando se sabe que alguns voltaram a poder viajar e outros passaram a poder fazê-lo. Aqui, a parte pelo todo é evidente, porque brasileiros aí esconde o número dos que não podem viajar – maior que os que podem – e submerge a necessidade de qualificar quem são os tais brasileiros da proposição.

Claro que os dois exemplos anteriores são de casos voluntários clássicos de metonímias desonestas. O desonesto e o voluntário parecem-me menos interessantes que os usos consagrados e involuntários de discursos e termos de conservação, até porque menos eficientes e mais caricatos que os mecanismo inerciais não percebidos.

Afinal, milhares terão lido a despretenciosa reportagem do Diário de Pernambuco e não se terão perguntado se as empregadas domésticas, constantes ou avulsas, têm família. Dada e aceita a antítese entre contratantes e contratados, nada resta a ser pensado pelos integrantes de famílias…

Rio + 20: teatro verde.

Encena-se uma conferência mundial, no Rio de Janeiro, sobre meio-ambiente e sustentabilidade, essa última a palavra fetiche atual. A reunião é uma má encenação teatral, porque não chega perto de ser arte. É teatro no sentido de disfarce, de cenário puro e simples para o desfile de personagens desinteressantes, com falas artificiais.

Esse tipo de contubérnio dá oportunidade de se dizerem coisas essencialmente contraditórias como se fossem as mais puras harmonizações. O discurso bonitinho das soluções possíveis dentro do mesmo modelo aí triunfa e obtém vasta audiência acrítica.

A deterioração do meio ambiente é fato, mesmo que não seja provado o aquecimento global antropogênico, a pedra de toque de todo o discurso verde. Aliás, há bastante má-fé na insistência monocórdia no aquecimento global, que é apenas um aspecto a ser considerado nesta questão.

A queda da disponibilidade hídrica e os danos resultantes da exploração e consumo de minerais é que revelam mais claramente a deterioração do meio ambiente. Há menos água disponível para consumo humano, para geração de energia elétrica, para a indústria, para a pecuária e para a agricultura, tanto por esgotamento frente ao consumo crescente, quanto por contaminação, no que se refere a consumo humano.

Muito embora haja efeitos globais da deterioração do ambiente, os efeitos locais são muito mais sensíveis. Isso foi rapidamente percebido pelo parte do mundo mais rica e resultou em inteligentes exportações de danos ambientais.

A Europa é o exemplo de mais êxito nessa inteligente política. Manteve o cultivo agrícola nas áreas viáveis, aumentou bastante a produtividade onde havia água disponível e deu estímulos protecionistas aos produtos agrícolas. Partiu para geração de energia elétrica de matriz nuclear, a par com a queima de hidrocarbonetos importados.

Ou seja, a Europa exportou a devastação ambiental para as áreas pobres do mundo, de quem compra minérios e outros insumos. Os resultados negativos da exploração de minérios – metálicos, não metálicos e petróleo – ficou para as áreas produtoras. Os resultados negativos da produção de alimentos intensivos em extensão de terra e consumo de água, como é a produção de carne bovina, ficaram para os produtores.

Hoje, com o empobrecimento relativo do sistema Europa – América do Norte, o discurso verde é mais uma tentativa de dividir os custos com quem não auferiu os benefícios que alguma coisa realmente voltada para a conservação ambiental. É vil servir-se dessa linguagem para impedir que os mais pobres e maiores produtores de recursos naturais aufiram, agora, algum benefício dessa exploração.

Quando todas as commodities estavam relativamente baratas e os preços eram apropriados por um diminuto grupo ligado aos interesses externos, nunca houve discurso verde. A apropriação pelos compradores era dupla: tanto os preços eram baixos, como eram repatriados aos pagadores. Ou seja, tratava-se de simples exploração. Isso funcionou muito bem na África e na América do Sul.

Quando os produtores passaram a ficar com parcela maior do resultado da exploração e a dividi-lo menos concentradamente, as coisas mudaram de figura e o verdismo assumiu ares de discurso salvífico.

É interessante notar que o ambientalismo, como proposto, é uma contradição em termos. A farsa é propô-lo como possível a par com o aumento do consumo. Ele não se harmoniza com o modelo capitalista, o que não é invectiva contra ele, nem contra o capitalismo.

O capitalismo não conhece travas, nem limites. Os poucos limites em que os crentes na vacuidade que se chama direito acreditam atuam apenas nas margens e, quando é necessário, são afastados pela exceção, que reivindica para si a qualidade de insitamente jurídica.

O capitalismo implica produzir mais e mais, sempre, sob pena de não ser. Ele não conserva algum fator de produção, porque considerou que ele poderia esgotar-se mais ou menos rapidamente, ou porque considerou que o exaurimento do fator pudesse gerar algum inconveniente mais adiante. Essas considerações são-lhe totalmente alheias.

A conservação do ambiente e o aumento da produção são coisas incompatíveis e não se tornam compatíveis porque algum processo produtivo tornou-se mais eficiente, marginalmente. Os ganhos de produtividade são apropriados pelos aumentos da produção e, assim, mais que diluídos, são em muito superados pela marcha. Somente imensos saltos na produtividade – nomeadamente em geração de energia – podem ter efeitos positivos na conservação ambiental e esses ganhos estão longe de ocorrerem.

Existem duas linhas de fuga para a conservação ambiental. Uma pode ser confundida com o empobrecimento global e a confusão passa por crer que a redução dos níveis de consumo signifique redução de qualidade de vida. A redução do consumo do que depende de insumos cuja retirada é ambientalmente danosa não implica necessariamente a queda da qualidade de vida. Basta imaginar que é possível as pessoas continuarem a deslocar-se sem a necessidade de milhões de novos automóveis serem vendidos mensalmente.

Outra passa pela reordenação geopolítica, o que é mais complicado. Assim, uns passariam a consumir menos, para que outros pudessem elevar seus níveis – historicamente deprimidos – até um equilíbrio. Isso se faria por meio de preços, mais que por discurso ou mecanismos de compensações artificiais.

Exatamente por ser mais complicada a segunda e por ser impossível de proposição a primeira, o teatro Rio + 20 ficou a passear em torno de quase nada. Abstraindo-se do que é conversa para induzir sono em bovinos, ficaram pelas beiradas do segundo caminho e a reunião, na verdade, foi uma medição de poderes.

Foi bom que tenha sido assim, porque tangenciou-se a irrealidade e pôs-se na mesa o início do que será profundamente antipático: os preços vão subir.

Israel: ainda há gente sensata.

Israel sob constante e perigosa ameaça!

A distribuição da sensatez pelos grandes grupos socio-profissionais é relativamente equânime. Não é certo que haja muitos mais imbecis neste ou naquele grupo – clérigos, burocratas, militares, por exemplo – mas é certo que os papéis de certos grupos em determinado momento fazem-nos marcharem sob o ímpeto corporativo, o que leva a imensas dificuldades de percepção das diferenças individuais.

Com relação a Israel, sempre é interessante observar os militares, porque é um Estado profundamente dependente deste poder; sem ele simplesmente não existiria. Os militares israelenses costumam ser profundamente objetivos e dispostos para o combate. A política, em Israel, é basicamente um subproduto do belicismo cotidiano e a legitimidade política confunde-se com o legado concreto de cada um no envolvimento bélico.

Pois bem, Israel, por seu governo, cultiva uma imensa vontade de atacar o Irã. Dizem que os persas constroem armas nucleares e isso será uma ameaça à existência do país. Não é uma afirmação destituída de sentido, se abstrairmos de muitas circunstâncias, principalmente a história e o tempo passado. Assim, pode haver sedução nessa propaganda da ameaça, até porque o estar sempre ameaçado é o centro de todo discurso sionista, ainda quando ameaça alguma existe.

O Irã nunca atacou país algum, nos últimos séculos; a guerra que manteve com o Iraque foi calculadamente iniciada pelo país babilônico, que tinha um presidente amicíssimo dos EUA, da Inglaterra e da França: Sadan Hussein.

O Irã não está em condições de desenvolver armas nucleraes em período inferior a dez anos, o que todo mundo sabe. E não está disposto a abrir mão de sua pesquisa com finalidade de geração de energia, o que é profundamente inteligente. Claro que tentarão desenvolver armas atômicas, o que é mais que inteligente, é necessário porque Israel tem 250 delas e está ansioso por utiliza-las.

Acontece que um ataque israelense contra o Irã não tem chaces de êxito sem ajuda dos EUA, principalmente em termos de apoio aéreo e de infantaria, se a coisa realmente degenerar. E acontece que os EUA entrariam no pior negócio de sua história, se se envolvessem a fundo em tal guerra, pois eles não conseguiriam invadir o Irã com um assalto de infantaria.

Na verdade, essa guerra tão ansiada pelo governo israelense e por alguns setores do inner circle em Washignton só traria benefícios para banqueiros e produtores de petróleo e, subsidiariamente, para fabricantes de armamentos. Essa gente é percentualmente insignificante, como parte do todo das populações, então fica evidente que a guerra interessa a qualquer coisa em torno de 01% das gentes.

Quando a desproporção é assim tão grande, é natural que figuras graduadas, militares de altas patentes que vivem de serem profissionais apenas, abram a boca para apontar a estupidez que se anuncia. E isso está acontecendo.

Yuval Diskin, ex-chefe do Shin Bet, o serviço de segurança do governo israelense, disse que Netanyahu e Barak mentem sobre a suposta ameaça iraniana e os ridicularizou a dizer que eles não são os messias, não são os salvadores de Israel, que se dirigem a um público tolo ou ignorante.

Meir Dagan, insuspeito ex-chefe do Mossad, herói nacional, tinha ido mais além quando apontou o plano de ataque ao Irã de estúpido, nada mais, nada menos!

Benny Gantz, atual chefe do estado maior do exército, parece ter perdido também a paciência com a estupidez e a irresponsabilidade do governo e disse não acreditar que o Irã vá produzir armas nucleares e acrescentou que o governo iraniano é racional.

Somam-se a essas declarações algumas de generais norte-americanos, que não devem trabalhar também para bancos e indústrias bélicas, ou seja, devem ser apenas militares, de que a guerra não faz qualquer sentido e esgotaria o potencial bélico norte-americo sem qualquer real necessidade.

Ou seja, quem não está a trabalhar para interesses outros e disfarçados, quem é apenas militar, pensa um pouco, já esteve em ação, sabe muito bem que a estória da ameaça iraniana é falsa e que a guerra seria péssima para todos, exceto, é claro, para aqueles que habitualmente ganham com o pior para todos.

Espanha: O rei João Carlos I fez tudo que não podia.

A estupidez é diretamente proporcional ao tamanho do alvo dos tiros…

 

O rei João Carlos costumava ter atitudes inteligentes e, pelo menos aparentemente, sensatas. Não se trata de fazer a hagiologia de Dom João Carlos e de o elevar pessoalmente à condição de salvador. Todavia, o homem desempenhava bem suas funções, tinha senso de oportunidade, mantinha as aparências, não chamava a atenção para si mais que o necessário.

Ele, sabe-se, atuou no episódio de 1981 por cálculo político, pois é provável que fosse favorável ao golpe conservador cuja ponta evidente foi a palhaçada de Tejero. Terá abortado o golpe porque foi avisado que não haveria complacência ou apoio francês, nem alemão, mas revelou-se inteligente, porque percebeu que não dava para ir adiante. Ou seja, o rei não agiu por amor a sólidas convicções democráticas – o que afinal seria um paradoxo num monarca – mas, pelo menos agiu da melhor forma. Um imbecil teria apoiado o golpe, mesmo depois de alertado que a coisa seria dramática para o país.

O rei fez lobi internacional a favor das emergentes empresas multinacionais espanholas, nas décadas de 1980 e 1990, todo o mundo sabe. Não é algo propriamente nobre, mas é comum a figura do monarca comerciante, travestido em monarca diplomata, figura mais simpática. De qualquer forma, por menos nobre, não se pode dizer que tenha sido ruim ou contrário aos interesses espanhóis.

Que o rei se tenha aproveitado dos malabarismos financeiros do seu genro ou mesmo acobertado-os, é algo que não se prova, por enquanto. Que tenha os famosos casos extraconjugais, é algo desimportante, realmente, mas a ele convém ser discreto.

Todavia, que vá caçar elefantes em Botsuana, às custas do Estado espanhol, ao tempo em que se mantém presidente de honra de uma associação de defesa dos animais e quando a Espanha está à beira do precipício econômico é profundamente estúpido.

O rei parece ter abandonado todo o rigor consigo próprio, este rigor que o fez manobrar sempre cautelosamente, sempre aparentar austeridade e simplicidade, que o fez calcular os riscos de apoiar o golpe de 1981. O abandono desse rigor calculista evidencia-se na fotografia acima. Ela é nada menos que absurda. O monarca, velho, posa à frente de um elefante abatido e arranjado cuidadosamente, escorado em uma árvore.

Um imenso cadáver amolecido dá bem a idéia de um vasto e manso alvo para tiros precisos ou imprecisos – pouco importa – desferidos por um prazer fácil de caçar um bicho em extinção… Um prazer estranho, esse de acertar um alvo grande, lento e manso, que não oferece qualquer resistência; um prazer, diria, anti-viril; um prazer assassino sem sangue.

O rei é – ou era – presidente de honra na Espanha da organização internacional WWF, que cuida de defender a natureza. Não é preciso deter-se na absurdidade de um defensor da natureza a matar animais em extinção, por puro deleite de abatê-los. E não se trata de um absurdo com efeitos conceituais, porque a nudez completa da hipocrisia do monarca tem, sim, efeitos práticos no campo político.

A monarquia borbônica beneficia-se de um axioma político cuidadosamente construído a partir de algumas eviências: que a Espanha é impossível sob a forma republicana. Realmente, as experiências republicanas levadas a cabo desde o último quarto do século XIX mostraram-se inviáveis e uma delas acabou-se numa violentíssima guerra civil.

O axioma, porém, socorre-se de pouco corte histórico e da crença na imutabilidade histórica e política, além de um sofisma cuidadosamente escondido. Assume-se que a união da Espanha só é possível sob a forma monárquica ou sob uma ditadura, o que talvez seja verdade, mas omite-se uma questão antecedente: porque a união da Espanha deve-se considerar algo desejável, a priori? Será necessariamente desejável para todos os que se consideram formalmente espanhóis?

Bem, assumido que é desejado por todos que a Espanha seja uma só e que isso somente é possível com a monarquia, chega-se à evidência de que a monarquia tem de estar à altura dessa consolidação de um desejo nacional amplo. E, se esse desejo existe, certamente ele significa um substrato de solidariedade nacional, o que tem contornos muito dramáticos em ambientes de crise e empobrecimento rápido. Aqui, pede-se do rei muito mais que a grandeza política do abortador de golpes políticos a cálculo frio; pede-se que participe da solidariedade.

Gastar dezenas de milhares de euros do Estado – que os obtém de toda a população – para ir matar elefantes na África, quando o povo empobrece, resultou efeitos previsíveis. Um partido já pede a abolição da monarquia e instalação da república. Nem é propriamente pouca gente, nem o pedido vem acompanhado da proposta de fragmentação da Espanha. Ou seja, é uma aspiração que tem sentido político e tende a obter aprovação popular.

A estúpida atitude do rei obriga o poder consolidado, que vai do PP ao PSOE, a grandes esforços retóricos para defendê-lo e a sacar do bolso, meio envergonhadamente, o argumento chantagista do perigo de desagregação. Assim, a discussão não tende a acalmar-se, senão a se reanimar, porque não é verdadeiro que todos os espanhóis queiram sê-lo.

Quando o governo impõe o saque generalizado da austeridade – que, além do mais, é a pior saída econômica – o rei vai caçar elefantes… Quando a tal austeridade implica tensões com os orçamentos das autonomias e ressuscita debates sobre as independências, o rei vai caçar elefantes… Precisamente quando é impossível esquecer-se que crise profunda e Espanha lembram guerra civil, o rei vai caçar elefantes…

A absurdidade da coisa revela-se claramente na impossibilidade de a perceber, nesse episódio, sob a perspectiva da clássica pergunta: para quem o rei trabalha? Ora, nesse episódio, fica a parecer que ele trabalha para si, apenas, e não considerou qualquer outra coisa, qualquer hipótese. Esse é o maior perigo.

O jeitinho brasileiro e a estupidez bipolar.

Jeitinho brasileiro é expressão consagrada pelo uso amplo, que acarreta ambiguidade e perda de precisão. Qualquer coisa usada muito prodigamente sofre esse problema da perda de significação precisa, o que deveria levar as pessoas a pensarem o que pretendem dizer realmente.

Isso que se chama jeitinho brasileiro é uma forma de agir derivada da apropriação pelas massas do exemplo fornecido pelas classes dominantes. Todavia, a raiz desse agir costuma ser escamoteada por meio do destaque de aspectos laterais ou, simplesmente, pela não abordagem do objeto e de suas origens: é a técnica da caricatura, que pinta as coisas em tintas fortes e contrastantes até serem somente uma representação pitoresca que nada tem a ver com o representado.

O jeitinho é, pois, algo que o brasileiro acredita ser uma criação original, exclusiva e, mais importante, popular. Ele não é popular na origem, porque ao povo não são dadas essas liberdades para o protagonismo na definição dos comportamentos prototípicos de um povo. Na verdade, ele é a reivindicação do povo na participação no vale-tudo que sempre foi possível às elites.

As camadas populares assim pediram e assim obtiveram uma pequena complacência e possibilidade de flexibilizarem regras que insistentemente se dizem gerais, amplas e obrigatórias para todos. Ou seja, um pouco do que a minoria sempre teve e nunca escondeu, embora sempre a dizer que as regras existem e valem para todos. Aqui, vem à mente a inevitável pergunta: para quê a insistência em regras?

Com relação ao jeitinho brasileiro, duas inclinações são nítidas, diametralmente opostas, embora ligadas uma à outra. Há os que o celebram como criação originalíssima dos brasileiros e há os que o atacam a partir da lógica da tolerância zero. São duas formas de propagar a estupidez. Não pretendo ater-me à má-fé como motivo, tanto da celebração, quanto do ataque, que essa motivação é menos interessante, na medida em que é racional.

A celebração da originalidade, da espontaneidade e da felicidade que seriam ínsitas ao jeitinho é filha da ignorância histórica e de outras culturas. Ora, o jeitinho brasileiro não é mais original que outras formas de estar no mundo próprias de sociedades com profundas concentrações de rendas e divisões estamentais marcantes e sempre veladas. Assim, ele é tão brasileiro como africano sub-saariano, como andino, para ficar em dois exemplos genéricos.

O jeitinho satisfaz a necessidade de sermos os legisladores imediatos de todos os casos concretos das nossas vidas. Assim é que violamos todas as regras de trânsito de automóveis – e todos os dias, reiteradamente – porque é rapidinho, porque estamos prontos a desviola-las. Paramos onde não pode, mas é rapidinho, ou seja, deixa de ser uma violação porque ela é fugaz; retornamos onde não pode, mas é coisa pequenina e tem quem faça pior.

No fundo, é como se disséssemos que a lei é absolutamente inútil. Não é o caso de dizermos que a lei comporta excepções, mas de a interpretarmos tão frequentemente e em causa própria, que significa sua inexistência. A regra torna-se conforme à nossa vontade em todos os momentos; é uma regra tão aberta a interpretações que regra não é, apenas interpretação. Aliás, esse é um aspecto que deixa ver o quanto de plebeísmo tomou conta do poder judiciário, que age da mesma forma.

O jeitinho é personalismo levado às últimas consequências, ao contrário dos traços de gentileza social que pretendemos ver nele. É todo sujeito a agir em benefício próprio, segundo regras que são a negação das regras, fazendo a lei a todo momento para si. Isso é fermento de dissolução de alguma coesão social porventura ainda existente. Não é algo a ser celebrado.

Na visão diametralmente contrária, há quem veja o jeitinho como simples falta de rigor, ou seja, sob a óptica da tolerância zero. Ora, a tolerância zero equivale à inteligência zero. A total falta de escape é incompatível com a vida, pois as excepções existem. A lógica da tolerância zero é contrária à noção de julgamento segundo as intenções do agente. Na verdade, é a instituição da punição sem julgamento, porque se a tolerância é zero, não se toleram defesas!

A condenação veemente do jeitinho como simples falta de rigor é ignorância histórica profunda. Nunca faltou rigor, no Brasil, para as classes menos favorecidas, o que se evidencia nas suas condições de vida: são as maiores vítimas de violência; são as maiores vítimas da deficiência do sistema de saúde pública; são as maiores vítimas do péssimo sistema de educação privada.

São ridículas – ou hilárias, a depender do senso de humor do observador – as acusações de leniência e falta de rigor, como raízes do jeitinho. Ele nasceu exatamente como forma não autorizada de escape das violências profundas sofridas diariamente pela maioria das pessoas no país. Ele não inverte a equação, ou seja, ele não torna justamente pagas as violações historicamente sofridas.

O jeitinho brasileiro não é original mesmo no que parece ser. É o conúbio, para pior, dos interesses do 01% e dos 99% restantes.

EUA: primeiro, fica-se rico, depois, atribui-se isso a uma superioridade ética. Depois, fica-se pobre…

O governo norte-americano vive aqueles deliciosos momentos precedentes a uma grande guerra, que se fará nos interesses de Israel e de meia dúzia de banqueiros, fabricantes de armamentos e vendedores de petróleo. Deve ser algo muito excitante, realmente, isso de gozar os momentos que antecedem à declaração, ao bombardeio mediático, aos bombardeios explosivos, à matança generalizada. Sangue! É bom, todos que comeram uma picanha mal-passada sabem-no.

Que os países façam guerras, é coisa que se explica pela lógica da dominação e da permanência; pela lógica da dominação interna por certos grupos; pelos interesses econômicos de alguns. Mas, dizer que uma guerra é justa, ou qualquer outra tolice desse tipo, que visam a inserir explicações analógicas para uma questão de interesses, é agressivo e revelador.

A guerra precisa de justificativas. Ela, que é o rompimento com as explicações, as regras, a civilidade, precisa de justificativas. Ela levou as pessoas ao paroxismo de teorizarem um direito a ela próprio! Um direito da guerra é das maiores contradições em termos que se podem conceber, porque a guerra é a superação de qualquer direito.

Os EUA precisam fazer a guerra, como precisaram todos os impérios. O povo também precisa dela, porque as migalhas que lhes restam caem das mesas dos que ganham muito com o belicismo contínuo. Não há inocentes, embora haja enorme diferença na apropriação dos ganhos e na composição das infantarias.

É preciso dizer que se vai matar os outros porque eles são inferiores. E, não basta que sejam inferiores tecnicamente, eles têm que ser inferiores segundo o mais intangível dos critérios: eles são inferiores moralmente. São maus, os inimigos, e guiam-se só e só por instintos malvados; não são apenas diferentes nos interesses, falar e trajar, são maus em oposição aos bons.

Eu mato e mato e mato porque sou bom, porque os mortos são ruins, porque, afinal de contas, sou ungido de Deus e ele deu-me licença absoluta para, em nome Dele, matar. Eu não mato porque quero enriquecer ou submeter o outro à escravidão, apenas porque sou o intérprete juramentado da vontade divina e posso fazê-lo.

O signo da minha superioridade, da minha ascendência divina, é minha riqueza e meu domínio militar. Assassino a lógica mais elementar sustentando essa tese de que sou rico e poderoso porque sou filho autorizado de Deus. Observem que se os termos forem invertidos o resultado é diverso! Não sou filho de Deus – e único – porque sou rico; sou rico e potente porque sou o escolhido Dele!

Tudo bem, seja assim. O problema é que a minha filiação divina precisa ser atemporal, ou seja, sempre fui. Ora, se sempre fui – e por isso sempre pude matar e sempre fui poderoso – como posso explicar ter sido pobre e não ter podido matar sempre, impunemente e com aprovação das massas? Como posso estar na história, se meu postulado é essencialmente anti-histórico?

Jorge Rafael Videla abre o jogo.

O ex-general e ex-ditador da Argentina entre 1976 e 1981 deu entrevista à revista Cambio 16, espanhola. Ele encontra-se preso, atualmente, a cumprir sentença perpétua por inúmeros homicídios cometidos no exercício do poder.

Li a entrevista no blog do Emir Sader, que propõe uma citação de Shakespeare, como prévia à suas considerações e à transcrição da entrevista propriamente dita. A citação é de uma frase de Hamlet: Há lógica na loucura.

De minha parte – sem discordar de Shakespeare – digo que a loucura é a lógica levada às últimas consequências. Assim, há mesmo lógica na loucura, há demasiada. Discordo, todavia, de Emir Sader quanto a ser questão de loucura a capacidade de Videla articular o pensamento e dizer as coisas claramente.

Diz as coisas claramente, o que não afasta o dizer as coisas parcialmente e segundo um ponto de vista e um conjunto de interesses. Ele defende-se na situação do homem que aparentemente está perdido totalmente, mas é o homem que não se acredita ainda irremediavelmente perdido. Sim, porque ele defende-se na forma clássica, ele acusa quem buscou sua punição; ele age no âmbito político, que afinal é o único das ações.

Videla diz que sua situação perdeu-se com a ascensão dos Kirchner, o que é verdade e é honroso para estes. Diz que os Kirchner buscaram puni-lo – fazê-lo cumprir a sentença a prisão perpétua em um cárcere e não em casa – por revanchismo, o que é um sem-sentido.

É sem-sentido porque toda punição é um revanchismo.  Videla é desonesto ou ignorante nessas suas considerações, porque finge ou desconhece um dos caracteres sempre presentes em todas as penas: a retribuição. Ele gira em torno ao princípio de identidade e, ao dizer que A=A, diz nada.

É profundamente desonesto ao reivindicar princípios e conceitos jurídicos que a ditadura argentina não prezou minimamente. Ora, o revanchismo que move o Estado argentino contra ele é o mesmo que moveu a ditadura contra milhares de cidadãos argentinos e estrangeiros, com duas diferenças nada sutis:  1 – ele não será executado por revanchismo, ao contrário do que fez; e 2 – os punidos são uma pequeníssima fração dos assassinados pela ditadura.

Videla não é louco; é patife sem controle. Em alguns momentos da entrevista é precioso, porque está em situação desfavorável e já perdeu a ocasião de dar-se a mentiras muito evidentes. Esses momentos levam a comparações com os ditadores brasileiros, que sempre mantiveram um nível de hipocrisia muito mais elevado que o argentino.

Videla diz que eles deram um Golpe de Estado na Argentina, sem meias palavras. Que eles obtiveram do Presidente Luder – interino após a queda de Eva Perón – decretos que eram mais do que pediam e eram verdadeiras licenças para matar.

 Obtiveram as licenças e mataram, está claro. Mataram muitos. E, diz mais que chegaram a tal situação com forte apoio do empresariado argentino e da Igreja. Ou seja, instados a matarem mataram por vontade, dever e autorização dos que mandavam: os empresários e a Igreja.

No Brasil, os remanescentes da ditadura não dizem que deram um Golpe de Estado em 1964, não dizem que contaram com apoio da classe empresarial e da Igreja e, principalmente, não dizem que receberam dessa gente licença para matar e a utilizaram.

No tribunal, quando seu caso foi reaberto, Videla teve ocasião de dizer que todos os seus subordinados agiram por ordens suas, ou seja, assumiu pessoalmente milhares de homicídios… Claro que ele sabia-se já perdido, mas é uma honradez na perfídia que devia por a pensar muitos coronéis e delegados de polícia brasileiros.

Aqui, cultiva-se a confusão, a culpa difusa, a mentira, a falta de coragem. Assassinos e torturadores contumazes fazem papéis de covardes, a ponto de negarem os fatos.

O discurso dominador reivindica cientificidade: o caso da eficiência e austeridade germânicas.

Acompanho a evolução da crise na Europa, cada vez mais temeroso das consequências políticas que se anunciam. As consequências econômicas e sociais, estas são previsíveis: empobrecimento e recuo geral das condições de vida. Não será fácil lidar com elas, pois os recuos de gentes que chegaram a níveis elevados de vida e gozam de padrões altos de proteção social é traumático.

A crise só encontrará uma solução, que passa pela instituição da federação, na Europa. Ou seja, solução, se houver, é política antes de ser financeira ou financista. Os alemães e franceses não deveriam temer mais a federação – e a consequente diluição do poder político legitimado – do que temem a falência de alguns Estados e o consequente final da moeda única.

Na verdade, a falência de alguns Estados será pior para a Alemanha que para os falidos, na medida em que as exportações tedescas destinam-se maioritariamente a países da Europa. Ora, se esses países quebram e voltam a suas moedas originais, ficam praticamente impedidos de comprarem produtos alemães e franceses, com custos de produção no que restar do euro, ou seja, em moeda forte. Sabe-se que um euro reduzido a moeda de alemães, franceses, holandeses e belgas seria ainda mais valorizado que atualmente.

Daí, percebe-se que a competitividade dos países norte-europeus só faz sentido internamente a um espaço que usa a mesma e valorizada moeda. Se esse espaço diminui e os vizinhos subitamente voltam a suas desvalorizadas moedas, os virtuosos norte-europeus vão reivindicar sua competitividade frente a quem? À China, à Índia, ao Brasil?

Os virtuosos povos do norte da Europa convidaram seus vizinhos de mais ao sul a entrarem na festa; estimularam suas ganas aquisitivas; disseram-lhes que podiam e deviam aceder ao mundo mágico das BMWs e Audis; ofertaram-lhes crédito vasto e barato; levaram-lhes à megalomania da construção civil. Eles endividaram-se, obviamente, e seus governos endividaram-se, na sequência, para salvar os credores…

Os virtuosos falam, hoje, contra os endividados, como se não os tivessem convidado ao endividamento. Falam como se se tratasse da coisa mais evidente, amparada em alguma ciência econômica muito certa, empírica e previsível. Na verdade, fazem um obsceno discurso moral travestido de ciência econômica.

Isso não é propriamente novo, mas é alarmante no que tem de aposta redobrada em discurso envelhecido. E assombra que a coisa venha resultando até bem, que o discurso venha funcionando no seu objetivo mais escondido e mais perigoso, que é promover o sentimento de culpa da vítima, por uma suposta forma de ser, invariável e inevitável.

Falo, está claro, do mito da lassidão dos povos do sul europeu, dos mediterrâneos, latinos, ibéricos, itálicos, helénicos. De uma espécie de lassidão misturada com acomodação e desregramento e irresponsabilidade, a que se oporiam a tenacidade, a sobriedade, a laboriosidade, a honradez dos nortistas. Isso, digamos sem palavras meias, é um mito que só se pode repetir impunemente porque a ignorância histórica anda elevada na Europa, como por toda parte.

A perversidade maior disso é que os povos retratados passam a identificar-se nos seus retratos e assumem uma má-consciência, um sentimento de culpa quase, de culpa de serem algo que lhes disseram que são. Aqui e alí há gente mais lúcida e outros mais revoltados que escapam a essa prisão mental, mas a maioria está a pensar em círculos e segundo o modelo da inferioridade que lhes impuseram. Poucos lembram que a história é deveras longa, que há vários ciclos, que os povos sobem e descem.

Pouquíssimos lembram – até porque pouquíssimos leram – que há dois mil anos, mais ou menos, significativa parte dos escravos em Roma era precisamente composta pelos ascendentes dos atuais laboriosos alemães.  Que o patriciado romano chamava à região do norte da atual Alemanha, Dinamarca, Países Baixos a cloaca do mundo. Enfim, que há pouco tempo, a norte do Danúbio e a leste do Reno era a barbárie…

Os bárbaros enriqueceram, organizaram-se, saquearam o mundo, desorganizaram a Ásia nesse seu saque, destruíram a África, souberam apropriar-se de uma herança jacente helénica e latina. Não hesitam em, ao mesmo tempo, clamar por essa herança grega e romana e afirmar sua própria germanicidade, que seria o sopro revitalizante e energia fresca e original a fecundar a cultura. Isso é uma tolice racista como muitas outras. Uma mistura de racismo e moralismo com tintas de ciência de almanaque, divulgada como instrumento de dominação.

É estratégia inteligente, como são todas aquelas que visam a dominar mediante o convencimento do dominado de que ele está em uma situação natural. O dominado fica dócil ao dominador quando se convence que não há domínio, propriamente, mas a resultante natural de circunstâncias que lhes são próprias e imutáveis.

Ora, se um povo inclina-se à preguiça e à irresponsabilidade ele está previamente condenado! Mas, pensemos calmamente, é de levar-se a sério uma assertiva desse tipo? Claro que é profundamente leviano e mesmo destituído de qualquer sentido dizer que um povo tem as características tais ou quais, que lhes impõem um destino certo, assim em termos morais e maniqueístas, porque isso simplesmente é falso e destituído de qualquer rigor.

Os laboriosos e responsáveis alemães – para voltar aos exemplos históricos – eram profundamente irresponsáveis, violentos e pouco dados ao trabalho organizado há vinte séculos. Sim, porque não se pode dizer que um povo a viver sem leis estáveis, sem estradas e sem cidades, sem tomar banho, sem uma gramática codificada, sem literatura fosse o protótipo do que eles hoje afirmam de si mesmos! Eles, hoje, são a prova de que as afirmações de características imutáveis de um povo não passam de falácia superficial. Eles mudaram em quase tudo e quase nada, excepto pelos banhos, é claro…

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