Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Divagação (Page 12 of 17)

Tocata e fuga em Ré menor, de João Sebastião Bach, para os dois lados do cérebro.

Sidarta, estimado, pensei em ti quando vi este magnífico vídeo. A melodia da Tocata e Fuga em Dó Maior, de Bach, é triste e insinua uma transcendência gloriosa, talvez temida, talvez com percalços, certamente tributária do platonismo para as massas, na sua melhor interpretação reformada. Em música, é o que Kant foi em filosofia racional cheia de deidades categóricas, disfarçadas em aparente racionalismo. Kant, afinal, é o São Tomás da Reforma.

Mas, não é isso que interessa, por aqui.

O vídeo e a música fazem pensar em limites e possibilidades das linguagens. Por um lado, o que se vê é matemática pura, porque tempos, tons e semitons, na escala cromática, são questões de divisões. Interessante é um mesmo significado ser apresentado por três significantes, ao mesmo tempo, o que nos permite perceber as diferentes abordagens que podem resultar dos hemisférios esquerdo e direito.

Vê-se, sob um aspecto, e escuta-se, também sob um aspecto, matemática. E com uma clareza imensa.

Ao mesmo tempo, o que se vê, os pontos e barras com tempos e intensidades e, mais, cores, é percebido espacialmente, em uma competência especial do hemisfério direito.E com a melodia, dá-se o mesmo, porque ela percebe-se em três dimensões, certamente em função das competências da metade direita dos lobos frontais.

Mas, esse lobos comunicam-se, por meio dos corpos calosos, e tudo percebe-se como um e vários! Já imaginaste como isso seria visto por alguém submetido a calosectomia? É pena que não se possa mais perguntar a Roger Sperry!

O Paquistão tem 100 ogivas nucleares!

 

A forma de atuar do governo dos EUA é conhecida e previsível, tomando-se em conta a quais interesses serve e seu histórico recente. Gerar ameaças e mantê-las atualizadas, ou seja, constantes, é o objetivo imediato.

O objetivo mediato é fazer o restante do mundo pagar-lhes para combaterem a ameaça, qualquer que seja. Desde a queda da URSS, esse meio de atuar aprofundou-se e pulverizou-se. A substituição necessitou ser constante e programada.

Bem programada, deve-se dizer. Realmente, atuar fora da bipolaridade requer muito mais responsabilidade e habilidade que antes, quando a brincadeira era mais evidentemente combinada com os russos. Eles não forjaram um histórico de atuação estratégica cuidadosa e inteligente, simplesmente transpuseram os nomes nos manuais.

O jogo de enfrentar al quaedas e coisas do gênero, inclusive criando líderes de coisa nenhuma, é pouco perigoso. Mas, ele pressupõe um controle que somente se tem quando todos são oriundos de uma mesma matriz. A verdadeira pulverização de uma ameaça não está prevista.

O Paquistão não se resume a meia dúzia de generais riquíssimos e profundamente laicos. E as agressões norte-americanas no mundo inteiro não são poucas, nem geradoras de pequenos ressentimentos que se possam controlar com políticos subornados.

Portanto, convinha que passassem a jogar com mais habilidade, porque esses generais não detém 100 ogivas nucleares por direito divino e imutável…

 

Picanha com bacon e vinho tinto, na caçarola.

Estou com uma gripe relativamente forte, muito constipado, mas ainda não o suficiente para deixar de pensar em comida. Hoje, queria comer carne de boi, fartamente.

Eis o que fizemos: uma picanha na caçarola, inventada na hora.

Toma-se uma peça de picanha, com a capa de gordura média, e corta-se em fatias de dois centímetros, mais ou menos, perpendicularmente.

Espremem-se oito dentes de alho e corta-se em rodelinhas um maço de cebolinha. Refogam-se o alho e a cebolinha em azeite, por um ou dois minutos e acrescenta-se bacon cortado em pedacinhos miudos. Tampa-se a panela e baixa-se o fogo. Passados outros dois ou três minutos, acrescenta-se um bocado de molho inglês – worcestershire – que baixa a fervura. Mantém-se a panela fechada e o fogo baixo.

Em seguida, aumenta-se o fogo e põe-se os cortes de picanha, arrumados de forma a ocupar toda a área da panela, que se tampa. Cinco minutos depois, viram-se os pedaços de carne mantém-se tampada a panela, agora com fogo baixo.

Mais cinco minutos e despeja-se um copo cheio até às bordas de vinho tinto seco. Daí em diante, são mais vinte minutos.

O resultado, maravilhoso, de uma carne macia e um molho consistente e escuro, sabendo ao toucinho fumado e aos alhos e ao vinho, come-se com arroz branco. Depois… um cochilo.

 

Saudades de Braga.

Lígia enviou-me um e-mail. Disse-me que vai a Portugal com a sobrinha Mirella, que deve lá estar por quinze ou vinte dias e pediu-me algumas sugestões. Estará duas semanas em Lisboa, com primas dela que lá moram, e tem três ou quatro dias para viajar. Parei pára pensar…

Não consegui evitar responder em uma longa mensagem, como se saboreasse todas as trivialidades que fizeram parte de meu cotidiano, por um ano. Não pude evitar a sugestão de ir ver a Ribeira do Porto, descendo de São Bento, a caminhar. De ir a Gaia, passando pela Ponte D. Luís, porque assim vê-se o Douro verde granítico.

Não pude deixar de dizer que, se possível, fosse a Braga. Que fosse ver a Catedral, que subisse a Rua do Souto, que tomasse um café n´A Brasileira, que olhasse a Avenida Central, a Avenida da Liberdade. Que, antes, entrasse à esquerda e fosse ver o Jardim de Santa Bárbara, que deve estar florido por estes tempos.

Fui fazendo sugestões que eram coisas comuns, há três anos… Não perdi a precisão, acho, pois consegui lembrar o preço de um comboio do Porto para Braga, consegui lembrar como é a cidade vista desde o Bom Jesus.

Lembro-me com saudades imensas de um passo após o outro, na caminhada pela feia Rua Nova de Santa Cruz, até chegar à passagem para a Rua Dom Pedro V, de calçadas estreitas até ao Largo da Senhora-a-Branca. Chove fininho e, na altura do Minipreço, a calçada alarga-se, há uma garagem de Volkswagen e, depois, a Igreja de São Victor.

Depois de São Victor,  mais memórias. O Largo da Senhora-a-Branca, a Av. Central.  Caminha-se mais lentamente, agora. Se tomo à direita, sigo pela avenida, com as gambas e a loja do paquistanês à esquerda. Se tomo à direita, vou aos correios, como ia frequentemente, mandar livros para os que gostam deles.

Posso ir lentamente até o Continente, comprar um jornal, alho, cebolas, carne moída, algum sabão que falta em casa. Passo a passo estou em casa e não estou nela. Sempre, ao mesmo tempo, sou de fora e sou do caminho. Vejo – com o só podem ver os que caminham – o rio que passa pequeno, os delumbrados das BMWs modificadas, as crianças que saem da escola, o gato Joaquim que está na janela na rua que aponta para o Continente.

Não vou ao supermercado. Viro à direita, vou ao centro pelo caminho mais longo…

 

 

Histeria anti-nuclear.

Estava a escrever um texto muito calmamente sobre o assunto aí do título.  Coisa pensada, alinhando uma e outra informação. Afastei-me do computador por alguns instantes, para pensar um pouco, comer alguma coisa, tomar um copo de vinho. Quando voltei, não havia mais coisa alguma. O texto sumiu. Acho que alguma das gatas andou pelo teclado e sumiu o texto.

A raiva é imensa, pouco importa a qualidade do que se fazia, é imensa, sempre. Raiva é sensação de absurdidade, de perder subitamente pensamentos. Mas, talvez venha a calhar para a noção de risco, de que falava e vou falar agora mais rapidamente.

Esses terremoto e maremoto que aconteceram no Japão levaram duas centrais nucleares a pararem de funcionar. Três reatores estão a fundir-se, embora neguem sutilmente. Fundem-se porque não podem fazer outra coisa sem a refrigeração do sistema fechado de circulação de água. Mas, essa fundição de U-235 vai ficar confinada em um casulo de aço com paredes de 15 cm que, por sua vez, está em uma imensa caixa de concreto.

Urânio 235 enriquecido a mais de 3%, em situação supercrítica, emite nêutrons que bombardeiam os núcleos e geram a fissão deles. Resultam muito calor e radiação. Calor ferve água e gera energia, em resumo impaciente. Toda essa coisa precisa de refrigeração, além de bastões de grafite que atenuam a fissão. Sem o sistema de água a circular, ele derrete.

As usinas têm sistemas redundantes de bombeamento de água. No caso de Fukushima, três redundantes geradores a óleo devem garantir a energia para a circulação de água no núcleo do reator. Com um terremoto de 8,9 graus na escala de Richter, acompanhado maremoto, podiam ser quatro cinco ou seis, que não resultaria.

Com um terremoto e um maremoto desses, se fosse próximo à usina hidrelétrica das Três Gargantas, na China, morreria muito mais gente. Com um negócio desses em Itaipu, boa parte do Paraguai e do Uruguai viraria um pântano, cheio de cadáveres. Enfim, com um negócio desses nada fica bem depois, seja usina nuclear, seja um café da esquina.

Morreu gente embaixo de navio, embaixo de carro, dentro de carro, debaixo de prédio, simplesmente afogada, enfim, morreu gente de toda forma. E morrerá gente contaminada por radiação – expelida com os vapores do sistema de refrigeração – uns rapidamente, outros com cânceres e leucemias de longo prazo.

Se um sismo desses atingisse laboratórios franceses, suiços, norte-americanos, haveria uma impiedosa difusão de microorganismos – virus e bactérias, basicamente – que matariam com os requintes da feiúra própria das infecções mais poderosas. Feiúra tão feia quanto as queimaduras ou leucemias de contaminações nucleares.

Risco não é algo que se suprima, senão chamava-se por outro nome. Risco é a possibilidade de algo acontecer, o que se tenta evitar prevenindo-se a partir de séries de dados históricos e extrapolações matemáticas. Mas que, como risco, um dia acontece.

O que ficou nas cabeças das pessoas como ciência oculta de almanaque de curiosidades mete medo. Na verdade, a vida é que devia meter medo nas pessoas, porque é o mais assustador que existe. O caso é que a geração de energia a partir da fissão do núcleo do urânio ou do plutônio é um medo histérico para muitos.

Histérico e curiosamente revelador de quanto há de desinformação. Esse medo histérico da geração nuclear é capaz de contemplar a enormidade imponente de um porta-aviões norte-americano, quem sabe fundeado ao largo de Lisboa. Essa majestosa nave de guerra é um bocado de aço em torno a uma usina nuclear!

Todos aqueles naviozinhos menores que acompanham o imenso porta-aviões são usinas nucleares mais pequeninas e mais graciosas, nas suas proporções. Todos os dias, em todos os locais, há usinas nucleares norte-americanas, chinesas, russas, francesas, inglesas, israelenses navegando em mares nem sempre calmos. Usininhas nucleares boiando sobre as águas tempestuosas ou calmas, administradas por marinheiros cujos humores não se conhecem.

Aquele vaporzinho que sai do convés de vôo dos porta-aviões, quando suas catapultas lançam ao ar um avião, foi gerado pela usina nuclear desconhecida da histeria coletiva. Enfim, há muito mais usinas nucleares por aí do que supõem os manifestantes de qualquer cruzada anti-nuclear.

A França, hoje, gera aproximadamente 65% de sua energia elétrica a partir de usinas nucleares e nunca teve um acidente significativo. Significativas são as reduções de dependência do petróleo árabe e norte-africano, do gás russo, do carvão deles e dos alemães. Significativo foi o que deixaram de plantar com turbinas eólicas e células foto-voltáicas para plantar com trigo.

Significativo foi o que deixaram de queimar fósseis, de emitir dióxido de carbono na atmosfera. O que deixaram de ter de instabilidade na rede, porque a geração nuclear tem imensa disponibilidade de despacho de cargas. Significativo foi o que deixaram de gastar de recursos naturais, porque meio quilo de urânio 235 a 3% equivalem à energia de 3.800 milhões de litros de gasolina, para um exemplinho vulgar.

Um acidente nuclear pode matar gente? Pode, claro. As guerras por petróleo podem e matam gente diariamente. Os lagos das hidrelétricas matam vastas áreas em que se pode plantar o que gente come. Se rompe uma barragem morre gente? Pergunta tola, sem precisar de resposta.

Pode o mundo dar-se ao luxo de gerar energia queimando carvão e petróleo? Sim, pode, até que alguém ache ruim e até que o óleo acabe, depois de ter acabado com o clima, com as temperaturas minimamente razoáveis, com alguma estabilidade do regime de chuvas.

Pode o mundo viver do que a tolice dominante – religiosidade científica – chama de energias limpas? Pode, sim, desde que o mundo passe a ter metade de sua população ou que aceite pagar mais pelo mesmo ou que aceite matar a outra metade de fome sem culpas na consciência. Não há energias limpas, não há vida limpa.

Não há energias limpas – para ficar com o termo – que supram a voracidade energética atual. Se cataventos imensos foram instalados de norte a sul, na costa leste dos EUA, expulsando as mansões dos milionários e as indústrias do turismo e da pesca, de nada adiantaria. E, depois de vinte anos, pensem o que se faz com uma pá de trinta metros de uma turbina eólica. Corta-se em pedaços e vende-se como souvenir?

A bobagem fotovoltaica, que hoje não se leva a sério, já foi uma redenção para todo sujeito que acha bom e acha ruim conforme o programa de Discovery Channel que viu. Seria maravilhoso substituir toda a soja plantada no Brasil por células fotovoltaicas. Ficaria mais bonito. E identificaria limpeza energética a fome.

Os sonhos vêm do ar e da luz, isso é bastante poético e humano. E ar e luz têm muita energia, a mesma que os vegetais usam para viver e crescer e alimentar-nos. A questão aqui é de preço e de quantidade de gente a consumir comida e energia. Um dos preços paga-se materialmente, realmente, ou seja, come-se menos, há menos gente.

Tenho para mim que todo esse besteirol é pago pela indústria do petróleo, que é quem controla a das energias limpas. Aparente contradição, a mais suja é a dona das limpas. Aparente, porque ambas são as mais caras. Mas, quando a mais suja acabar-se, os donos vão vender as mais limpas – para ganhar dinheiro – e a única possível para atender a demanda, a nuclear, porque não são suicidas.

Há, porém, uma saída, de que ninguém quer ouvir falar: reduzir drasticamente o consumo. Reduzir a ponto de ficar-se com os potenciais hidrelétricos e eólicos como suficientes. Reduzir a ponto de evoluímos, em milhões de anos, até vermos com pouca luz, como os gatos. A ponto de aceitarmos os calores e frios estúpidos com a nudez e camadas sucessivas de lã fiada à mão.

 

Dominação mediática. A piada permitida.

Os meios de comunicações audiovisuais são instrumentos fortíssimos de dominação, que atuam sem que os dominados consigam percebê-lo. Melhor dizendo, atuam com certas sutilezas que levam os dominados a assimilarem padrões de superioridade e de inferioridade, ao tempo em que tudo aparenta igualdade.

Um exemplo trivial, que me vem agora à mente, são as séries televisivas norte-americanas. Todas elas seguem o modelo de personagens padronizados, segundo a lógica de oferecer os protótipos de identificação social básicos.  Oferecem também as piadas permitidas, ou seja, o campo encontra-se previamente delimitado.

Especificamente, penso agora no chamado Big Bang Theory. Essa série apresenta quatro personagens principais: dois norte-americanos brancos wasp, um norte-americano judeu e um indiano. São físicos ou engenheiros, ocupantes daquela tipologia comportamental que em inglês chama-se nerd.

Seus ridículos são seus traços únicos e, no fundo, não-ridículos. Aparentemente, não há aqui qualquer desnível social, porque todos são objetos de piadas, que se parecem iguais em termos valorativos, mas não são. Há uma estratificação entre dominados e dominadores, perceptível na escolha das piadas.

Sabe-se muito bem que a indústria do entretenimento de massas é detida, em significativa proporção, por judeus norte-americanos. Sabe-se também que é estúpido apresentar uma personagem infalível, porque então a inverossimilhança evidencia o absurdo. A grande jogada é escolher as piadas que se aceitam contra si.

Na série dos físicos, a personagem judia é alvo de piadas por nariz grande, pela indumentária e por uma ginecofilia exacerbada e desproprorcional à maturidade esperada da idade. Isso é precisamente aquilo que foi estabelecido pelos próprios como as piadas aceites.

A personagem indiana é alvo de piadas, mais ou menos sutis, relativamente a homossexualidade e misoginia, o que insinua inferioridade, notadamente em sociedades androcêntricas, em que o tipo dominante é o conquistador. Todavia, o público é levado a não perceber as diferenças valorativas, preso ao fato de que todos são alvos de piadas que, todavia, são muito distintas.

Não é à toa que a personagem do judeu não é alvo de insinuações de homossexualismo, porque essa característica é objeto de uma rejeição profunda pelo judaísmo. Pela mesma razão, não se fazem piadas com o suicídio de judeus ou com deles que tenham inclinações suicidas.

E assim funciona porque eles escolhem os estereótipos e para si permitem aqueles que não têm maiores cargas ofensivas e na medida para dar aparência de igualdade e tolerância.

Claro que fazer anedotas ou apontar os ridículos dos outros em caracteres rejeitados no seu grupo social ou étnico é algo de péssimo gôsto. Mas, é precisamente o que se faz com as personagens que simbolizam o outro. Com o outro, os limites de gôsto ou de cordialidade simplesmente não existem.

E o público fica na sua confortável tolice de achar que os espetáculos mediáticos são inertes em valorações.

Berlusconi: uma chave possível para a compreensão.

Um interlocutor sábio é uma preciosidade. Nem tanto por concordâncias ou discordâncias, mas pela forma de abordar o assunto além, é claro, da escolha deste assunto. Há poucos dias, conversava com o Miguel sobre a existência ou, melhor dizendo, sobre a persistência de Berlusconi no poder.

Não me recordo de toda a conversa, evidentemente, nem fui ao facebook reaviva-la integralmente. Prefiro tentar recupera-la, em linhas gerais, de memória. Iniciei por falar de manipulação mediática, como explicação da persistência berlusconiana. Miguel retrucou – não propriamente como objeção direta – que talvez fosse o caso dos italianos perceberem-se em Berlusconi, ou seja, serem alvos da sedução por identificação.

Acrescentou que são milhões de italianos detentores de cultura formal a votarem no homem, mais de uma vez. E indagou se essa gente toda iria dizer-se, ao depois, enganada. Realmente, não é coisa muito trivial e não se compreende se ficarmos na pura dicotomia manipulação ou identificação.

Achei que os dois fatores estavam imbricados, pois há mesmo bastante de identificação, ou seja, dos eleitores perceberem-se no eleito e assim fazerem escolhas trágicas, mesmo que sejam pessoas formalmente educadas.

A grande pergunta não é mesmo sobre a manipulação. Talvez a grande pergunta seja sobre a liberdade individual, ou seja, se ela ainda se pode considerar existente. E aquilo que Miguel sugeriu, de os italianos perceberem-se em Berlusconi, chamou-me bastante atenção. Meti-me a pensar no assunto e acho que encontrei algumas chaves interessantes para sua compreensão.

Parece-me que acontece algo um pouco mais complicado que a identificação do eleitor com o eleito, mesmo que essa identificação seja pontual, em um e outro aspecto mais visível da pessoa mirada. Creio que vivemos mais uma situação de incapacidade de identificações precisas, algo como uma despersonalização, algo que somente enseja identificações rapidíssimas, ligeiríssimas, pelas aparências.

Não gosto de fazer citações, porque frequentemente resultam em trechos que pouco sentido fazem fora da completude da obra de onde provém, mas farei uma, adiante, para que peço atenção de quem se detiver a ler isto aqui. Trata-se de uma parte do Comentário de Guy Debord à sua obra A sociedade do espetáculo. Esse comentário encontra-se nas edições mais recentes, como espécie de epílogo, e deve ser dos finais dos anos 1980.

O discurso espetacular faz calar, além do que é propriamente secreto, tudo o que não lhe convém. O que ele mostra vem sempre isolado do ambiente, do passado, das intenções, das consequências. É, portanto, totalmente ilógico. Como já ninguém pode contradizê-lo, o espetáculo tem o direito de contradizer a si mesmo, de retificar seu passado. A atitude arrogante de seus serviçais quando devem apresentar uma nova versão, talvez ainda mais enganosa, de certos fatos consiste em retificar rispidamente a ignorância e as más interpretações atribuídas ao público; ora, os mesmos serviçais, pouco antes, faziam de tudo para difundir o erro, com o ar seguro de sempre. Dessa forma, o que o espetáculo ensina e a ignorância dos espectadores são impropriamente considerados fatores antagônicos: na verdade, um nasce do outro.

O espetáculo de fato tornou a vida e os fatos dela coisas atemporais, anti-históricas. Dissociou as coisas que compõem uma vida, principalmente a memória, seja pessoal, tradicional ou colectiva. Ele cometeu o crime genial de estabelecer o presente contínuo, sem futuro ou passado, como uma simples sucessão de imediatos que não se liguem entre si. Essa situação embaralha os sistemas de identificação, pois os marcos referenciais deixam de existir.

Debord afirma que o discurso espetacular é, nisso, totalmente ilógico. Eu acrescento que por ser ilógico tornou-se ainda mais triunfante, na medida em que a lógica pode ser muito fácil, se houver algum treino com ela, mas pode ser o maior estorvo para uma mente humana, também. Um discurso ilógico ou analógico pode ser vastamente sedutor, pelo que tem de solto no tempo e no espaço e por não cobrar do espectador que pense, que extraia conclusões, que afaste outras.

Outra coisa fantástica apontada por Debord é que o discurso espetacular não tem compromissos de coerência consigo mesmo. Ele pode bem ir de um pólo a outro e trilhar o caminho inverso sem problemas, já que o espetáculo consiste em uma verdade própria e divorciada de outras, mesmo que das fáticas.

O discurso espetacular e seus expectadores necessitam-se reciprocamente. Como o autor diz na última frase do trecho citado, não se antagonizam os ensinamentos do espetáculo e a ignorância dos espectadores, eles se relacionam. O espetáculo é cretino porque o público é e este último é cretino porque o espetáculo o é.

Obviamente que essa conclusão pode ser veementemente atacada como uma reapresentação do princípio de identidade, pois que dizer-se A=A é dizer nada. Mas, não se trata propriamente de identidade e sim de relação mediada pelo discurso. O meio aproxima as partes, senão não seria o elemento de conexão da relação.

O que percebo, para tentar por a situação sob a ótica dessa teoria, é que Berlusconi não é quem está no topo da cadeia espetacular, embora seja formalmente o ocupante do posto máximo do poder estatal formal e esteja também no topo da escala social. Ou seja, é primeiro-ministro e é riquíssimo, mas de certa forma não vê o espetáculo de fora. É uma engrenagem privilegiada, mas ainda engrenagem.

O sistema espetacular é impessoal e move-se por uma dinâmica com inércia própria, que lhe é conferida por inúmeros e difusos comportamentos, que isoldamente pouco significam. A percepção dele a partir de elementos estáticos, como seja uma personagem isolada, é cair na armadilha de pensar na sua mesma lógica da dissociação. É pensar-lhe estaticamente, quando somente pode ser compreendido dinamicamente.

Não à toa, o espetáculo reage virulentamente contra quantos o percebam dinamicamente, historicamente, porque assim capta-se sua natureza. E, por outro lado, aceita toda e qualquer abordagem que se lhe faça segundo a lógica que ele mesmo propõe, porque assim podem-se dizer coisas muito agressivas, mas nenhuma precisa. O espetáculo aceita vaias e xingamentos, mas não que se queira deixar o teatro!

Então, falar em manipulação mediática é realmente pouco, até mesmo porque ela não precisa existir, assim voluntariamente, no dia-a-dia. E os espectadores são realmente ignorantes, não porque lhes faltem pacotes de conhecimentos escolares, mas por faltar-se a capacidade de relacionarem esses pacotes e de perceberem-se a si mesmos.

A mercantilização avassaladora – ainda como diz Debord – conduziu a isso, notadamente depois da primeira grande guerra européia do século XX. Conduziu ao presente contínuo, percebido na sucessão de eventos espetaculares dissociados entre si e dissociados da realidade mais próxima e, principalmente, da história.

Assim, já não sei se os italianos escolheram Berlusconi, se há, na verdade, escolhas, se querem escolher, se sabem quem são, se sabem para que serve o que aprenderam nas escolas, se sabem o que é Berlusconi, se sabem o que seria preferível a ele…

Neopentecostalismo: ideologia condutora de significativa parte da classe-média ascendente.

Lamento que essa seja a ideologia de eleição da classe-média ascendente brasileira, mas não lamento minimamente que haja mais e mais ascensão das classes médias baixas. Na verdade, esse movimento de crescimento e redistribuição de riquezas é tímido, embora melhor tímido que nulo.

Desse modelo ideológico, muito precariamente pode-se dizer que é uma variante das denominações reformadas históricas, porque seu substrato teológico é muito rarefeito e disperso e mesmo divorciado do que se tomam como suas bases: as escrituras bíblicas judáicas e do novo testamento.

As estruturas da reforma original são, sim, bibliólatras, em sentido muito restrito, até porque usam de livros escolhidos para anunciar uma reforma contra quem os escolheu. Detém-se no estudo desses livros e dão-lhes um caráter revelado, o que sugere uma contradição entre o gosto pela história das fontes e a crença na sua natureza revelada. Ademais, não se servem de textos cristãos primitivos apócrifos, aceitando a escolha feita por aqueles de quem se querem diferenciar.

A princípio, é algo que se parece inspirado na simplificação e na razão, dois problemas quando se trata de religiosidade. O cristianismo de Roma – que não vou ater-me à parte mais próxima das origens, a ortodoxia, porque não temos sua ocorrência – prendeu-se muito à razão, mas não à simplificação. Apropriou-se de Platão e de Aristóteles, o que resultou em um sistema bom e em uma religião vazia e morta.

A reforma veio a ter seu São Tomás em Kant, tão pouco lido como muito celebrado. O que sai dele é um moralismo profundamente sofístico, no que são as premissas iniciais, puras, abstratas, sabe-se lá de onde tenham vindo. Esse conjunto de idéias, que de religiosidade tem a hierarquia e a aceitação de que se decifram designios divinos, serviu bem a uma classe – ou ordem – que se insinuava no protagonismo social.

Da mesma forma, o cristianismo de Roma tinha servido bem a uma classe de libertos e soldados que reivindicavam sua presença no palco social, mil anos anteriormente.

Não quero reduzir as religiosidades a utilidades sociais, apenas destaco essa função que têm. Até porque, as funcionalidades existem a par com as crenças profundas e a sinceridade existente nessas últimas. Não são as religiosidades apenas meios de controle  e coesão social, evidentemente, mas também o são.

Tampouco quero estratificar as religiosidades em seus períodos de florescimento a partir de seus graus de sinceridade de crença e de utilitarismo social. Quero apenas diferencia-las, tanto no tempo, como no espaço. Por esses critérios, elas são diferentes, assim no que têm de religioso, como no que têm de estrutura social.

O neopentecostalismo é nitidamente um fenômeno de raízes norte-americanas. As ideologias reformadas que chegaram à América no Norte, com a colonização, eram basicamente as mesmas que havia na Europa. Lá, mutaram-se, em prazo médio, no que originou o neopentecostalismo atual.

A construção da nação norte-americana não se podia basear em muitos mitos fundadores comuns, porque a fundação era recentíssima e as diferenças regionais imensas. Ou seja, não havia discurso de história nacional a dar o sentido de coesão e a servir de argumento de controle social. Algo devia ocupar o espaço vazio.

Esta ocupação não era possível com tradições alheias, em ambiente de terra-de-ninguém e dissolução de costumes permitida pela ausência de poderes normativos efetivos. E a dissolução ameaçava a prosperidade material. Então, a base reformada foi adaptada e simplificada, para tornar-se em código de conduta e em promessa de recompensa material para quem o seguisse.

Isso – com todas as várias diferenças pontuais óbvias – foi transplantado para o Brasil e cumpre seu papel. Não significa, todavia, que outros modelos não pudessem ter sido adotados, embora evidencie o fracasso deles em se apresentarem para a tarefa. O modelo dominante, o cristianismo de Roma, parece ter sido incapaz de ocupar o espaço por elitismo.

Elitismo, aqui, deve se considerado com algum rigor e sem preconceitos. É a postura que aceita quase tudo, materialmente, ainda que aceite poucos desvios formais. Nas formas está seu código e na complexidade delas sua exclusividade. Para quem as domine, o campo é aberto e de vasta tolerância, mas para quem não as domine, abre-se a perspectiva da submissão hierárquica.

No que diz respeito às crenças religiosas propriamente ditas, o modelo romano antes dominante foi incapaz de assimilar os gnosticismos populares – muitos de origens africanas – mesmo que tenha havido muita propaganda de algum sincretismo, na verdade discretíssimo e somente aparente.

Foi incapaz porque sua racionalidade é imensa, tão grande quanto sua insinceridade religiosa. Não se encontraram lugares para tantos demônios e mensajeiros sem nome no panteão original, mesmo que esse panteão tenha sido, ele próprio, uma concessão inteligente ao paganismo, dois mil anos atrás. As corporações dificilmente conseguem repetir grandes idéias.

O modelo neopentecostal que seduziu vastamente as classes mais baixas e as médias ascendente assimilou medos, demónios, anjos, aspectos particulares da divindade e tudo o mais, despersonalizando-os e metendo-os todos em um grande esquema de recompensas, de mão dupla.

A idéia da via de mão dupla entre o postulante e o seu deus de escolha é genial. Por ela, justificam-se situações díspares. O sujeito que quer uma recompensa adota comportamentos que agradam ao deus e pede-lhe o que quer; se não conseguir, é porque pediu pouco ou não adotou os comportamentos que agradam ao deus. O que já tem aquilo desejado por todos – o rico, enfim – está previamente justificado, na mesma lógica, porque foi aquinhoado pelo deus. Ora, se foi aquinhoado, significa que cumpriu as obrigações.

Ficam todas as situações justificadas, portanto. Aquela do que cumpre as regras de um manual de condutas e quer ficar rico e aquela de quem é rico, embora não se saiba se cumpriu as tais regras mas que,  se já é, inútil discutir se cumpriu as prescrições.

Bem, o fato é que as classes médias ascendentes brasileiras querem sua oportunidade de ganhar dinheiro, de gastá-lo e de impor-se como grupo, ou seja, divulgar suas ideologias e seus valores. E essas são basicamente o ideário neopentecostal que, no plano social, é uma moralidade retributiva, repleta de prescrições de costumes que nada têm a ver com prescrições bíblicas, o que não vem ao caso e não importa.

Adotar e impor prescrições comportamentais a título de religiosidade é algo tão incoerente como qualquer racionalização de vontade de justificação  e de poder. É dizer que se seguem regras e que elas são universalmente válidas, ou seja, é afirmar a validade de regras inquestionáveis , cuja implementação não obedece a limites, porque afinal são divinas.

Mas, alterando-se um tanto o viés, chega-se a resultados desagradáveis dessa neopentecostalização do Brasil, para além das teorias. Trata-se da intolerância e da má educação cívica. A primeira é filha dos moralismos médio-classistas alçados a desígnios divinos, algo que os conservadores de classes mais altas acham desprezível e controlável, porque sempre ignoraram o poder das vontades populares e nunca se ocuparam em compreender-lhes.

A segunda é mais do mesmo, agora também justificada,  moral e religiosamente. Assim, barulhos imensos, invasões de privacidade, e invasões várias às esferas de liberdade individual vão consagrando-se e cristalizando-se como hábitos sociais válidos.

A arrogância das classes dominantes percebe-se no desdém e na crença de que não passam de movimentos aparentemente controláveis dos mais pobres. Desprezam os pobres e acham nesse desprezo razões para desprezarem a necessidade de compreensão da dinâmica social. É a gente que perde o controle, perde a compreensão e fica com raiva.

A intolerância suportada teoricamente por neopentecostalismos só viceja porque vem ao encontro de arcaicos modelos de poder social. Esses modelos já existiam e precisavam de um suporte teórico. Agora que o têm, ampliam-se.

Sobre mediocridade, formas, conteúdos e gente realmente capaz.

Um comentário d´O contemplador à postagem imediatamente abaixo. Sem edições quaisquer.

Muito oportuno e bom, tema e texto.

A propósito, o meu office ainda é um 2003 legalizado e não sei usar o powerpoint; uso somente o word para fazer alguns textos mais simples e sou um razoável usuário do EXCEL, que resolve os meus problemas com contas.

Em 1983 tive a oportunidade de conhecer pessoalmente um dos maiores pensadores práticos da hidrologia do mundo, e ídolo dos hidrólogos, o eng. grego/americano Matalas, de quem eu conhecia e aplicava (e ainda aplico) os seus modelos em meus estudos de hidrologia.

Estava junto a outros 9 colegas brasileiros em Washington DC, nos EUA, no U.S. Geological Survey, em uma sala fechada com uma longa mesa retangular e umas 15 cadeiras em torno, esperando para a chegada triunfal de Matalas, provavelmente acompanhado de um séquito de puxa-sacos, quando entra na sala, sozinho, um cara alto, magro, míope, fumando, gravata desalinhada, agitado e muito simples e simpático.

Perguntou em inglês se nós éramos os brasileiros e rapidamente entabolou uma conversa sobre os problemas que tínhamos ido estudar nos EUA (ele tinha se preparado para a conversa conosco e não enrolou ou nos fez perder o nosso tempo e também o dele).

Depois de uns minutos iniciais de conversa já solta disse, “ah, esqueci-me de me identificar, sou Matalas”.

Naquele clima de estar diante de Deus, ele nos trouxe rápido para o panteão e começamos a conversar sobre problemas de planejamento, de soluções e de métodos matemáticos, e foi aí onde ele deu um inesperado show.

Esperávamos que ele falasse em modelos matemáticos sofisticados e ele sintetizou, com uma simplicidade angelical, como estava o estado da arte para o que precisávamos (se podíamos diagnosticar o nosso caso usando um simples raios-X não havia necessidade de usar um caro e raro PET scanning ou coisa parecida), sem invocar nada além dos parâmetros estatísticos “média e desvio-padrão”.

Não usou powerpoint nem giz, fez uns rabiscos em umas folhas de papel (que coletamos e xerocamos como se fossem os pedaços das tábuas de Moisés que se quebraram) e nos passou a tranquilidade entendida pelos bons médicos “de que a clínica é soberana”, ou seja, fazendo as perguntas certas consegue-se chegar ao mais importante que é entender o problema.

Deveríamos gastar o nosso tempo pensando e tentando perceber a “verdade subjacente” e deixar para um computador fazer as contas de que necessitávamos.

Implicitamente trouxe-me a lembrança da frase de Deng Xiao Ping: “Não interessa se o gato é preto ou branco, interessa se caça rato”.

Nunca pensei em ser professor para não ter que me tornar conformista com os rituais, com o teatro e com a obrigação de ensinar os alunos somente a responder, quando ensinar a perguntar parece-me ser tão importante quanto.

Em um dos bons treinamentos formais que recebi na minha carreira profissional, um palestrante disse que nas instituições existiam CP’s, BDC’s e QSP’s, ou seja, “cabeças-pensantes”, “burros-de-carga”, e “quantidade-suficiente-para” (aquela água que se adiciona ao pó do antibiótico para não tomá-lo seco).

A maior parte das pessoas nas instituições formais de ensino médio e universitário pouco dedicado é comodamente treinada, infelizmente, para ser BDC ou QSP, e não CP (… um CP em uma turma de alunos pode ser uma ameaça a um professor medíocre).

Espinoza já denunciava o refúgio na ignorância como um dos maiores pecados das pessoas. Temo a Espinoza…

Nos meus tempos no ginásio católico no interior da Paraíba havia um coroinha que na missa do domingo, quando mudava um livro de lado conseguia se ajoelhar bem no meio do altar, com uma simetria e uma elegância ritualística bem ensaiada.

A sua parelha não era tão bem adestrada e se ajoelhava com alguma assimetria em relação ao centro do altar, atraindo um olhar crítico do padre celebrante do sacrifício.

Fico na dúvida se aos olhos de Deus e de Jesus isso tinha alguma importância…., ou seja, um coroinha assimétrico é capaz de baixar o valor do sacrifício do AGNUS DEI QUI TOLIS PECATA MUNDI?

Adianto que fiz o treinamento básico de coroinha, em latim, mas nunca fui convocado para jogar no time titular, talvez por conta de não conseguir desenvolver nem aceitar que o mundo fosse simétrico… e também por tentar traduzir e entender o texto em latim que eu estava respondendo ao padre e começar a ter dúvidas sérias se já não estava praticando falsidade ideológica fingindo acreditar no que dizia.

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