Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Desimportâncias (Page 5 of 13)

A seleção brasileira, a Rede Bobo, o povo e Ricardo Teixeira.

A seleção brasileira jogou contra a Alemanha, na Alemanha, em uma partida que valeu nada. Perdeu por 3 gols a 2, o que não é o final do mundo, principalmente tendo a Alemanha como adversária. Claro que a equipe brasileira vem jogando mal, basta lembrar o festival de mediocridade apresentado na Copa América, recentemente.

Não vi a partida de hoje, porque resolveram disputa-la no meu horário de trabalho, sem me perguntar a opinião! Esse pessoal do futebol é mesmo bastante antidemocrático, logo percebe-se.

O avanço da idade e da minha iniciação nos mistérios divinatórios têm permitido-me afirmar o que não sei, com grandes chances de acerto. Não vi a partida, mas acho que foi transmitida pela Rede Bobo, com exclusividade. Estabelecida essa premissa por adivinhação, as consequências advém naturalmente e, agora, por lógica formal comum.

Vai começar a sessão de linchamentos pessoais e destruição de personalidades. O que vai dar certo, porque o público tem anos ou décadas de instrução com o inominável da rede bobo. Todo mundo fala tudo, ninguém entende porra nenhuma, até porque não vê o jogo. Ouve o que dizem os narradores e prende-se aos detalhes. Daí, ou põe no céu, ou lincha! Enquanto isso, o mafioso-mor surfa na onda da copa de 2014.

Imagino já o imaginável, ou seja, o dia seguinte no trabalho. E, olhe que eu trabalho em uma repartição pública! Todos os lugares-comuns falados pelo narrador – inominável, sempre é bom frisa-lo – serão repetidos. Como o modelo de superficialidade imbecilizante funciona bem, eles fornecem três ou quatro aspectos de nada, o que permite ao sujeito ávido por falar que fale como se o fizesse por si.

O especialista que cada um acredita ser também poderá achar-se um especialista único e original, porque terá três ou quatro irrelevâncias a escolher para que uma delas pareça sua opinião.

Assim, acontece com tudo. A coisa mais previsível do mundo é um ambiente de trabalho ou alguma reunião na segunda-feira. Todos os falantes no ambiente estarão vomitando pedaços mal-digeridos da bobagem que mais lhes chamou atenção na revista Veja ou no programa Fantástico, da Rede Bobo, ou no futebol que passou na Bobo. Invariavelmente!

Funciona um pouco como uma novela, do ponto de vista esquemático. Na novela, os tipos sociais básicos estão presentes, quase sempre a partir de cortes maniqueístas. Então, há modelos básicos para todas as pessoas se identificarem. E, indentificando-se, o sujeito sente-se lisonjeado, pois um decalque dele está na televisão. Há mesmo tipos falsificados, que parecem ter até mais sucesso, pois acrescentam fantasia à identificação.

Na análise do futebol funciona assim. A culpa é de um jogador, ou é da bola, ou do juiz, ou de qualquer detalhe imbecil que isoladamente nada significa. Nunca é do chefe da banda…

Pobreza, pobreza, pobreza…

Vez e outra, visto umas calças velhas, camisa idem, tênis mais velho ainda, deixo os documentos na gaveta, tiro o relógio do pulso, ponho algum dinheiro no bolso e saio a andar, sempre pela manhã, cedo. Não tiro a aliança do dedo, mas talvez fosse bom, porque se ma pedirem não a conseguirei retirar com a rapidez conveniente ao ladrão, que pode então resolver leva-la com o dedo junto.

É coisa de doido, sei bem disso, gostar de andar assim meio à toa. Só não é completamente à toa, porque sempre acabo nalgum mercado, compro bananas, laranjas, saio e torno a andar. Não é a caminhada dos caminhantes desportistas, é a caminhada que me apraz, simplesmente. E ando a olhar as coisas como se ainda descobrisse nelas qualquer tracinho de desconhecido, pois é bom surpreender-se com o velho.

E olho as pessoas também, é claro. As pessoas e as coisas aqui formam retratos tristes. Feios, melhor diria, sem arrodeios maiores. Pobres sem terem sido senão pobres, sempre pobres. As ruas e calçadas sujas, repletas de buracos. Os edifícios, com raras exceções, feios, mal alinhados, sujos.

O país enriquece há oito anos, continuadamente. A distribuição das riquezas melhora, discretamente, como nunca tinha acontecido. Milhões de pessoas foram elevadas ao que se chama classe média, coisa que é bom definir: segundo o Ipea – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – é quem tem renda familiar mensal entre R$ 1.000,00 e R$ 4.000,00. Todavia, é um mar de pobreza!

Curiosamente, na fila do mercado, hoje, estava o jornal do dia com uma matéria sobre os percentuais de gente na tal classe média. Na Paraíba, 37% da população está na classe média, o que é a segunda menor proporção do país.Não significa necessariamente que este seja o segundo estado mais pobre do país, mas é quase isso.

Ora, se somarmos aos 37 outros 03% dos que se encontram mais acima, ficamos com 60% de pobres e miseráveis! A propósito destes últimos, convém dar a definição técnica, que é das poucas definições técnicas, com números, capazes de escandalizar quem pense. Não digo quem se emocione com as coisas, digo quem pense. Bem, miserável é o sujeito que tem renda mensal inferior a R$ 70,00. E há 16 milhões de miseráveis no Brasil!

Antes de pensar que a proporção de pobres nem é tão elevada, lembre-se, quem a isso se inclinar, que a renda de corte é ridiculamente baixa e que tudo neste país é caro. Alias, nem tudo é caro, pois o preço do trabalho é baixo, excepto no serviço público e nos serviços de saúde. Os restantes preços são todos elevados, principalmente dos manufaturados. São caros também os imóveis e a comida.

E há quem ache, de achar mesmo, sem disfarces, que a melhora na distribuição não é assunto sério. E há quem ache que a miserabilidade é qualquer coisa semelhante a uma opção pessoal, algum diletantismo de vagabundo que se alimenta de ar e luz.

O quadro é daqueles terminados sem verniz, quando se acrescenta à pobreza a deseducação generalizada. Essa, é a coisa mais democrática que há no Brasil, pois atravessa todas as classes sociais. Todavia, os miseráveis são cobrados por sua deseducação; são cobrados por quem é deseducado na mesma proporção, diferindo somente nos rendimentos!

Todavia, há prédios imensos e reluzentes, condomínios residenciais suburbanos no estilo do sonho norte-americano, Land Rovers e Mercedes por todos os lados. É óbvio que o dinheiro existente roda à volta das mesmas pessoas, sempre. Também é óbvio que essas pessoas vivem eterna deformação, que cercadas de pobreza e feiúra são elas pobres e feias, mesmo que viajem a Miami para comprar o chapéu daquele rato bobo.

A costureira que não tirava medidas.

Processos e mais processos, tolices e mais tolices, tudo muito tolo e presunçosamente importante e urgente. Prazos, argumentos que servem para nada, excepto para serem eles mesmos uma coisa, porque são nomes e nomes sem verbos. Representações de si mesmas a ocuparem o tempo fazem dele prisão.

Essas coisas do dia-a-dia são sempre as mesmas. O que dramatiza seus efeitos é sua pretensão à importância e nossa sucumbência a essa situação, porque são obrigações.

Que haja obrigações é algo normal. Problema é esvaziarem a cabeça ou encherem-na somente de bobagens que postulam a situação preeminente. Quase conseguem, assim, fazer esquecer as trivialidades que não se querem filosofias ou grandes obrigações.

E quase esqueço uma estória saborosa, simples e curta, que escutei outro dia desses. Estória bem nossa, daquelas em que o principal é a sagacidade de uma personagem. Estória feita sob medida para ser contada oralmente, com volteios ou com ida direta ao ponto; com alterações na entonação da voz, com repetições enfáticas. Enfim, coisa de ser falada e não escrita.

Por isso, atrevo-me a contar a estória, mas com receios. Sim, porque escrita não produz os efeitos de falada.

O caso é que antigamente, nessas terras nordestinas, não se compravam roupas feitas, mandavam-se fazer. E as fazedoras de roupas eram as costureiras, que alfaiates já eram um degrau acima em sofisticação e só faziam roupas para homens. Tanto a costureira, quanto o alfaiate, todavia, eram figuras do comum, ou seja, não eram o que hoje chama-se estilista e que atua no espaço da exclusividade.

As costureiras faziam roupas de homem e de mulher, indistintamente. A coisa toda passava por comprar-se o tecido, ter alguma idéia do resultado desejado e procurar a costureira. Então, a costureira iria tirar as medidas do cliente, anota-las e, eventualmente, dizer-lhe que comprasse mais tecido, pois aquele não dava. Depois, podiam ser necessárias novas medições e ajustes, o que implicava nova visita à costureira.

Esse era um processo meio complicado e, às vezes, demasiado custoso para uns. Sim, porque o sujeito que mandava fazer uma roupa não residia necessariamente no mesmo local da costureira; estamos em agrestes e sertões com muitas cidadezinhas pequenas e afastadas umas das outras, com transportes precários e difíceis.

Nesse ambiente, destacou-se uma costureira do Cariri Paraibano, não sei de qual cidade. Ela tinha uma habilidade muito peculiar e valiosa para quantos homens quisessem mandar fazer uma camisa, por exemplo. Ela não precisava tomar as medidas do cliente!

Chegasse alguém conhecido – dela e do cliente – e dissesse que seu fulano queria fazer uma camisa, ela simplesmente perguntava de onde era o cliente. Mas, como, perguntava o interlocutor? Sim – dizia – só preciso saber de onde o sujeito é. Só de onde é? – impressionava-se o intermediário. Sim, pelo lugar de onde é o cabra eu sei o tamanho, as medidas, tudo.

E fazia as camisas, que se ajustavam perfeitamente, apenas a partir da origem do cliente!

Quem tem pouco surpreende-se com pouco. Ou, o espelho é a arte, mas ela não é o espelho.

Aqui, há muito a ser visto

Acontece, até amanhã, o Festival de Inverno de Campina Grande. São sete dias de apresentações musicais, teatrais e de dança. Neste ano, coincidiu com a reabertura do Teatro Municipal Severino Cabral, que passou por extensa reforma e foi devolvido em excelentes condições. Falo do teatro com inegável entusiasmo, porque é um prédio muito bonito – em meio à feiúra – grande e bem equipado, com muito boa acústica.

Nessas plagas, vivemos imersos na grosseria e na indelicadeza. Não digo apenas que vivamos imersos na incultura, porque faço concessão aos que invocam – sem saberem de que se trata – o relativismo cultural.

Há quem não veja cultura elevada e baixa, mas somente diferenças que, todavia, não sabem dizer se são quantitativas ou qualitativas. Entre esses relativistas inconscientes, há deles simplesmente ávidos pela defesa do grosseiro e há deles a servirem-se da má-fé, de que dispõem à farta. Os últimos opõem popular e erudito, como se o corte fosse sócio-econômico, apenas.

A linha de corte não se encontra entre pobres e ricos. Encontra-se entre autenticidade e deformação, entre o que faz pensar e o que não faz. A prova-lo está o fato de que a feiúra é apreciada muito democraticamente, em todas as classes sociais.

De minha parte, proponho critérios distintivos, porque creio na diferença qualitativa. Percebo duas linhas de corte, uma propriamente artística e outra de postura social.

O artístico não é bom nem ruim, mas faz pensar, pouco importando se esse pensar leva a algo. Ele distingue-se do entretenimento, portanto. E, entretenimento é para pessoas aborrecidas, essencialmente aborrecidas, que precisam evadir-se e não ver, nunca, o espelho. O espelho é a arte e ela não é o espelho.

Outro ponto de dissociação encontra-se nas posturas sociais. Esse é um campo de muita dissimulação, porque há quem perceba como desejável a aparência do gosto da arte, como há quem ache bonito o gosto do aparentemente exótico e distintivo. Enfim, há o público de arte que está somente desempenhando o papel reputado socialmente refinado. Um desvio que não extingue os que gostam porque gostam.

Em geral, a aridez cultural associa-se às posturas sociais mais grosseiras e descorteses. A descortesia já não é algo perceptível por comparação, porque tornou-se em regra e a antítese dela não se vê, senão em alguns seres que devem estar simulando mansidão para obterem alguma vantagem. Assim, percebe o vulgo.

A delicadeza – para mudar de palavra – é coisa exótica que se opõe à risada rasgada com o ridículo, com a queda, com a desgraça. Opõe-se ao convívio sem barreiras e sem pudores, que se faz de abordagens e condutas agressivas, a bem de algo que se chama estar à vontade. À vontade, todas as agressões cometem-se, como todos os crimes são perdoados como se tudo estivesse em família. Não posso esquecer Ortega!

À vontade, o indivíduo que procura a confirmação de sua vulgaridade na vulgaridade generalizada do grupo encontra-a. Aqui, ele nem se justifica, ele apenas encontra-se entre iguais e julga o grupo de iguais equivalente ao todo. Mas, o todo tem uma parte diferente; pequena, mas diferente. Claro, isso é elitismo, mas de formato não econômico, o que o faz desconcertante e imprevisto.

Existe, para desespero de alguns, o mendigo aristocrata. Quem é a figura? É o sujeito livre, que não busca mais que os dois reais destinados a mais uma aguardente. Para obter os dois reais não fará piruetas nem macaquices, não contará uma estória já escutada, não dançará o ridículo que o aproximaria aos seres ridículos que dançam a mesma coisa e lhe dariam os dois reais por diversão.

A delicadeza perdeu-se, enfim. Foi-se para dar lugar à invasão bárbara, por demais previsível. Por que alguém deveria parar para ver uma dança, ou um espetáculo teatral, ou alguma música que não seja homogeneização deformante? Talvez porque se o fizesse pensasse mais em si e nos outros, ao invés de pensar só em nada julgando que pensa em sí e nos outros.

Diálogo entre Colbert e Mazarin. Para função de autoconhecimento e recurso a fontes mais sólidas.

PERSONAGENS:

Jean Baptiste Colbert > ministro de estado de Luis XIV.

(Reims, 29 de Agosto de 1619 – Paris, 06 de Setembro de 1683)

 Jules Mazarin > nascido na Itália, foi cardeal e primeiro ministro da França.

(Pescina, 14 de julho de 1602 — 9 de março de 1661)

– Colbert: Para encontrar dinheiro, há um momento em que enganar (o contribuinte) já não

é possível. Eu gostaria, Senhor Superintendente, que me explicasse como é que é

possível continuar a gastar, quando já se está endividado até ao pescoço…

– Mazarin: Se se é um simples mortal, claro está, quando se está coberto de dívidas, vai-se

parar à prisão. Mas o Estado… o Estado, esse, é diferente!!! Não se pode mandar o Estado

para a prisão. Então, ele continua a endividar-se…todos os Estados o fazem!

– Colbert: Ah, sim? O Senhor acha isso mesmo? Contudo, precisamos de dinheiro. E como

é que havemos de o obter se já criámos todos os impostos imagináveis?

– Mazarin: Criam-se outros.

– Colbert: Mas já não podemos lançar mais impostos sobre os pobres.

– Mazarin: Sim, é impossível.

– Colbert: E então…os ricos?

– Mazarin: Os ricos também não. Eles não gastariam mais. Um rico que gasta faz viver

centenas de pobres.

– Colbert: Então, como havemos de fazer?

– Mazarin: Colbert! Tu pensas como um queijo, como um penico de um doente!

Há uma quantidade enorme de gente situada entre os ricos e os pobres: os que trabalham sonhando em vir a enriquecer e temendo ficarem pobres. É a esses que devemos lançar mais impostos, cada vez mais, sempre mais! Esses, quanto mais lhes tirarmos mais eles trabalharão para compensarem o que lhes tiramos.

É um reservatório inesgotável!


Aurora, do DP: ainda existe jornalismo bom.

Jornal aos domingos pela manhã é hábito fortíssimo. De uns tempos para cá, vai ficando difícil manter o hábito, embora sempre os queiramos manter. Sim, porque ler jornal por ler, independentemente da qualidade, seria preço muito elevado.

A imprensa brasileira, em geral, é muito ruim, o que não tem a ver com a qualidade dos jornalistas, mas com a qualidade dos patrões, que inclusive dão-se à diversão de se dizerem também jornalistas. Desfaçatez, apenas.

Continuo a ler o Diário de Pernambuco, aos domingos, pois é um jornal razoável. O Jornal do Comércio, de Recife, tornou-se impossível. E uma das coisas que fazem o DP razoável é o caderno Aurora. Despretencioso e profundamente não provinciano, a segunda característica exatamente devida à primeira. Jornalismo, simplesmente, como deixa-se de fazer.

Podia ser apenas um colunismo social mal-disfarçado, ou a comum autoreferência de meia dúzia, mas não. Os jornalistas escrevem sobre alguma coisa do Recife, no formato jornalístico propriamente dito. Falam com um e outro, põem na matéria o que os escutados disseram, dão opiniões, poucas é verdade. Um pouco de humidade na aridez dominante, um alento.

O chapéu, o microfone e meu encantamento com signos anacrônicos.

Hoje, utilizam-se microfones diferentes. Nesses atuais, o microfone propriamente dito está, bem pequenino, na pontinha de uma longa e fina haste recurvada, que sai de uma base retangular. É uma forma, convenhamos, inovadora e sem a obviedade que podem ter os antigos.

Em audiências judiciais no rito informal dos juizados especiais, as falas são gravadas: do juiz, dos advogado e das partes e testemunhas. Todos os participantes têm, diante de si, um desses microfones fininhos e compridos, que parecem um cabide para pôr um casaco ou um chapéu.

Hoje, enfrentei vinte audiências de juizado, seguidas, e todas referiam-se a pedidos de benefícios previdenciários. Na nossa região, esses pedidos quase todos são de pessoas que se dizem agricultores pobres, que lavram a terra por si próprios, em regime de economia familiar de subsistência. Claro que muita gente mente e mente, desenfreadamente, e que outros tantos falam verdades, como lhes vêm as coisas à memória.

O chato da coisa são as representações, ou seja, partes e testemunhas que querem interpretar o papel que existe, mas que elas não viveram. Há, enfim, o que representa a si mesmo e o que representa o que não é. O segundo tipo é terrível; o primeiro é o que se espera e revela figuras sociais interessantes. Uma arqueologia social é possível, já que posturas sinceras são o que constitui uma base do comportamento.

O hábito perdido é o que faz o hábito estranho. O estranho vai tornando-se o comum. O estranho, todavia, ainda está enraizado, porque em relação ao novo constitui uma base de comparação.

Bem, o caso é que hoje entrou uma testemunha na sala de audiências, um senhor velho, magro, de vestes simples, ereto, de chapéu. A funcionária da justiça que o conduzia apontou a cadeira onde devia sentar-se, em frente ao juiz e ao microfone curvo, fino e longo.

O senhor sentou-se, ajeitou-se na cadeira, tirou o chapéu e o pôs no microfone. Óbvio! Aquilo era um pendurador de chapéu. O juiz, homem que não nasceu ontem e percebeu a espontaneidade da testemunha, disse-lhe que aquilo era para falar e, não para pendurar o chapéu. Disse afavelmente, como quem compreendeu perfeitamente o ocorrido, como quem conhece o anacrônico, ou seja, sabe que uma pessoa retira o chapéu quando entra em ambiente fechado, e o pendura no móvel que tem aparência de pendurador de chapéu.

Faço aqui nada mais que a homenagem ao juiz que percebeu o óbvio, coisa difícil…

Bistecas ao mel e limão, com purê de maças.

As bistecas de porco têm uma grande vantagem: por serem um corte saboroso, não precisam serem temperadas com antecedência. Então, toma-se uma assadeira média, põe-se três bistecas meio grandes e joga-se um pouco de sal e de pimenta-do-reino por cima. Viram-se as bistecas e mais um salzinho e pimenta, apenas para ficarem dos dois lados.

Depois, rega-se com pouco azeite, mel e o sumo de um limão grande, basta. Envolve-se a assadeira em papel aluminizado e põe-se no forno, com fogo bem baixo, por cinquenta minutos.

Tomam-se seis maças pequenas, retiram-se as cascas, cortam-se em pedaços e põe-se para cozinhas com meio copo d´água e uma colher de chá de assúcar, ou seja, com pouco assúcar. Cozinham-se os pedaços de maçã por pouco tempo, mexendo sempre. Cinco minutinhos bastam para as maçãs, que são passadas, então, no liquidificador: eis o purê.

Faz-se um arrozinho branco, trivial. Nesta altura, o purê vai descansar por uns vinte minutos, para esfriar. É o tempo em que o porco está pronto, suculento, banhando em um caldo nem espeso, nem ralo, de gordura dele, mel, limão, misturados.

O purê mistura-se idealmente ao arroz, já nos pratos. A carne não estará doce por conta do mel, mas um pouco agridoce, por conta do sumo do limão e com sal na medida certa.

Isso degusta-se acompanhado de um chileno qualquer de R$ 20,00 a garrafa, do vale central, de uvas merlot, bem fresco.

 

Édipo, Apolo de Delfos e tudo graças a deus.

Há um deus por toda parte, em todas as ações, desde as mais simples; há em tanto e em tudo que nem parece único como dizem dele por aí. Está nos cumprimentos e nas fórmulas habituais do discurso: graças a deus.

Está nos carros, em frases na maioria sem sentido e algumas realmente hilárias: foi deus que me deu; propriedade de deus; deus é fiel; se deus me deu quem tirará – esta, ateísmo puro.

Você conversa com um sujeito e prepara-se para escutar um rosário de dádivas divinas. Tudo será se deus quiser. De forma tal que deve levar a um conflito de deuses imenso.

Deus dará prendas a todos e respostas a tudo! Curioso, lembrava-me de Édipo.

Preocupado com a peste que se abatia em Tebas, Édipo fica sabendo que devia-se a uma conspurcação.

Manda perguntar a Apolo de Delfos o que causou a conspurcação: ele diz que foi um assassinato. Pergunta mais uma vez, de quem: ele diz, de Laio.

A pergunta leva a outra: quem assassinou? O deus não responde mais…

Édipo resigna-se e diz que não se pode forçar a verdade dos deuses.

A lição de Édipo perdeu-se.

Fernando Henrique Cardoso, maconhófilo.

Agora eu percebo as coisas. Fernando Henrique Cardoso, o Sábio, falava sempre em código, por Sábio, naturalmente. Deixava caírem gotas de sua sapiência, a serem recolhidas somente por iniciados que participassem do mundo da sabedoria e, portanto, pudessem decodificar a mensagem.

Fernando Henrique é a figura que escreveu dois ou três livros postulando coisas difíceis de entender, talvez porque não dissesse nada, afinal.

Passados anos, faz-se presidente da república e clama pelo esquecimento de tudo quanto escrevera, talvez em estalo de arrogância, a supor que muitos o haviam lido.

Presidente por oito anos, Fernando Henrique alinhou-se à política de war on drugs, aquele embuste norte-americano que serve às companhias de armas e de serviços mercenários. Além de ter destruído vastas plantações de milho e batatas, na Bolívia, no Peru e na Colômbia.

Agora, nove anos sem ser presidente, Fernando Henrique surge como um grande maconhófilo, defensor da liberação ampla e irrestrita dos entorpecentes ilícitos!

Não vou mentir, estranhei e inclinei-me a crer que era pura e simples impostura. Mas, nada que um pensamento mais calmo não afastasse.

Percebi que duas coisas se ligavam, na obra e trajetória do Sábio. Ligavam-se por fios tênues e sutis, como são as coisas sábias.

Quando Fernando Henrique dizia que esquecessem seus escritos, já estava aí o Fernando Henrique maconhófilo! O grande homem já nos dava o enigma e a chave dele!

Fumem maconha, relaxem e esqueçam o que escrevi, era a mensagem que só hoje, tardiamente, percebo…

« Older posts Newer posts »