Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Autor: Andrei Barros Correia (Page 41 of 126)

O sonho do celta, de Mario Vargas Llosa.

É tolice dizer que não há escritores sobre que o comentador tem receio de falar. É complicado falar-se do muito bem-feito, porque quase tudo que se fale fica abaixo do falado e pode soar demasiado óbvio, ainda. Claro que se trata aqui de uma sugestão de leitura, apenas, mas ainda assim Mario Vargas Llosa recomenda cautela e contenção.

O primeiro que li foi A cidade e os cachorros, um livro muito bem escrito, que me levou ao prazer imenso da releitura, mais de dez anos depois da primeira. As releituras são especialíssimas, porque poucos livros merecem-nas e outros, que as merecem, ensejam o temor do reencontro, pois trarão percepções diversas das primeiras, que se lhes somam, como novas camadas de tinta.

Li Pantaleão e as visitadoras, um retrato sem retoques da realidade a impor-se de par com a hipocrisia, como é na vida. E sem ares de acusação, sem um milímetro de inverossimilhança. Irônico, mordaz, uma daquelas obras em que não se poria nem mais uma vírgula, nem se retiraria um só artigo.

Em seguida, um monumento literário: A guerra do fim do mundo. Canudos, aquele episódio de religiosidade popular mística, esfomeada, milenarista, acontecido nos sertões brasileiros, na segunda metade do século XIX, reprimido brutalmente pelo governo central até a total aniquilação, é romanceado por Llosa com erudição e precisão formal extraordinários. Ele percebeu completamente o que contava, sem meter-se na história, para que certamente ajudou o não ser brasileiro.

Eis que Olívia me presenteia com o livro mais recente de Llosa: O sonho do celta. Mais um livro a compor a obra literária do escritor que quase não varia o bom nível. As obras dele permitem dizer, como elogio, que se parece bastante consigo mesmo. Vargas Llosa cuida, sempre, das únicas coisas importantes que há: o tempo e as pessoas metidas nele. O estilo é fácil, não há acrobacias formais, a língua é direta, sem ser seca.

O celta do título é Roger Casement, irlandês nascido no Ulster e no aparente protestantismo. Servidor da coroa britânica, como diplomata, teve duas atuações destacadas no relato das brutalidades que se cometiam na extração de borracha, primeiro no Congo, depois no Putumayo. Seus relatórios sobre essas situações tornaram-no famoso, alçaram-no à nobreza. Claro, seus relatórios ajudaram os interesses da coroa, que investia na borracha, no sudeste asiático!

A personagem de Casement é repleta de ambiguidades, o que a torna interessantíssima. Claro a personagem humana é feita por boas doses de ambiguidades, sempre, mas há casos de contrastes mais vincados e de grandes divórcios dentro da mesma pessoa. Casement acredita-se protestante, mas é, ou melhor se diz, torna-se católico. Torna-se pouco a pouco, sem saber que sua mãe o batizara às escondidas, quando muito pequeno, pois o pai era protestante e não podia sabê-lo.

Serve à coroa britânica, que faz dele Sir Roger, e torna-se, aos poucos, um ferrenho independentista irlandês. Essa viragem segue uma trajetória de conversão, leva-o de uma visão e trabalho burocráticos para a ação religiosa, fanática e revolucionária. Tenta, é verdade, guardar alguma coerência e desliga-se do serviço consular, alegando motivos de saúde, o que era sumamente verdadeiro.

Integra febrilmente os movimentos nacionais irlandeses; viaja aos EUA para entrevistar-se com irlandeses radicados lá e coletar ajuda para a causa. Julga que a oportunidade apresentada pela primeira grande guerra não pode ser desperdiçada. Procura os alemães, forte na premissa de que os inimigos dos nossos inimigos são nossos amigos. Não ignora as consequências possíveis desse ato que, para os britânicos, não seria qualquer coisa além de alta traição.

Sensatamente, defende que o Levante de 1916, na semana santa, somente teria êxito se ocorresse ao mesmo tempo que um ataque da Alemanha à inglaterra, porque isso enfraqueceria as forças britânicas. Do ponto de vista estritamente lógico e estratégico, estava coberto de razão. Insta os alemães a fazerem o ataque, até ser levado a perceber, pelas evasivas, primeiro, e direta e secamente, depois, que a Irlanda, para a Alemanha em guerra, significava nada.

Na aventura da tentativa de desembarque de vinte mil fuzis alemães na irlanda, é capturado, preso, julgado e sentenciado à morte na forca, por traição. Lamente profundamente que tenham insistido no Levante, que resultou um massacre dos irlandeses e lamenta ainda mais não ter tido a ocasião de estar lá e morrer em combate. Pede clemência ao conselho de ministro e aguarda o desfecho na prisão.

Estrevista-se regularmente com o Capelão da prisão, o padre Carrey, que sabe de seu batismo e afirma que seu retorno não é mais que o descobrimento de um pertencimento de sempre.  Casement é afinal enforcado – esse método que sempre me pareceu a janela aberta à observação da vileza dos ingleses – por um carrasco que escreve memórias, já velho, antes de suicidar-se. Este carrasco anota que nunca vira homem ir para a morte com tanta dignidade.

Casement, de certa forma, além das ambiguidades, é um poço de ingenuidade. Daquela ingenuidade feita de razão que ainda não se tornou poesia ou mística. Nos finais, ele percebe que seus colegas irlandeses de movimento tinham uma visão de martírio, que sabiam, afinal, que não se lutava para ganhar, porque não era possível. Místicos fervorosos, eles eram talvez mais racionais que o racional a flertar com o místico.

Ingenuidade também na incapacidade de perceber que era monitorado pela inteligência inglesa e que era difamado escandalosamente nos media. Casement era homossexual. É ocioso dizer, por evidente, que essa homossexualidade vinha carregada de culpa e de sombras, em uma figura religiosa, inicialmente protestante e depois católico. E que a revelação dos seus diários íntimos causou imenso escândalo.

O caso dos diários – os black diaries – é controverso ainda hoje. O governo britânico manteve-os sigilosos até há pouco e há quem defenda sua inautenticidade e outros o contrário. A inautenticidade é bastante plausível, pois falsificar diários seria o mínimo a esperar-se da inteligência britância. Eles relatam encontros carnais, furtivos e mediante pagamentos, relatados de forma crua e direta, como que por alguém que se comprazesse com a própria eroticidade de um relato escandaloso.

Vargas Llosa lida genialmente com o material dos diários, que analisou. Em um pequeno posfácio, muito útil e curto, explica que acredita na autenticidade dos diários, mas que acha-lhes mais uma coleção de aventuras fantasiadas que propriamente vividas. Mais o relato ficcional do que gostava de ter feito, que do realizado, um jogo de autoerotismo escrito de si para si.

O livro estrutura-se em três partes: Congo; Putumayo e Irlanda. A narrativa vai e vem no tempo, mas sem qualquer confusão, sem as sombras que resultam das idas e vindas de alguns escritores. Não há um mar de psicologismo em que vagueiem à deriva datas variadas e desconexas. Há uma narrativa bem explicada, em que vários períodos da vida de Casement são contados, exatamente no ritmo necessário à compreensão da evolução da ação.

Fica evidente que os pretos foram explorados selvagemmente pelos belgas e outros europeus de Leopoldo II; que os índios da amazonia peruana foram brutalmente torturados e dizimados pela Peruvian Amazonian Company, de Júlio Arana e seus sócios ingleses; que nada obstante, nem os pretos, nem os índios eram santos, eram explorados, torturados, escravizados e exterminados.

Fica evidente que Casement dedicou-se integralmente à confecção desses relatórios e ficou escandalizado com as brutalidade que viu por vinte e tantos anos. Que essa visão direta da colonização, do domínio, levou-o a perceber a Irlanda em posição de colonizada pela inglaterra, algo de que somente se escaparia com resistência tenaz, antes que os esforços ingleses de matar todos os trações culturais próprios da Irlanda tivesse sucesso. E fica evidente que ele tornou-se um fanático e viveu coerentemente com isso e aceitou o resultado disso.

O livro – e aqui sinto-me a dizer uma platitude – não faz a história romanceada da vida e tempo de um herói, nem de um santo, nem de um desviado, nem de um bandido. Isso é para irlandeses e ingleses, conforme seus lados e partes fazerem.

Vinte e um anos depois do Levante massacrado pelos ingleses, a Irlanda tornou-se independente. O martírio teria sido precisamente o que previram os seus líderes, uma ferida sempre aberta, a sangrar nos órfão e viúvas e a reforçar a identidade irlandesa, o que permitiu que não arrefecesse a vontade de independência. Casement teve seus restos transladados para a Irlanda, décadas depois da execução, depois de passar longos anos em sepultura sem lápide, na prisão. Claro, para a Inglaterra foi um traidor e foi mesmo.

Sugiro a todos os apreciadores de literatura a leitura desse livro. E de quantos Vargas Llosa lhes chegarem às mãos.

 

Alumbramento. Luz, verdes variados, cinzas, marrons.

É difícil contar um alumbramento, porque ele não é somente histórico, ou abstrato, ou concreto. Não é um transe, nem uma experiência estética, nem extática. Engraçado, tudo que é difícil começa por negativas e continua a ser facílimo de saber-se o que é, embora difícil de contar, para quem não é poeta. E não sou.

É necessário prosear, portanto. Costumava, há vinte anos atrás, mais ou menos, viajar de carro com um tio; umas viagens de 180 quilômetros. De uma cidade no litoral do nordeste brasileiro para o oeste, em linha quase reta. Do húmido e plano ao ageste e semeado de serras baixas, e de volta ao litoral. No mesmo dia e sentado ao lado do condutor.

Quase toda viagem é bonita, mas essas eram mais bonitas na volta. A progressão do litoral ao agreste não é, contra o que o senso comum possa indicar, a mais contrastante. O inverso é verdadeiro, embora possa parecer sem sentido, porque as duas etapas são as mesmas e contrárias evoluções. Mesmas porque contrárias.

Do verde mais aquoso ao menos, do mais plano ao menos, do mais vermelho ao mais marrom e cinzento é a progressão do mais vital ao menos. É, poeticamente falando, a mais impressionante progressão, mas não é para mim. Sim, não sou poeta, digo de novo.

Do oeste para o leste, descendo-se suavemente de algumas centenas de metros até nenhum, a vitalidade da terra cresce, ela deixa-se perceber terra sobre terras e não pedras esfareladas sobre pedra dura. O verde torna-se, a pouco e pouco, mais água, o vento torna-se pegajoso, o azul tem mais brancos entremeados. Essa transição costuma ser mais impressionante.

A ida e a volta, distingui-as porque precisava escrever; hoje sei que são as mesmas coisas. Embora continue achando que o rumo de cima a baixo, de oeste a leste, seja o mais poético; e não sou poeta.

Quero, mas é aproximar-me de um jeito de falar da água do verde e do marrom e cinza dos morros e, ainda mais, da hora. As plantas têm tonalidades diferentes, conforme os sítios onde se enraizam, claro! Mas, por que é claro, se são todas plantas? Ora, as plantas são diferentes, embora sejam todas plantas. Sei disso. Umas são mais verdes, outras menos verdes.

Umas são mais água e outras menos água, é o que vejo. Tenho mania de água. As tonalidades são para mim variações d´água; os tamanhos das folhas e das copas são variações d´água. O ar varia conforme a água. O chão, terra e pedras, esse não varia conforme a água, para minha visão, embora só dependam dela, recebendo-a ou deixando-a correr.

A luz, ela deve ser a responsável por essa sinestesia pouca, poucamente contada em prosa insuficiente. A luz é aquela das quatro e meia da tarde, não há outra mais bonita.

Engraçado, a mais bonita precede por uma horinha a mais triste que há, a dos morcegos a voarem em torno às mangueiras do jesuítas. Quando os morcegos começam a arrodear as mangueiras da Boa Vista, naquele voo de sobe e desce, falta meia hora para o toque da Ave Maria Sertaneja, nos alto-falantes na Universidade Católica: Quando batem as seis horas, De joelhos contra o chão, O sertanejo chora, A sua oração...

Às quatro e meia, longe da Boa Vista, eu vi, cheios de claridade, os topos das serras, cinzentos. As plantas, já a meia aquosidade, a terra marron, e sombras. Elas devem ser parte fundamental da minha impressão.

Às quatro e meia, o sol é claríssimo, mas oblíquo já. Aqui, ele põe-se cedo, pouco importa se é verão ou inverno, que estamos muito perto da linha do Equador. Ele não cai de cima a baixo, como chuva grande sem vento, o que faz ao meio dia. Ele clarifica tudo, meio por trás, mas ainda meio por cima. Ele brilha as coisas e faz sombras. Ele faz contrastes.

Esse sol, essa hora, essa viagem de volta, esse verde só água, esse chão não só cores, fizeram muitos alumbramentos. De que eu tentava falar, com a máxima precisão possível, para um condutor que escutava e que intervinha, às vezes, com o deleite e a condescendência que tinha com as coisas não dissimuladas.

Hoje, fomos almoçar, Olívia e eu, um bacalhau, em João Pessoa. Há, lá, um fulano de Guimarães que faz bacalhaus muito bons e cobra caro por eles e mais caro ainda por alvarinhos que nos teriam custado 3,00 euros do outro lado do Atlântico. Pouco importam o caro dele e os 130 quilômetros de ida e outros de volta. Estavam ótimos, o bacalhau com polvo e o verde barato caro.

Saímos, do litoral ao agreste, às três ou três e meia, sei lá? Do meio do caminho em diante, eram quatro e meia da tarde, a hora do sol brilhante que não agride e ilumina de cima e de lado. O danado do sol das quatro e meia era filtrado por aquelas nuvens pesadas que não dão chuva; passava por grandes buracos da rede de nuvens mal traçadas. Cilindros de sol desciam pelos buracos das nuvens, e quadradinhos de sol desciam meio de lado sobre tudo.

A concentração com que dirijo o carro aumentou, assim como aumentaram minhas olhadelas rapidíssimas da paisagem. O relevo pareceu-me fantástico, serras baixas conhecidas olhadas com o mesmo olhar e com outro resultado. São as mesmas de sempre. Estavam lindas, elas as serras e as pequenas árvores e as lagoas que seguem a estrada. Lindas.

Tinham, além do brilho e das sombras, profundidade. Mais longe, eram mais escuras, perto um tanto mais claras, todas cada vez mais cinzentas. Outras horas não dão percepção de profundidade. As lagoas que se formam ao largo da estrada, eram de pedra. As ondulações da água, pequeninas ondas constantes, eram de pedra, de tão constantes de luz, que era a única coisa a qualificar-lhes.

Bebi a paisagem, gota a gota, alumbrado.

A indignação, os protestos, o anti-conformismo difuso do mocinho satisfeito, a que visam?

Leio no Público que planeiam-se manifestações de protestos em sessenta e sete países, para o dia 15 de outubro próximo. Que o lema dos tais protestos é unidos por uma mudança global e que serão pacíficos e que se referem ao 15 – M, que se dizia o início de uma revolução. Tudo bem, mas vamos olhar as coisas mais detidamente.

A mesma matéria do Público – escrita de forma confusa, diga-se – refere que a coisa toda começou na Espanha e que repercutiu em outros países, notadamente europeus. Na Alemanha, a organização do movimento de protesto segue o lema a democracia não está à venda. Na Espanha, seu berço, o movimento quer lembrar aos políticos que o 15 – M continua vivo. Tudo será combinado por meio de redes sociais, a dependerem da internet.

Reclamar é preciso e saber contra quê também é preciso.

O bem-estar social que há na Europa e, em menor escala, nos EUA, foi conquistado com muita reclamação e com a cumplicidade das circunstâncias históricas, que recomendavam descompressão e criação de mercados consumidores. E foi também possível porque o restante do mundo pôs-se a trabalhar para torna-lo viável.

É meio dramático dizer que houve mais recebimento que conquista, nos últimos sessenta anos, mas é verdade. Para agradar uma parte do mundo, havia que deixar caírem mais migalhas das mesas fartas. E havia também a necessidade de contrapor-se às possíveis seduções do tsarismo místico que se instalara na Rússia ganhadora da segunda grande guerra.

Não saiu caro para os donos do dinheiro permitirem aos europeus em geral – em momentos diferentes – viverem razoavelmente ou mesmo bem. Dar-lhes condições de conviverem em pouco espaço sem a necessidade de acertarem suas discórdias violentamente e dar-lhes a aparência da condução de seus processos políticos foi opção inteligentíssima.

As massas européias e norte-americanas acreditaram que tinham situações estáveis, que viviam as condições a elas destinadas divinamente e imutáveis, portanto. Ao ganharem mais que conquistarem, acederam à pior das possibilidades, a de gritar e gritar, sem saber mesmo o que era gritado.

É curioso que tenham gritado contra os colonialismos, que permitiram suas vidas relativamente boas. Que tenham gritado contra os políticos, que eleitos por elas vendiam-se e vendem-se a interesses contra elas. Que tenham gritado contra as bombas nucleares, enquanto elas eram semeadas em seu solo. E que tenham gritado e gritado mais e as coisas continuassem a andar da mesma forma.

Mais curioso ainda, é que gritantes não mataram ninguém. Gritantes, não pensaram. Gritantes, cometeram uma e outra pequena deliquência a ser ajustada pelas regras formais. Gritantes, reclamaram de muita injustiça ao redor do mundo, mas essas injustiças eram o desvio de riquezas para seus senhores, riquezas que eles usavam para dar-lhes o alimento do grito.

Aos gritos, receberam seu pequeno suborno Mas, é ótimo que os subornados a preço baixo gritem; é melhor que ficarem calados. Escravos calados, ou estão em transe e não trabalham, ou conspiram contra os senhores.

Então, a Europa jovem vai mobilizar-se em protestos contra a mercantilização da democracia – como se tivesse sido de outra forma – contra a situação global – aqui, mistura de ignorância com hipocrisia – contra os impostos que se destinam a pagar aos bancos? E, que tal se destruíssem os tais bancos?

Que tal se se propusessem a assumir os lugares do tais políticos e deixassem de ser escravos dos bancos? Têm coragem? Ou se trata de mais um pedidozinho de suborno?

Os plurais foram-se da língua falada no Brasil.

Há tempos a abolição dos plurais na língua falada pelos brasileiros chama minha atenção. Realmente, agrada-me bastante pensar em coisas de pouca ou nenhuma utilidade prática; assim, penso mais livremente, certo de não estar a promover coisa alguma, a propor nada.

A princípio – além de um falar feio – parecia-me a renúncia a uma possibilidade riquíssima da língua: a flexão em número. Renúncia como outras tantas, que implicam perda de precisão, algo como usar uma mesma e única chave inglesa, ainda que se disponha de todo o jogo de chaves, cada uma com sua abertura específica.

Se assim fosse, provavelmente iríamos no caminho de outras supressões, como, por exemplo, a de gênero. E nada indica isso, antes, ao contrário, a língua falada no Brasil é bastante marcada por flexões de gênero. A tal ponto que parecem mais vincos semânticos que flexões de classes de palavras, de nomes e de qualificativos de nomes.

Por outro lado, nunca me pareceu que fosse algo como um uso coloquial, ou seja, como se usam termos diferentes em locais diferentes, para chamar a mesma coisa. Mas, tem, no fundo, a mesma desimportância das diferenças de usos de termos locais. Pode ter alguma relação com os usos locais, em termos de pronúncia, da mesma forma que algumas vogais suprimem-se na língua falada.

Na enorme maioria das vezes, o falante brasileiro não flexiona o substantivo em número, mas flexiona os artigos definido e indefinido. Ou seja, há plurais, indicados pelos artigos. É comum ouvir-se as casa e os carro. Está claro que se fala de mais de uma casa e de um carro, embora os substantivos estejam no singular. Mas, também está claro que o erro é meramente normativo, formal, e, não lógico.

De certa forma, o falar coloquial inseriu uma declinação, a depender somente dos artigos. Diferentemente acontece com a ausência dos plurais nas pessoas verbais. Essa ausência, além de parecer-me ainda mais feia, suscita mais pensamento.

Eles foi é construção um pouco mais difícil de perceber como ajuste perfeitamente lógico, embora simplesmente infrator de alguma regrinha formal. Uma maneira de assemelhar as explicações seria dizer que as ações tomam-se como substantivos. Mas, isso é falso, pois as pessoas não igualam, no falar, nomes e ações. Elas usam a mesma lógica que supõe a flexão somente nos artigos para supo-la apenas nos pronomes.

Somos simplificadores ao extremo e mal educados, formalmente. Nenhum problema com isso, todavia. Nem mesmo sob perspectiva gramatical, uma vez que a cada pessoa – sujeito, terceiro, singular ou plural – só pode corresponder uma ação. Eu é, tu é, ele é, nós é, vós é, eles é, são formas logicamente possíveis. Inclusive, em algumas línguas, as flexões não têm diferenças sonoras.

Problemas surgem se quisermos falar sem pronomes e artigos, o que é possível, como pode ser percebido neste período. E, vistas por este ângulo, as supressões de plurais são, sim, um empobrecimento. São uma renúncia a possibilidades mais amplas, embora não comprometam a comunicação, nem agridam a lógica da língua.

Limite.

Em certo sentido, não há Estados nacionais, é preciso dizê-lo. É preciso ainda tornar esta assertiva mais precisa, mais próxima do significado. É de tempo que se trata e de quase nada mais.

É, pois, de um momento que se trata, do momento em que a pressão é tão grande que promove a fusão; do momento imediatamente após àquele em que a abertura da válvula seria ainda eficaz; do momento imediatamente anterior à abertura da válvula, agora já eficaz para deixar aparecer outra coisa.

O Estado nacional permite atingirem-se dois objetivos: primeiro, a dominação de outros estados, a disfarçar-se a dominação interna; segundo, dar aparência de legitimidade a modelos políticos, sejam quais forem, ou seja, fazê-los parecerem-se necessários.

Desde 1814 manda o dinheiro. Não que tenha tido papel secundário em outras épocas, mas não era capaz de reivindicar a primeira posição inconteste e, mais constante. Outras forças compunham com o dinheiro o exercício do poder e com ele revezavam-se nos períodos de proeminência de umas e outras.

Sempre que me ponho a pensar mais detidamente sobre algo, seja a sério ou não, acabo por lembrar-me de Ortega y Gasset. Resisto, às vezes, a ir busca-lo na estante, para ter a certeza das palavras exatas de que me lembrei. Resisto porque já fiz isso demasiadas vezes e porque já não tenho muita paciência para citar e transcrever.

Isso de mandar ou não o dinheiro está na Rebelião. Ortega é a antítese dos enigmas a serem decifrados; ele é claro e direto, pois, diferentemente de um estilo cultivado por muitos, hoje, que se escondem por trás de falsos enigmas e segredinhos de jogos de palavras.Este autor agride muitos leitores porque é honesto ao oferecer ao leitor todas as premissas dos seus raciocínios. Ora, a desonestidade e a superficialidade não perdoam a coragem dos que pensaram…

Ele diz com todas as palavras que nem sempre o dinheiro mandou sozinho e refere o óbvio exemplo dos judeus na idade média, que tinham o dinheiro, mas eram a escória da sociedade. Mais adiante, não lembro mais se no mesmo ensaio, ele diz que mandam as montras, as vitrines. Di-lo por volta de 1926. Explica muito simplesmente que o dinheiro nem sempre mandou porque não havia tantas coisas a serem compradas por meio dele.

Reúnam-se o dinheiro, seus detentores, as montras e o tempo. Antes, porém, vejamos que as montras são o modelo da exposição, ou seja, da venda ostensiva de tudo que passa a existir abundantemente para ser comprado; modelo que implica a massiva propaganda mediática, algo de que a montra em si é precursora.

Quando passa a haver montras cheias de produtos, o dinheiro passa a ser um imenso significante daquilo exposto. E as idéias – logo percebe-se – também podem ser postas nas montras, e também podem ser vendidas, compradas, desejadas, tornadas obsoletas, podem ser idéias de inverno, de verão!

O aumento vertiginoso da produção manufatureira, desde o início do século XIX, encontrou vastos campos de amortecimento dos seus inevitáveis efeitos concentradores. Encontrou-os porque este aumento foi ele mesmo concentrado em alguns Estados nacionais, o que permitiu transferir a compressão para a periferia do mundo e dar alguma capacidade para os trabalhadores do centro buscarem a sedução das montras.

Acontece que o processo é mesmo triunfante e, assim sendo, espalhou-se na periferia. Não poderia ser diferentemente, pois mercados são necessários, sempre mais e mais. Essa expansão leva os traços delineadores do Estado nacional a se tornarem mais tênues, mais enevoados, menos discerníveis. Mais nítida torna-se a diferença entre o 01% e os restantes 99%, mais e mais…

O dinheiro manda e mandam seus detentores, agora eles mesmos menos receosos de se irem expor nas montras. Elas ganharam para eles a aceitação ampla e difusa que é possível nos modelos uniformizadores triunfantes. O turbilhão da vida em função das montras, essa valsa incessante, permite que tudo se diga, se faça e nada se perceba, enfim.

Seria profundamente tolo, nesse ponto, supor que o dinheiro ocupou um espaço que foi de alguma moralidade que lhe fazia de rival. Ora, o dinheiro ocupou a posição que lhe cabia, independentemente de qualquer moralidade, porque passou a haver coisas que ele pode significar em termos de trocas. Lembremos, para nos afastarmos da superficialidade sempre insinuante, que não houve confronto entre dinheiro e moralidade, no Mercador de Veneza, mas entre duas moralidades diferentes.

O dinheiro gosta que alguma moralidade seja apresentada como sua antítese, porque dela se apropria muito facilmente, hoje. Não que as compre, assim pura e simplesmente, mas porque sabe que não são coisas antagônicas e, portanto, que uma não ameaça a outra! São coisas diversas, coexistiram longamente, não se comunicam e não se anulam reciprocamente.

O dinheiro só teme a desconcentração, ou seja, o momento do não-dinheiro. Como isso é praticamente inconcebível, é natural que nada tema, portanto. Realmente, essa coragem tem razões de ser, porque é relativamente fácil manter-se o modelo do poder do dinheiro concentrado, bastando para tanto uma e outra descompressão.

Duas dificuldades apresentam-se, todavia: a primeira é saber os momentos das descompressões e suas extensões; a segunda é acreditar que elas são necessárias!

É interessantíssimo notar que uma sociedade em que as pessoas tenham casas para morarem e algum dinheirinho para um café são imensamente propensas ao conservadorismo e à cegueira. Ou seja, uma sociedade em tais condições oferece sua servidão voluntária, com um e outro espasmo, aqui e acolá, que não oferecem maiores riscos.

Essa sociedade deixou de ver qualquer outra coisa além do que lhes revelam as montras e está apta a saber da imensa concentração como sabe de algum fato consumado e enfim impossível de ser diferentemente.

Todavia, se o limite é passado, as coisas assumem ares de imprevisibilidade. É notável – por quaisquer aspectos que se lhes observem –  que haja manifestações como essas do End the FED e Occupy Wall Street, nos EUA. São notáveis, inclusive, comparadas à insatisfação política dos movimentos espanhóis das praças, que se voltaram contra nada, porque voltar-se contra a política é visar um não-alvo.

Norte-americanos, as pessoas singularmente mais dispostas à passividade interna, reúnem-se contra o dinheiro! Não é contra guerras ou contra a política – que isso não lhes afeta – é contra o dinheiro concentrado excessivamente, que lhes tira as casas e os empregos. Esses foram os mais eloquentes alertas da chegada do ponto de descompressão e é bom que os mandantes do mundo percebam-no.

Sobre concentração e limite, lembro-me agora de uma estorinha engraçada, que não se conta realmente a propósito de problemas sociais e econômicos, mas é bastante reveladora.

Enfim, a estorinha diz que um inglês, muito introspectivo e dedicado às ciências empíricas, percebeu que a necessidade do seu cavalo de comer era algo muito limitador, além de custoso, é claro. E percebeu que muitas coisas são feitas por condicionamento, mais que por necessidade propriamente. Então, resolveu ensinar seu cavalo a não precisar comer. As lições começaram e andavam bem mas, quando o bicho estava quase aprendendo, morreu!

O coitado do inglês ficou sem cavalo, o que certamente custou-lhe mais que um cavalo que comia, até porque, na época, podia mandar a conta da ração para a Índia e para a África. Sucumbiu à ciência toda-poderosa, que lhe apontou a inexistência de limites e a possibilidade de ter cavalo e não ter custos.

Pois os cavalos em que o 01% dos donos do dinheiro andam montados precisam comer alguma coisa, até para poder suportar-lhes o peso. E precisam dormir, os infelizes, de preferência em algum estábulo de que não sejam expulsos no meio da noite.

A única solução. Retirado do texto The Dynamics of Doom: Why the Eurozone Fix Will Fail, por Charles Hugh Smith.

The only real solution to the Eurozone end-game is massive debt forgiveness and the resulting destruction of “too big to fail” banks, and a return to national currencies, which will enable structural imbalances to be resolved via currency devaluations. This will of course destabilize the German export economy; but that is inevitable.

“Extend and pretend” is an endgame, not a fix.

 

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