Em certo sentido, não há Estados nacionais, é preciso dizê-lo. É preciso ainda tornar esta assertiva mais precisa, mais próxima do significado. É de tempo que se trata e de quase nada mais.

É, pois, de um momento que se trata, do momento em que a pressão é tão grande que promove a fusão; do momento imediatamente após àquele em que a abertura da válvula seria ainda eficaz; do momento imediatamente anterior à abertura da válvula, agora já eficaz para deixar aparecer outra coisa.

O Estado nacional permite atingirem-se dois objetivos: primeiro, a dominação de outros estados, a disfarçar-se a dominação interna; segundo, dar aparência de legitimidade a modelos políticos, sejam quais forem, ou seja, fazê-los parecerem-se necessários.

Desde 1814 manda o dinheiro. Não que tenha tido papel secundário em outras épocas, mas não era capaz de reivindicar a primeira posição inconteste e, mais constante. Outras forças compunham com o dinheiro o exercício do poder e com ele revezavam-se nos períodos de proeminência de umas e outras.

Sempre que me ponho a pensar mais detidamente sobre algo, seja a sério ou não, acabo por lembrar-me de Ortega y Gasset. Resisto, às vezes, a ir busca-lo na estante, para ter a certeza das palavras exatas de que me lembrei. Resisto porque já fiz isso demasiadas vezes e porque já não tenho muita paciência para citar e transcrever.

Isso de mandar ou não o dinheiro está na Rebelião. Ortega é a antítese dos enigmas a serem decifrados; ele é claro e direto, pois, diferentemente de um estilo cultivado por muitos, hoje, que se escondem por trás de falsos enigmas e segredinhos de jogos de palavras.Este autor agride muitos leitores porque é honesto ao oferecer ao leitor todas as premissas dos seus raciocínios. Ora, a desonestidade e a superficialidade não perdoam a coragem dos que pensaram…

Ele diz com todas as palavras que nem sempre o dinheiro mandou sozinho e refere o óbvio exemplo dos judeus na idade média, que tinham o dinheiro, mas eram a escória da sociedade. Mais adiante, não lembro mais se no mesmo ensaio, ele diz que mandam as montras, as vitrines. Di-lo por volta de 1926. Explica muito simplesmente que o dinheiro nem sempre mandou porque não havia tantas coisas a serem compradas por meio dele.

Reúnam-se o dinheiro, seus detentores, as montras e o tempo. Antes, porém, vejamos que as montras são o modelo da exposição, ou seja, da venda ostensiva de tudo que passa a existir abundantemente para ser comprado; modelo que implica a massiva propaganda mediática, algo de que a montra em si é precursora.

Quando passa a haver montras cheias de produtos, o dinheiro passa a ser um imenso significante daquilo exposto. E as idéias – logo percebe-se – também podem ser postas nas montras, e também podem ser vendidas, compradas, desejadas, tornadas obsoletas, podem ser idéias de inverno, de verão!

O aumento vertiginoso da produção manufatureira, desde o início do século XIX, encontrou vastos campos de amortecimento dos seus inevitáveis efeitos concentradores. Encontrou-os porque este aumento foi ele mesmo concentrado em alguns Estados nacionais, o que permitiu transferir a compressão para a periferia do mundo e dar alguma capacidade para os trabalhadores do centro buscarem a sedução das montras.

Acontece que o processo é mesmo triunfante e, assim sendo, espalhou-se na periferia. Não poderia ser diferentemente, pois mercados são necessários, sempre mais e mais. Essa expansão leva os traços delineadores do Estado nacional a se tornarem mais tênues, mais enevoados, menos discerníveis. Mais nítida torna-se a diferença entre o 01% e os restantes 99%, mais e mais…

O dinheiro manda e mandam seus detentores, agora eles mesmos menos receosos de se irem expor nas montras. Elas ganharam para eles a aceitação ampla e difusa que é possível nos modelos uniformizadores triunfantes. O turbilhão da vida em função das montras, essa valsa incessante, permite que tudo se diga, se faça e nada se perceba, enfim.

Seria profundamente tolo, nesse ponto, supor que o dinheiro ocupou um espaço que foi de alguma moralidade que lhe fazia de rival. Ora, o dinheiro ocupou a posição que lhe cabia, independentemente de qualquer moralidade, porque passou a haver coisas que ele pode significar em termos de trocas. Lembremos, para nos afastarmos da superficialidade sempre insinuante, que não houve confronto entre dinheiro e moralidade, no Mercador de Veneza, mas entre duas moralidades diferentes.

O dinheiro gosta que alguma moralidade seja apresentada como sua antítese, porque dela se apropria muito facilmente, hoje. Não que as compre, assim pura e simplesmente, mas porque sabe que não são coisas antagônicas e, portanto, que uma não ameaça a outra! São coisas diversas, coexistiram longamente, não se comunicam e não se anulam reciprocamente.

O dinheiro só teme a desconcentração, ou seja, o momento do não-dinheiro. Como isso é praticamente inconcebível, é natural que nada tema, portanto. Realmente, essa coragem tem razões de ser, porque é relativamente fácil manter-se o modelo do poder do dinheiro concentrado, bastando para tanto uma e outra descompressão.

Duas dificuldades apresentam-se, todavia: a primeira é saber os momentos das descompressões e suas extensões; a segunda é acreditar que elas são necessárias!

É interessantíssimo notar que uma sociedade em que as pessoas tenham casas para morarem e algum dinheirinho para um café são imensamente propensas ao conservadorismo e à cegueira. Ou seja, uma sociedade em tais condições oferece sua servidão voluntária, com um e outro espasmo, aqui e acolá, que não oferecem maiores riscos.

Essa sociedade deixou de ver qualquer outra coisa além do que lhes revelam as montras e está apta a saber da imensa concentração como sabe de algum fato consumado e enfim impossível de ser diferentemente.

Todavia, se o limite é passado, as coisas assumem ares de imprevisibilidade. É notável – por quaisquer aspectos que se lhes observem –  que haja manifestações como essas do End the FED e Occupy Wall Street, nos EUA. São notáveis, inclusive, comparadas à insatisfação política dos movimentos espanhóis das praças, que se voltaram contra nada, porque voltar-se contra a política é visar um não-alvo.

Norte-americanos, as pessoas singularmente mais dispostas à passividade interna, reúnem-se contra o dinheiro! Não é contra guerras ou contra a política – que isso não lhes afeta – é contra o dinheiro concentrado excessivamente, que lhes tira as casas e os empregos. Esses foram os mais eloquentes alertas da chegada do ponto de descompressão e é bom que os mandantes do mundo percebam-no.

Sobre concentração e limite, lembro-me agora de uma estorinha engraçada, que não se conta realmente a propósito de problemas sociais e econômicos, mas é bastante reveladora.

Enfim, a estorinha diz que um inglês, muito introspectivo e dedicado às ciências empíricas, percebeu que a necessidade do seu cavalo de comer era algo muito limitador, além de custoso, é claro. E percebeu que muitas coisas são feitas por condicionamento, mais que por necessidade propriamente. Então, resolveu ensinar seu cavalo a não precisar comer. As lições começaram e andavam bem mas, quando o bicho estava quase aprendendo, morreu!

O coitado do inglês ficou sem cavalo, o que certamente custou-lhe mais que um cavalo que comia, até porque, na época, podia mandar a conta da ração para a Índia e para a África. Sucumbiu à ciência toda-poderosa, que lhe apontou a inexistência de limites e a possibilidade de ter cavalo e não ter custos.

Pois os cavalos em que o 01% dos donos do dinheiro andam montados precisam comer alguma coisa, até para poder suportar-lhes o peso. E precisam dormir, os infelizes, de preferência em algum estábulo de que não sejam expulsos no meio da noite.