Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Alumbramento. Luz, verdes variados, cinzas, marrons.

É difícil contar um alumbramento, porque ele não é somente histórico, ou abstrato, ou concreto. Não é um transe, nem uma experiência estética, nem extática. Engraçado, tudo que é difícil começa por negativas e continua a ser facílimo de saber-se o que é, embora difícil de contar, para quem não é poeta. E não sou.

É necessário prosear, portanto. Costumava, há vinte anos atrás, mais ou menos, viajar de carro com um tio; umas viagens de 180 quilômetros. De uma cidade no litoral do nordeste brasileiro para o oeste, em linha quase reta. Do húmido e plano ao ageste e semeado de serras baixas, e de volta ao litoral. No mesmo dia e sentado ao lado do condutor.

Quase toda viagem é bonita, mas essas eram mais bonitas na volta. A progressão do litoral ao agreste não é, contra o que o senso comum possa indicar, a mais contrastante. O inverso é verdadeiro, embora possa parecer sem sentido, porque as duas etapas são as mesmas e contrárias evoluções. Mesmas porque contrárias.

Do verde mais aquoso ao menos, do mais plano ao menos, do mais vermelho ao mais marrom e cinzento é a progressão do mais vital ao menos. É, poeticamente falando, a mais impressionante progressão, mas não é para mim. Sim, não sou poeta, digo de novo.

Do oeste para o leste, descendo-se suavemente de algumas centenas de metros até nenhum, a vitalidade da terra cresce, ela deixa-se perceber terra sobre terras e não pedras esfareladas sobre pedra dura. O verde torna-se, a pouco e pouco, mais água, o vento torna-se pegajoso, o azul tem mais brancos entremeados. Essa transição costuma ser mais impressionante.

A ida e a volta, distingui-as porque precisava escrever; hoje sei que são as mesmas coisas. Embora continue achando que o rumo de cima a baixo, de oeste a leste, seja o mais poético; e não sou poeta.

Quero, mas é aproximar-me de um jeito de falar da água do verde e do marrom e cinza dos morros e, ainda mais, da hora. As plantas têm tonalidades diferentes, conforme os sítios onde se enraizam, claro! Mas, por que é claro, se são todas plantas? Ora, as plantas são diferentes, embora sejam todas plantas. Sei disso. Umas são mais verdes, outras menos verdes.

Umas são mais água e outras menos água, é o que vejo. Tenho mania de água. As tonalidades são para mim variações d´água; os tamanhos das folhas e das copas são variações d´água. O ar varia conforme a água. O chão, terra e pedras, esse não varia conforme a água, para minha visão, embora só dependam dela, recebendo-a ou deixando-a correr.

A luz, ela deve ser a responsável por essa sinestesia pouca, poucamente contada em prosa insuficiente. A luz é aquela das quatro e meia da tarde, não há outra mais bonita.

Engraçado, a mais bonita precede por uma horinha a mais triste que há, a dos morcegos a voarem em torno às mangueiras do jesuítas. Quando os morcegos começam a arrodear as mangueiras da Boa Vista, naquele voo de sobe e desce, falta meia hora para o toque da Ave Maria Sertaneja, nos alto-falantes na Universidade Católica: Quando batem as seis horas, De joelhos contra o chão, O sertanejo chora, A sua oração...

Às quatro e meia, longe da Boa Vista, eu vi, cheios de claridade, os topos das serras, cinzentos. As plantas, já a meia aquosidade, a terra marron, e sombras. Elas devem ser parte fundamental da minha impressão.

Às quatro e meia, o sol é claríssimo, mas oblíquo já. Aqui, ele põe-se cedo, pouco importa se é verão ou inverno, que estamos muito perto da linha do Equador. Ele não cai de cima a baixo, como chuva grande sem vento, o que faz ao meio dia. Ele clarifica tudo, meio por trás, mas ainda meio por cima. Ele brilha as coisas e faz sombras. Ele faz contrastes.

Esse sol, essa hora, essa viagem de volta, esse verde só água, esse chão não só cores, fizeram muitos alumbramentos. De que eu tentava falar, com a máxima precisão possível, para um condutor que escutava e que intervinha, às vezes, com o deleite e a condescendência que tinha com as coisas não dissimuladas.

Hoje, fomos almoçar, Olívia e eu, um bacalhau, em João Pessoa. Há, lá, um fulano de Guimarães que faz bacalhaus muito bons e cobra caro por eles e mais caro ainda por alvarinhos que nos teriam custado 3,00 euros do outro lado do Atlântico. Pouco importam o caro dele e os 130 quilômetros de ida e outros de volta. Estavam ótimos, o bacalhau com polvo e o verde barato caro.

Saímos, do litoral ao agreste, às três ou três e meia, sei lá? Do meio do caminho em diante, eram quatro e meia da tarde, a hora do sol brilhante que não agride e ilumina de cima e de lado. O danado do sol das quatro e meia era filtrado por aquelas nuvens pesadas que não dão chuva; passava por grandes buracos da rede de nuvens mal traçadas. Cilindros de sol desciam pelos buracos das nuvens, e quadradinhos de sol desciam meio de lado sobre tudo.

A concentração com que dirijo o carro aumentou, assim como aumentaram minhas olhadelas rapidíssimas da paisagem. O relevo pareceu-me fantástico, serras baixas conhecidas olhadas com o mesmo olhar e com outro resultado. São as mesmas de sempre. Estavam lindas, elas as serras e as pequenas árvores e as lagoas que seguem a estrada. Lindas.

Tinham, além do brilho e das sombras, profundidade. Mais longe, eram mais escuras, perto um tanto mais claras, todas cada vez mais cinzentas. Outras horas não dão percepção de profundidade. As lagoas que se formam ao largo da estrada, eram de pedra. As ondulações da água, pequeninas ondas constantes, eram de pedra, de tão constantes de luz, que era a única coisa a qualificar-lhes.

Bebi a paisagem, gota a gota, alumbrado.

1 Comment

  1. marcelocb13

    Muito bom.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *