Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Autor: Andrei Barros Correia (Page 1 of 126)

A recompensa da tolice.

Recentemente, em Salvador da Bahia, um grupo de quatro pessoas jovens foi a um restaurante aparentemente sofisticado, para almoçar. Consta das notícias sobre o banal acontecimento que os convivas pediram vinho branco.

O vinho branco em questão, duas garrafas pedidas sucessivamente, foi um nobre produto da Adega Cartuxa, da Fundação Eugénio de Almeida, sediada no Alentejo.

Duas garrafas de Pêra Manca branco, pedidas banalmente…

Os convivas pediram a conta e ficaram, aparentemente, muito surpresos com o preço de cada garrafa, que foi de 1.650 reais, que eles disserem ter visto e entendido como sendo de 165 reais. Ou seja, um engano de um zero. É certo ir a restaurantes caros com a alma leve e desatenta para zeros.

Esta parte da surpresa e indignação com a conta foi filmada e lançada na plataforma de compartilhamento TikTok. Não vi o tal vídeo, somente li uma notícia sobre o acontecido.

A hipótese do engano, com a leitura errada do preço, é muito plausível, dado que se tornou elogiável ser desatento, superficial e despreocupado com o que quer que seja. O sujeito olha a carta e diz ao garçom: traz um desse.

O engano é muito mais plausível que a encenação planejada desde o início. Os convivas evidentemente não tinham qualquer idéia do que é uma Pêra Manca. Se tivessem, saberiam que custa caro.

A partir desta constatação, é tentador dizer que se tratava de quatro tolos superficiais desfrutando de suas superficialidades. E não deixa de ser isso precisamente, mas há mais coisas.

Se ainda vivêssemos por régua mais cartesiana, um episódio destes, em que as pessoas pedem coisas que não conhecem, seria mais um banal daqueles em que a ignorância gera o prejuízo financeiro.

Porém, dois amigos lembraram-me algo. Esse prejuízo deve ter sido indenizado pela plataforma TikTok, tamanho o número de visualizações que esta banalidade gerou. E, de fato, é bem provável que tenham sido de alguma forma recompensados pela tolice.

Aí está a insinuação do novo. Que as massas sempre cobram um direito à irresponsabilidade, ficou bem descrito estabelecido teoricamente desde o grande livro de Ortega y Gasset, na década de 1920 do século passado.

Nunca será ocioso esclarecer que massa, aqui, não é algo que se defina por classe social. Antes, é um tipo humano, uma forma de estar no mundo.

Cobram direitos sem obrigações correspondentes, acham que a abundancia material vem do nada, que as posições sociais são eternamente estáveis, sentem-se seguras, enfim. Veem piada na guerra, quando afinal conseguem vê-la aproximar-se, mesmo que ela se anunciasse aos gritos há anos.

Mas, o risco da tolice não era coberto por este estado mental. Esse risco ainda havia e meio como jogo. A tolice era um pouco como a vigarice. Se o embuste desse certo, ótimo, mas se desse errado que se suportassem consequências.

Não que tolice ou vigarice fossem desestimulados, que nunca foram. A tolice é um meio de controle social eficiente e a vigarice uma grande liberação de energia humana. Mas funcionavam num modelo causal mais ou menos previsível e não ensejavam recompensas quando vinham à tona.

Recompensar a tolice é tática genial na engenharia social de massas totalmente incapazes de pensamento crítico, autônomo e histórico e de ponderar riscos e a necessidade de esforços. Isto insere-se na lógica de cassino, ou seja, tudo pode vir a dar certo, a depender a sorte e da sagacidade do jogador.

Sagacidade é o termo certo, a afastar esforço e estudo. Ou seja, com sorte e a conjunção astral adequada, a tolice pode gerar recompensas.

A questão é que tipo de sociedade pode ser gerada quando estas crenças instalam-se…

Lógica de Cassino.

É difícil identificar aspectos realmente particulares de alguma sociedade, nação, lugar ou época. O mais frequente, quando se tenta identificar tais particularidades ou características marcantes, é serem repetidos lugares-comuns que a grande narrativa cultiva.

Como exemplo dessa repetição acrítica de lugares-comuns, diz-se muito comumente da brasilidade que é caracterizada fortemente pela preguiça, simpatia, alegria e outras qualidades folclóricas. Isso é sumamente falso. O que há em toda parte e em todas as culturas não pode ser característica particular da brasilidade.

O exemplo do parágrafo acima é de repetição de um lugar-comum moralizante e estigmatizante. As características que seriam particulares são universais, mas poucos se deterão a pensar nisto, tamanha é a propensão a repetir sem pensar.

O Brasil é terra fértil para essas coisas. A ideologia dominante é o cristianismo reformado de seitas novas. Assim sendo, tudo que for culpa pessoal, culpa coletiva, culpa étnica e cultural e moralismo raso prosperará.

Se há qualquer coisa que seja particular da brasilidade, eu diria que é o barulho e a tolerância com ele. É nossa forma de ser bárbaros. Cada cultura tem a sua, afinal.

Mas, esta época tem algo particular, no que se refere ao espaço que se pode dizer culturalmente ocidental. O que é característico deste espaço, presentemente, relativamente à forma de pensar e ver as coisas, é a lógica do cassino, da aposta, do jogo. A lógica do jogo tornou-se a régua de medir tudo. Foi elevada até a modelo analítico.

O hipercapitalismo triunfou, ainda que este triunfo deva ser uma fase breve a anteceder o colapso sistêmico. O hipercapitalismo não conhece noções de valor adicionado por trabalho. Logo, nele, tudo tem sentido e nada tem sentido.

O hipercapitalismo implicou o hiperconsumismo que, inicialmente, era funcional à reprodução do modelo. Ocorre que além de mecanismo de reprodução, o hiperconsumismo passou a ensejar uma forma de espoliação talvez mais perversa que a material.

Além de ser um fator nitidamente neurotizante, pela criação exponencial de frustrações, ele leva à espoliação cultural. O hiperconsumismo corrói as bases culturais tradicionais e cria a pobreza totalmente desenraizada, destituída de história, de tradições, condenada ao presente contínuo da aspiração a consumir o inútil ou brevemente obseleto.

O novo pobre não é apenas destituído de haveres materiais, ele é destituído de cultura. Isso o impede de perceber interesses e disputas de classes. Essa figura não tem um lugar social, não comunga de um patrimônio cultural com outros na mesma situação.

O pobre atemporal é aquele impedido de qualquer consciência de classe. Toda sua percepção é presente e estática. O modelo pequeno-burguês foi assimilado e o novo pobre não se percebe pobre exceto por lhe faltarem coisas por alguma razão mágica ou por falta de esforço seu.

Ele perdeu a dimensão trágica da pobreza. Isso, convém dizê-lo, foi muito bem percebido pelo maldito Pier Paolo Pasolini.

Na fase hipercapitalista, o que antes se chamava jogar ou apostar chama-se investir. Essa perversão semântica deveria ser reveladora, caso houvesse muita gente a pensar com suas próprias cabeças. Essa perversão não é apenas semântica; ela é uma perversão que guia as ações concretas das pessoas.

O mundo passa a ser percebido a partir da lógica de cassino misturada com moralismo de seita reformista recente. É algo monstruoso e a contradição evidente não é a maior das monstruosidades.

A maior monstruosidade é a hipocrisia do monstro.

O monstro hipercapitalista precisará do Estado para conter ou eliminar as massas famélicas que ele produziu, mas falará mal do Estado. O monstro hipercapitalista precisará eliminar todas as liberdades que algumas lutas produziram, mas falará em direitos humanos.

O monstro hipercapitalista precisará de emergências sucessivas. Ele testou a disposição para obediência das massas e percebeu que é seguro oprimi-las a bem de um suposto bem coletivo pintado com fina camada de pseudo-ciência.

A chantagem coletiva é seu meio de tentar o controle por narrativa. A oferta de pseudo vantagens é o convite para a servidão voluntária que se entrega ao controle tecnológico de espectro total.

Neste ambiente, em que impera o diversionismo de falsas pautas ou de pautas irrelevantes, todos jogam como se assim se fossem salvar. O jogo é a sedução da produção de moeda sem produção de valor. Isto deveria bastar para evidenciar que não é possível ser a lógica de base de alguma sociedade.

E, de maneira até bastante coerente, a lógica do cassino tornou-se base teórica para as mais diversas análises. Ou seja, o nada é o suporte intelectual de várias análises.

O Pesadelo de Kissinger.

Este texto foi inicialmente publicado em novembro de 2018. Hoje, está acontecendo o que se disse então há três anos e alguns meses. O consórcio anglo-saxão descumpriu os acordos feitos após o colapso da União Soviética e avançou a OTAN para as fronteiras da Rússia. Aniquilou a Ucrânia como Estado e patrocinou grupos neonazistas que realizaram um massacre no leste, tendo como alvos populações etnicamente russas.

A Rússia reagiu de maneira previsível, para defender seus interesses e sua segurança. A esta reação correspondeu a imposição de sanções econômicas à Rússia, bem como o furto de reservas russas mantidas em bancos ocidentais. Isto também foi previsível.

Previsível também será a acelerada desdolarização em escala mundial, bem como o colapso econômico da Europa, que depende da Rússia nos campos energético e alimentar.

Como tudo isto era, realmente, previsível, é o caso de se pensar numa implosão programada do sistema até então vigente e numa guerra a devastar novamente a Europa. A elite anglo-saxã é arrogante a ponto de crer-se invulnerável e conduzirá à liquidação de sua própria hegemonia. O mundo será dividido.

A conformação geopolítica mundial ainda vigente – embora em vias de esgotamento – deve-se muito às idéias e ações de Henry Kissinger, um judeu bávaro inteligente. Richard Nixon percebeu esta inteligência e o teve sempre ao seu lado. Outros presidentes estadunidenses posteriores contaram com seus conselhos.

Kissinger percebeu algo que não é tão simples, sobretudo considerando-se os níveis intelectuais médios e a propensão a pensar ideologicamente enviesado ou fazer puro wishful thinking.

Ele percebeu que a China, inevitavelmente, seria grande novamente e que isto era apenas questão de tempo. As potências com mais de dois mil anos de história podem sofrer declínios ou serem brutalmente exploradas por alguns períodos, mas reerguem-se.

O domínio global dos EUA ampara-se no dólar como moeda de reserva e de troca internacional e na sua capacidade bélica. Este modelo emergiu do pós segunda grande guerra e foi renovado no início da década de 1970, sob inspiração de Kissinger.

Quase todas as transações comerciais internacionais são fechadas em dólares norte-americanos e mediante o sistema SWIFT de clearance interbancário. Isso significa que todos os que transacionam precisam comprar dólares para fechar suas operações e assim o dólar tem demanda garantida, o que permite aos EUA simplesmente fabricá-los.

O petrodólar faz parte da renovação que se fez no início da década de 1970. Acordos celebrados em 1973 determinaram que todas as transações a envolverem petróleo seriam necessariamente liquidadas em dólares norte-americanos. A moeda, que perdera conversibilidade em ouro, passou a ter outro lastro forte e garantia de demanda constante.

Acontece que a aristocracia estadunidense aspira ao domínio mundial hegemônico e não disfarça este desejo. Não importa aqui que o faça amparada em discurso religioso meio primário, não cuido das justificativas para o destino manifesto, de tão tolo que isto é.

Para o domínio total, nos princípios da década de 1970, era necessário evitar a aproximação entre China e Rússia. E isto Kissinger conseguiu e ainda conseguiu mais. Fez a China comprar notas promissórias dos EUA em troca de manufaturados que permitiram conter pressões inflacionárias.

Isto funcionaria bem até certo ponto, se outros posteriores ajustes fossem feitos. Todavia, parece ter havido escassez de Kissingeres recentemente. A fúria hegemônica, cada vez mais religiosa, impeliu os EUA a uma beligerância típica, que anuncia as fases de declínio.

E finalmente, depois de aberta uma guerra comercial insana, eis que a China percebeu a necessidade de abandonar o dólar como meio de troca em todas as suas transações e como moeda de reserva. Claro que não é algo simples, nem que se faça do dia para a noite, mas está em curso.

Contudo, o mais extraordinário foi ter conduzido a que se formasse uma aliança estratégica entre China e Rússia, o que, a toda evidência, é o ponto de travagem da aspiração hegemônica dos EUA.

Quando todos são palhaços, ninguém é ridículo.

Depois da guerra de 1939 a 1945, as classes medianas europeias experimentaram uma rápida prosperidade, que foi até meados da década de 1970. Neste período, Deus morreu sua mais recente morte, no ocidente. Esta percepção, colhi-a de um amigo inteligente, a quem devo os créditos, embora não o deva identificar.

Não é extravagante dizer que o niilismo esteve forte a partir dos anos de 1950 e que isto foi bem mostrado no cinema italiano, um cinema que deveria ser mencionado até sem o adjetivo que indica origem. E não apenas no chamado neo-realismo, mas também nas deliciosas comédias.

Há vinte e tantos anos tive um problema que me impediu praticamente de caminhar por quase um mês. Havia, onde vivia, uma boa locadora de filmes e devo ter visto todos os italianos que havia nela. Hoje, vez por outra, vejo-os novamente e percebo algo interessante.

Em muitos realizadores há um efeito que decorre de uma direção política. Não se trata de algo que implique filmes bons ou ruins, por si só. Trata-se de formas de pintar os personagens.

É notável que em realizadores engajados politicamente, como Monicelli, Rossellini, Ponti, De Sica, as personagens dos ricos são ridículas. São ridículas porque são palhaços enquanto as personagens dos pobres não são. O contraste as torna ridículas.

Aprecio muito Fellini e Antonioni e percebo um efeito comum a ambos, que decorre de formas de pintura das personagens diferentes. Nestes dois realizadores, as personagens dos pobres e as dos ricos não são ridículas.

Em Fellini, todos são palhaços, tanto as pobres, quanto as ricas. Se todos são palhaços, ninguém é ridículo. Em Antonioni, ninguém é palhaço e, assim, ninguém é ridículo por efeito de contraste.

Marcello, o jornalista da Doce Vida, é tão palhaço quanto os ricos da festa na suntuosa e antiga Villa. Os fotógrafos de celebridades são palhaços, Emma, esposa de Marcello, é palhaça, assim como Madalena. São todos palhaços e por isso não são ridículos, tanto a plebe, quanto a aristocracia. Fellini produz a imagem dramática, mas não necessariamente ridícula.

Antonioni não usa personagens palhaças e não gera o efeito do ridículo por contraste. Os ricos de Antonioni são tal e qual os ricos são e os pobres idem e os que ascenderam são pessoas que ascenderam e pronto. Suas posições e extrações sociais estão muito claras, mas não sofrem a investida do ridículo.

Fellini é um poeta triste, acho eu. Falo da obra, não da personalidade do realizador, de que não tenho quaisquer condições de falar. A última cena da Doce Vida, com o sorriso cândido da menina a mirar Marcello, é muito dramática.

Antonioni é um cronista, se for válida analogia com literatura. Se há muito do que se chamou psicologismo nos seus filmes dos anos de 1960, é porque havia muito isso na época. Ou seja, havia o mergulho das classes médias e dos ascendentes no niilismo, na incomunicabilidade. Se há muito jazz nos seus filmes desta época, é porque havia muito jazz por toda parte naqueles anos.

Da Mediocracia ao Nada

A religião que dita a verdade estabeleceu que todo pensamento autônomo é conspiracionismo.

Por outro lado, conspiracionismo é anátema e, assim, enseja execração e banimento.

Estes dois mandamentos, seguidos à risca, significam que a acusação de conspiracionismo foi elevada à gravidade que tem a de anti-semitismo.

A verdade da nova religião forma-se por consenso de especialistas e confirmação da imprensa corporativa. A este consenso de opiniões chama-se ciência.

Esta religião diabólica não admite a objeção de que se baseia em consenso de opiniões. Esta fé pretende-se baseada em investigações e modelos infalíveis. É a verdade pura e indiscutível, portanto.

Os sacerdotes agem por meio da chantagem do coletivo, a mais vil que se pode conceber. Tudo que pedem dos fiéis é em nome do bem comum que eles estabeleceram qual é.

Nisto assemelha-se à colonização cultural feita pelo ocidente por meio dos supostos valores universais, que não são universais, mas ocidentais.

O rebanho comporta-se adequadamente, conforme o esperado pelos sacerdotes. O rebanho está, há muito, condicionado pela lógica do espetáculo. Foi treinado para nada compreender.

O rebanho foi ensinado que o grande despertar será por meio das pautas de costumes e ambiental. Por meio destas pautas, o rebanho operará sua própria aniquilação, contudo.

A sociedade que a nova religião deseja não comporta a maior parte do rebanho, logo a maior parte do rebanho deve perecer desejando o perecimento.

Misticismo refundador.

Os grupos de pessoas que comandam o mundo têm uma racionalidade que deve ser percebida a partir de um conceito ampliado, que não exclua, como se fossem coisas antagônicas e incompatíveis, inclinações místicas e religiosas.

Os misticismos e as religiosidades são formas de racionalidade, eis que se exprimem mediante linguagem, ainda que nem sempre verbalizada. Tudo aquilo que se exprima mediante linguagem ou constitua uma linguagem provem de alguma racionalização, como é óbvio.

O que pode haver é modelos lógicos diferentes por trás de cada forma de racionalização, o que não infirma o que foi dito precedentemente. E, na medida em que discursos baseados em modelos lógicos diferentes podem interagir e construir um novo discurso, percebe-se que nem mesmo um paradoxo resultará necessariamente.

Pois bem, alguns misticismos estão entre os móveis das pessoas que comandam o mundo. Estas são, basicamente, os detentores dos capitais financeiro e dos setores de tecnologia e de comunicações e seus intermediários agentes nas corporações estatais militares e de inteligência e segurança.

Os que comandam o mundo herdeiro da tradição judaico cristã romana são imbuídos do misticismo do destino manifesto e da cruzada para converter ou exterminar os infiéis. Aspiram ao domínio absoluto de todo o mundo, economicamente e culturalmente. Há uma vertente deles que aspira ao controle de espectro total do mundo mediante o extermínio físico dos infiéis, mais que da sua escravização. Estes últimos cultivam o misticismo ecológico neomalthusiano.

Pode-se dizer que outras grandes civilizações têm misticismos entre seus grandes motivos e isto é verdadeiro. Todavia, estas outras nunca manifestaram o desejo, nem afirmaram terem a missão de controlar todo o resto, além de os converter culturalmente às suas formas.

A China tem o misticismo do Império do Meio, mas nunca visou a ser mais que o espaço geográfico chinês – exceto por algumas querelas territoriais que envolvem, de qualquer forma, o grande espaço chinês tradicional. A China, mesmo agora que é a maior economia do mundo, por PPP, não quer converter ninguém nem fazer de ninguém culturalmente chinês.

Não quererá achinesar ninguém, não quererá impor seus valores como os melhores que há. Talvez a enorme história que têm os leve a não querer isso por mero desprezo, talvez sejam gente superior mesmo e respeitem as diferenças e queiram somente fazer negócios.

A Rússia e alguns países cristãos ortodoxos que usam alfabetos grego ou cirílico inspiram-se muito em certo misticismo do pan-eslavismo. Mas, isto funciona num âmbito mais ou menos delimitado e muito bem contido geograficamente por outros países que recusam essa matriz cultural. O pan-eslavismo nunca se propôs a derramar-se para qualquer outro espaço que não fosse já eslavizado.

Estes misticismos – se assim se lhes podemos chamar propriamente – chinês e pan-eslavo não têm características imperiais no sentido de expandirem geograficamente um espaço pre-existente, nem de mudarem os padrões culturais e religiosos de outros povos. Mesmo quando a China teve poder de o fazer, não o fez. E agora que volta a ter, não dá sinais de querer tornar o mundo uma grande e única China.

A classe dominante da civilização de matriz judaica cristã romana aspira ao domínio de amplo espectro, com a imposição irrestrita de seus valores e padrões culturais como superiores, além do domínio econômico de todo o restante.

A divisão interna neste grupo dominante ocidental – ainda é a melhor palavra – limita-se a que um dos subgrupos cultiva um misticismo refundador e aspira à quase extinção da população mundial.

Hoje, a China e parte do Sudeste Asiático vivem quatro epidemias virais. A pneumonia humana por Coronavírus, a gripe suína africana, a gripe suína de H1N1 e a gripe aviária de H5N1. Estas epidemias causam imensos danos e podem causar danos ainda muito mais graves, eis que o contágio cresce geometricamente.

O despovoamento e a perda de segurança alimentar – nomeadamente de proteína animal – são fatores de destruição para o espaço asiático, a despeito de quanto creiam em contrário os neomalthusianos sonhadores com mortes em massa. A economia entraria em colapso, na medida em que as pessoas enterradas são as que antes produziam e consumiam e que os custos dos enterros não cessariam de aumentar.

Isso interessaria à elite ocidental e, por isso, é plausível que isto seja uma guerra biológica, embora eu ache improvável. Improvável porque nem todos os componentes da elite ocidental são absolutamente estúpidos a ponto de crerem na possibilidade de escaparem do contágio mediante barreiras sanitárias ou medicamentos.

A China saberá, cedo ou tarde, se isto deve-se a acidente ou se foi um ato de guerra biológica. Faz um esforço hercúleo de contenção do contágio, a um custo altíssimo, o que é coerente com estarem a pensar que não foi um ato de guerra e, sim, um acidente.

Todavia, se chegarem à conclusão de que foi um ato de guerra biológica, para os destruir economicamente, reagirão. E a reação mais simples e eficaz seria simplesmente suspender as ações de contenções e deixar o contágio espalhar-se pelo mundo, permitindo que os geniais agressores experimentassem as benesses da sua idéia.

Mas, como disse acima, acho mais provável que tenha sido um acidente a desencadear esta epidemia.

Todavia, a hipótese da guerra biológica é plausível, porque entre os que mandam no mundo há os inspirados pelo misticismo refundador e esta gente está mais ou menos discretamente infiltrada em muitos órgãos estatais militares e de inteligência, bem como em entidades não governamentais com os mais belos propósitos declarados.

É interessante notar a existência, entre os hiper ricos, nomeadamente os ligados ao setor de tecnologia da informação e ao setor financeiro, daquela gente chamada preppers. Não me refiro aos de classe média que vivem a seguir modismos e seriam melhor definidos como campistas com aptidões para agricultura sustentável e reciclagem de água.

Refiro-me a pessoas que andam a comprar antigos abrigos anti nucleares ou a construírem espaços supostamente autossustentáveis na Patagônia argentina ou na Nova Zelândia. Essa gente acredita na hipótese de guerra nuclear controlada ou parcial, acredita em pandemias de que se escapa.

Na verdade, a crença na possibilidade de escapar de coisas que matariam 99% da população da terra não consegue disfarçar que esta crença está lado a lado com o desejo que isto aconteça. Estes místicos, assim, teriam a oportunidade de refundar a humanidade e atuarem como novos deuses.

A hiperconcentração imporá a hiperviolência.

Segundo o Global Wealth Databook 2018, do banco Credit Suisse, o 01% mais rico detém 45% do total da riqueza no mundo.

As dez pessoas mais ricas do mundo detém patrimônios superiores aos produtos internos brutos de alguns países, dentre eles, os seguintes: Suíça, Argentina, Polônia. Taiwan, Suécia, Bélgica, Tailândia, Áustria e Noruega.

De acordo com o World Inequality Lab, no World Inequality Report 2018, os rendimentos dos 10% mais ricos correspondem às seguintes percentagens da renda nacional total: no Oriente Médio a 60,86%, na Índia a 55,46%, no Brasil a 55,33%, na África a 54,45%, noa Estados Unidos e Canadá a 46,96%, na Rússia a 45,51%, na China a 41,42% e na Europa a 37,07%. Estes dados referem-se ao ano de 2016.

Nos Estados Unidos verifica-se a maior concentração, entre países da OECD, da riqueza nas mãos do 01% mais rico, eis que detém 42,48% de toda a riqueza do país. Por outro lado, a riqueza média detida por pessoa adulta é muito menor nos EUA que em outros países da OECD como Austrália, Bélgica, Holanda, France, Canadá, Japão e Reino Unido.

A hiperconcentração de riquezas é um projeto, não uma resultante natural de diferenças naturais. Basta observar as mudanças nos níveis de concentração, no tempo e no espaço, para perceber que não se trata de tendência natural, fortuita ou a depender da superioridade intelectual ou moral deste ou daquele grupo nacional ou étnico.

Em alguns lugares, os padrões materiais já atingidos e a existência, ou persistência, de alguns mecanismos de assistência social atenuam um pouco os efeitos da hiperconcentração nas vidas de uma enorme massa de pobres.

Em outros, a brutalidade da hiperconcentração a par com a inexistência de mecanismos de assistência, tais como rendas mínimas e sistemas de saúde pública, permitem antever graves perturbações a serem enfrentadas.

Os primeiros grandes problemas que a hiperconcentração acarreta são a pobreza e a miséria em si mesmas, pelo sofrimento imediato que elas implicam para vastos contingentes. Ou seja, muita gente a sofrer com falta de alimentos, de higiene, de saúde, de moradia, de educação o que, numa simples perspectiva de solidariedade humana, não é desejável.

Por isso, um dos assuntos mais interessantes para a classe dominantes mundial é a contenção social, seus meios táticos e estratégicos. Mas, mesmo preocupando-se em dominar as técnicas de contenção social, as classes dominantes não escapam à inércia da hiperconcentração, mesmo que a racionalidade recomende prestar mais atenção à provável ineficácia futura dos meios de contenção baseados no discurso mediático.

Como dito acima, em muitos países os níveis de bem estar material chegaram a pontos elevados, o que significou pobres aparentemente ricos, às vezes à custa de aparências mantidas por crédito barato. Mas a aceleração na concentração, que se viu marcadamente a partir da década de 1980, tornou frágeis as aparências mesmo na Europa e nos Estados Unidos.

Na Europa e nos Estados Unidos é evidente um processo aparentemente lento de desaparecimento da classe média tradicional e o surgimento de um afastamento contínuo entre os extremos alto e baixo das classes médias. Este é um ambiente particularmente fértil para o ressurgimento de fascismos mais ou menos explícitos, eis que o ressentimento das pessoas é enorme e sempre identificaram-se socialmente com os de cima.

Essa face do problema tem sido muito comentada, porque não são poucas as pessoas que perceberam estarmos em situação semelhante à dos anos iniciais da década de 1930. Contudo, a ressurgência dos fascismos, alojados nas classes médias como em seu habitat preferencial, pode não ser, isoladamente, o maior dos problemas ou implicações que a hiperconcentração pode trazer.

O potencial caótico dos fascismos tem de ser compreendido levando-se em conta outros fatores. Embora seja uma forma de estar e ver o mundo caracterizada pelo primarismo intelectual, pelo moralismo hipócrita e pela raiva, ele ainda se cria, se reproduz e se expressa por linguagem.

Ocorre que em muitas partes do mundo há vastos contingentes de pessoas que não se situam na pobreza intermediária, mas na pobreza aguda ou mesmo na indigência. As emergências e necessidades cotidianas são tamanhas que estas pessoas não poderão ser contidas por meio de novelas de TV ou movimentos cuidadosamente erráticos de políticos, ou escândalos que falam ao moralismo primário ou a qualquer coisa que implique linguagem.

É muito claro que o passo seguinte – opção não seria exatamente o termo adequado – é a violência física e as classes dominantes não têm quaisquer escrúpulos de recorrer a ela, sistematicamente. A questão é: diante da situação que se afigura provável, a violência resolverá? Quanto dela será necessária, caso admita-se que seja eficaz?

Ela só seria eficaz, na hipótese de deflagração de caos generalizado, caso se destinasse à total eliminação da pobreza e da indigência. Uma coisa deve ser lembrada, contudo, pelos entusiastas da idéia nas classes médias: a eliminação física da indigência não gera qualquer excedente a ser apropriado, eis que a indigência nada tem.

Mas, tudo indica que a hiperconcentração levará à hiperviolência e consumirá muita energia e recursos que serão apropriados de forma concentrada, o que traz em si a reprodução do modelo.

O interesse fetichista por detalhes biográficos dos autores.

Este texto foi publicado originalmente em maio de 2013 e refere-se especificamente a Machado de Assis porque, na época, chamou-me atenção a insistência de um crítico em ver aspectos biográficos ocultos nas obras do autor. Como se as obras fossem peças de um código para se decifrar a psique enigmática do autor.

Esse fetichismo vem aumentando desde então e espraiando-se para subcelebridades como jogadores de futebol. Por isso, achei interessante a republicação.

Autor e obra são coisas diversas e, exceto por quem gosta mais de fuxicos que de arte, o segundo é importante e o primeiro quase o não é. Talvez a contundência dessa afirmação deva-se ao paroxismo a que chegou o interesse por descobrir detalhes biográficos dos autores, numa atividade de investigação obstinada e fetichista em busca provavelmente de nada.

A biografia do autor é algo fundamental como referência histórica e isso vale até para artes que se pretendem abstratas.

Machado de Assis é tido como o maior escritor brasileiro e, particularmente, concordo com a opinião. Assim, é frequente a busca de um Machado que se revelaria fugazmente nas suas obras, numa espécie de jogo ambíguo do fino esteta que, dizem, era muito reservado com relação a detalhes de sua vida. Parte da crítica abandonou a crítica e passou a buscar a reconstrução de uma personagem a partir de várias.

Buscar conhecer as circunstâncias sociais e históricas de um autor é interessante, porque, afinal, sociologia e história são interessantes. Fazê-lo como investigação de causas e efeitos é, por seu turno, exercício de ficção ruim em segundo grau.

O fetiche está em crer que a obra é um jogo de chaves semi-ocultas para o próprio autor, mesmo que ela obra esteja lá, bela, imensa, válida por ela mesma e totalmente distante de ser um místerio de chaves subjetivas. Se as obras fossem sempre essas hagiologias de si mesmo, enigmas que conduzem ao psicológico do autor, seriam religiões iniciáticas e não peças de arte.

Por outro lado, é claro que as circunstâncias do autor descobrem-se nas obras, porque ele não é atemporal e porque o conhecimento imediato não é imediato, posto que ainda mediado por linguagem. O autor fala da única forma que pode, ou seja, a partir do que lhe fizeram seu tempo, sua classe social, sua educação, seu lugar.

Há pouco li um livrinho de Machado interessantíssimo: Casa Velha. A obra não foi publicada em forma de livro em vida de Machado. Ela surgiu em fascículos semanais ou quinzenais que saiam em períodicos, como se deu com outras obras dele. Todavia, somente foi editada em livro na década de 1940, trinta e tantos anos depois da morte de Machado.

Inicialmente, a crítica fez o que mais gosta: debruçar-se sobre uma lateralidade. A controvérsia era se Casa Velha era romanca pequeno ou conto grande. Pouco importa o rótulo, Casa Velha é obra valiosíssima e não tem qualquer coisa de autobiográfica, que foi a seguinte suposição da crítica.

Tem nada de autobiográfico, mas tem precisamente o que só poderia perceber quem viveu situação muito próxima aquela que se desenha no livrinho. A figura dos agregados a famílias ricas e muito ricas, não é suficientemente compreendida senão por quem a viveu.

O agregado é o ponto de contato entre a inflexibilidade social e a solidariedade no pequeno grupo. Ele entra num sistema de solidariedade e de intimidade familiar sem que as fronteiras invioláveis do pertencimento de classe sejam banidas. Talvez seja o elemento a explicar não ter havido desagregação social maior numa sociedade profundamente desigual e quase estamental, como era o Brasil no século XIX.

É pouco menos que óbvio que o primor do desenho de Casa Velha advenha de Machado ter ele mesmo sido de uma família agregada a uma grande casa senhorial no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX. Não há artificialidades na casa senhorial – a Casa Velha – e nas relações que há nesse subsistema social.

O livro diz – é audacioso e até temerário dizê-lo, mas o livro diz mesmo – que a violação das fronteiras de classe por nascimento é o delito mais grave e portanto o que mais esforços deve implicar para ser evitado. E di-lo deliciosamente ao mesmo tempo em que expõe laços de solidariedade e intimidade cultivados com imensa força.

O paradoxo é fascinante. A agregada é afilhada da senhora, é acarinhada por ela, é por ela educada, é a quase-filha, é dotada pela senhora, mas resta-lhe uma única inviolável fronteira. Ela não se pode casar com o filho da senhora.

Ela é da Casa, mas não é da classe. Para evitar a união, a senhora é capaz de lançar mão do maior tabu social e sexual existente: o incesto. A mentira, a sugestão do incesto, a desonra que haveria por trás dessa suposição se verdadeira, tudo isso vale para fechar a última fronteira. Fica clara a hierarquia de valores instalados na cabeça da senhora, de todas as senhoras e senhores.

A imperatriz da Casa Velha é capaz de inventar que a agregada é filha de uma aventura extraconjugal de seu falecido marido – ex-ministro do Império – com toda a vergonha para si e agressão à memória do extinto que isso implica, para estancar um namoro que na verdade não violaria regras contra o incesto, violaria regras de imutabilidade social.

Machado percebeu muito bem a escala de valores dominantes e que o valor supremo permite uso e recurso às maiores mentiras e ao maior dos tabus, neste caso o incesto não ocorrido, mas sugerido como meio de separação.

O autor fala de situações que ele conheceu e compreendeu os mecanismos subjacentes à dinâmica social do tempo. Não se cuida de narrativa do que se passou com ele próprio, nem de fornecimento de chaves dissimuladas para a compreensão de algum enigma que tenha sido a vida dele autor. Essas duas última inclinações da crítica decorrem de impulso irrefreável para a superficialidade, para o culto do subjetivismo do autor e para o fetiche biográfico.

O Memorial de Aires, última obra machadiana, publicada no ano mesmo de sua morte, rende ainda mais ensejos à visão de enigmas e chaves autobiográficas. Aqui, creio que Machado fez de caso pensado, sabedor ele desse fetichismo e superficialidade que fazem a crítica e parte dos leitores tomarem a obra como objeto de curiosidade relativamente ao autor.

O Memorial – talvez mais que em outras – é culto à beleza da língua como raro ocorreu na literatura brasileira. O esteta inteligentíssimo dá-se a formas narrativas pouco habituais, relativamente livres e escreve numa concisão de coluna dórica. Essas bobagens de realista ou parnasiano, ou mistura dos dois, são prisões que conduzem o crítico e o leitor a nada, tratando-se desta obra. As memórias são do diplomata Aires, não do escritor Machado.

Aqui, a crítica vê as suas sempre presentes chaves autobiográficas no casal sem filhos e em que a esposa é cultuada. Machado e Carolina não tiveram filhos e a admiração séria dele por ela é conhecida e foi reforçada pelo soneto A Carolina, composto logo após a morte dela.

É claro que ele pode compor um casal harmônico no companheirismo e cumplicidade profundos e sem filhos porque deve ter vivido conjugalmente assim e sem filhos. Mas, daí a fazer desse casal o que ele compunha com Carolina vai imensa distância. Machado era, segundo todos dizem, profundamente reservado e até distante no que se referia à sua vida pessoal. Seria estranho que quisesse, assim impudica e superficialmente, expor no derradeiro livro ela e ele, postos a nu, a claro, às vistas de todos.

Por outro lado, nada leva necessariamente a crer que Machado e Carolina tivessem a ausência de filhos como alguma ferida, como dá-se com as personagens Aguiar do Memorial. Novamente, pode haver aqui a inteligente piada e talvez a pista falsa deixada para os intérpretes que funcionam a partir das categorias sentimentais pré-ordenadas. Sagacidade e ironia para fazê-lo ele tinha a sobrar.

De qualquer forma que seja, essas duas obras são as que revelam mais precisamente o que Machado viveu, quais as circunstâncias sociais em que viveu. Todavia, isto vai longe de serem as pistas para a percepção do que foi um personagem a ser biografado em termos psicológicos, ele que tão psicólogo social não faria o que sabia impossível e, ademais, redutor.

É profundamente redutor supor que Machado não soubesse da enormidade de sua obra em termos artísticos e quisesse, assim, propor os enigmas que conduziriam à sua hagiografia de falsas sutilezas por professores críticos profissionais. Também é bastante improvável que os mesmos críticos tenham percebido isto, presos que são ao que são.

Renoir, Fellini e Kubrick disseram quem é e como é a aristocracia ocidental.

Dizer que há um grupo reduzido e interligado de aristocratas que mandam no mundo ocidental – Europa, América do Norte e seus satélites coloniais africanos e sul-americanos – é inconveniente e quase proibido, a depender de quanto explicitamente se fale.

Dos três cineastas do título, é interessante notar que Kubrick foi o mais explícito e, não se sabe se por causa disto, veio a morrer antes do filme ser lançado. Deve ter sido coincidência. Normalmente, os identificados limitam-se a dizer que o identificador é um difusor de teorias da conspiração.

A identificação faz-se a partir da mostra dos códigos que regem as relações dos aristocratas muito ricos entre eles mesmo e entre eles e o restante das pessoas. Tende a escandalizar o público porque estes códigos não se baseiam absolutamente em critérios morais, embora consagrem critérios de honra. E as finalidades destes códigos são ocultar-se e manter o poder nas suas expressões econômica e social.

No seu filme, Renoir insere subtramas e intrigas que afastam um pouco a percepção do que era possível e impossível para a personagem André. em seu romance com a esposa do aristocrata austríaco.

Fellini é discretíssimo. A personagem de Mastroianni, Marcello, percebe na festa no castelo aristocrático romano que ele estava lá apenas fisicamente. Mas, o que parece é ser um filme todo focado na pequeneza existencial de Marcello.

Esses filmes e as identificações dos modos de ser individuais e de grupo dos aristocratas e de seus códigos de condutas para relações internas e externas vieram-me à mente pois lia sobre o marquês Camillo Casati Stampa di Soncino, aristocrata de uma das famílias nobres mais antigas de Itália.

Já havia lido sobre Casati Stampa há muito. Mas, voltei a me interessar porque li que Berlusconi comprou à filha herdeira de Casati Stampa, em 1974, a Villa San Martino. E Berlusconi, farsante e impudico, abriu a Villa a uma equipe de TV para provar que nela não se faziam as festas bunga bunga e para mostrar que havia erigido um mausoléu inspirado no túmulo de Tutancámon, para acolher os amigos que morressem…

O marquês era riquíssimo e tinha muitas casas por toda a Itália. E tinha uma Villa na Ilha de Zannone, que ficou conhecida como a ilha das orgias. Em 1958, Casati Stampa conheceu Anna Fallarino, que fora aspirante a starlet da Cinecittà e findara por casar-se com um engenheiro meio endinheirado, que a inseriu nos círculos de bom gosto romanos.

O marquês conseguiu a anulação do casamento de Anna, mediante pagamento farto, e veio a casar-se com ela em 1959. Na noite do casamento, Anna banhava-se, no hotel em que estavam, e Casati Stampa fez chamar um garçom, um rapaz jovem e bonito, com quem Anna desfrutaria à vontade, enquanto o marido apenas olhava.

Este acordo deu certo. O marquês pagava para jovens, dos dois sexos biológicos, bonitos, de condição social inferior, terem sexo com Anna, enquanto ele tirava fotos. Depois, descobriu-se que havia um arquivo de aproximadamente 1500 fotos encartadas em um diário verde, que trazia também anotações feitas por Casati Stampa.

Havia, porém, um limite estabelecido no pacto: não poderia haver envolvimento emocional nem amoroso entre Anna e os inúmeros amantes pagos pelo marido. Um dia, Anna foi introduzida a um jovem chamado Minorente e envolveu-se afetivamente com ele.

Em agosto de 1970, Casati Stampa matou-os e matou-se com uma espingarda de caça, na sua Villa em Roma. Deixou escrito que havia sido traído com o coração, por Anna. No testamento, estabeleceu que a marquesa Anna seria enterrada junto a ele, no mausoléu da família Casati Stampa di Soncino.

Muitos, notadamente psicólogos, como é intuitivo, debruçaram-se sobre a psiqué do marquês e puseram-se a especular se era impotente, se era voyeur, se era homossexual e por aí vai. Nada disso parece-me importante, eis que tais especulações parecem-me muito mais guiadas por balizas moralizantes que por balizas ou interesses epistemológicos. Claro que a investigação psicológica não é inútil, mas não atinge o mais interessante.

Os móveis psicológicos que impeliam o marquês a tais condutas sexuais não têm a ver com sua origem social e com a possibilidade de fazer o que gostava de fazer. Esta possibilidade concreta de agir abertamente como agia é que é reveladora do que é a classe social a que pertencia.

Há códigos para as relações dos aristocratas muito ricos entre eles e com as restantes pessoas, de fora do grupo. Eles, de uma forma geral, visam à preservação do poder nas suas expressões econômica, social e psicológica. Casati Stampa foi ferido no seu poder pessoal sobre Anna. Foi traído com o coração quando Anna enamorou-se do amante e estabeleceu uma relação que fugia ao poder do marquês.

Este caso é mais sútil, de fato, eis que é mais comum perceber-se a função conservadora dos códigos relativos à liberdade sexual dos aristocratas muito ricos na sua face de manutenção do poder econômico. Na corte dos Aquemênidas, por exemplo, a rainha e as mulheres da alta nobreza serviam-se sexualmente dos eunucos à vontade.

Não havia a interdição sexual na corte persa; havia a interdição de procriar fora do grupo e deslegitimar a nobreza com a geração de bastardos. Os eunucos, contrariamente ao que muitos pensam, não são impotentes quando castrados depois da puberdade, são inférteis apenas.

Semelhantemente acontece com as regras que vedam o acesso dos pequenos fidalgos e do burgueses ao seio da aristocracia muito rica, senão como pequenos bufões que eventualmente divertirão num e noutro jantar, como acontece no episódio da Doce Vida, de Fellini. Mas esse convívio esporádico raramente significa uma aceitação real e um ingresso no outro mundo.

A aristocracia dos muito ricos protege-se, individual e coletivamente, por meio destes códigos desconhecidos da maioria. Assim, mantém riqueza, prestígio social e honra, por bizarro que possa parecer. Nunca se tratará de moral, contudo.

Cultura de Almanaque e mediocracia.

O homem médio manifesta, relativamente ao tipo superior, ressentimento. E, relativamente ao tipo inferior, manifesta ódio e desprezo. Para os tipos médios, o superior define-se mais intelectualmente que econômica e financeiramente, ao passo que o inferior define-se, basicamente, a partir do ponto de vista sócio-econômico.

No homem médio, o tipo que ele identifica – mesmo irracionalmente, à primeira vista – como superior causa-lhe um mal estar, que é a náusea de perceber algum intelectualismo que ele não alcança e considera, não sem algum acerto, esnobismo.

O tipo inferior, definido quase exclusivamente por parâmetros sócio-econômicos, é aquele que o homem médio gostaria de nem mesmo ser compelido pelo cotidiano a ver. Gostaria que não existisse, pura e simplesmente. Ele é o feio, desprezível, o perdedor que perde por vontade própria, eis que é necessário acreditar em igualdade de oportunidades. É, em suma, o tipo que pede dinheiro porque é preguiçoso, porque poderia estar a trabalhar por um prato de hidrato de carbono.

O ódio e o desprezo do tipo médio pelos inferiores é fenômeno de psicologia de massas de menor complexidade, quando comparado ao ressentimento sentido ante os definidos como superiores.

Como exemplo da primeira inclinação tratada, considere-se a postura que um médio empresário – um construtor civil cumpre a tarefa de caracterizar este tipo social – provavelmente apresentará ante um professor universitário. O médio empresário, no mínimo vinte vezes mais rico que o professor universitário, nutrirá ressentimento frente ao segundo, por sentir-se inferior a ele, mesmo que possua muito mais dinheiro.

Isto não parece surpreendente, quando admitimos que o critério de medida e comparação é, aqui, intelectual. Todavia, a surpresa reside precisamente no fato de o critério não ser puramente financeiro, que é o que se esperaria da proposição teórica dominante aceita pelo homem médio, inclusive.

A despeito de toda ênfase no material, a psicologia de massas implica outras variáveis mais sutis.

É necessário dizer e admitir que as classes dominantes liberais ajudaram muito a criação do homem médio ressentido, por um lado, e enfurecido, por outro. Isto manifesta a degeneração das classes dominantes liberais, pois no após segunda grande guerra elas mostraram-se muito habilidosas em lidar com o homem médio.

Elas deram-lhe a cultura de almanaque, a ciência de almanaque, as popular science e popular mechanics, os Manuais do Escoteiro Mirim, o midcult em humanidades, no modelo do romance exótico de Karl May.

Por meio deste pacote midcult, o tipo médio participava da ciência pelo conhecimento dos processos, mesmo que permanecesse à margem das causas. E, no que concerne às humanidades, sabia, mesmo sem profundidade, que havia grupos humanos diferentes nas longínquas Ásia e África.

Ele tinha um pacote cultural para chamar de seu, com bons vernizes e, embora continuasse a saber que havia uma upper culture, sabia-se de alguma forma inserido. Assim, até sua postura ante o tipo inferior era diferente, pois ela poderia ser parametrizada também culturalmente.

Mas, as classes dominantes liberais sucumbiram ao esnobismo de, mais e mais, ridicularizarem o midcult. E, assim, ajudaram a adubar o meio em que florescem os fascismos, tornando o tipo médio órfão de um pacote cultural para chamar de seu e o impedindo de seguir a definir seu pertencimento a partir de critérios culturais estabelecidos.

Claro que o homem médio ressentido ante o que identifica como superior e odioso ante o que identifica como inferior, buscaria o poder e o obteria, estabelecendo a mediocracia.

« Older posts