Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

A Queda, de Albert Camus.

Camus escrevia teatro, e bem. Basta considerar seu Calígula, uma magnífica peça teatral. Creio que a técnica do monólogo foi bem empregada n´A Queda por conta desse domínio do teatro. Não é fácil estruturar uma narrativa de romance a partir da fala apenas de uma personagem condutora, ou seja, sem diálogos. Todavia o livro é fácil de ler, não é chato e a tradução da edição brasileira é boa.

O juiz-penitente é a personagem única desse conto alongado. Única porque seu interlocutor não chega a ser verdadeiro partícipe, senão um atento ouvinte do monólogo, a evitar que sejamos nós os destinatários em linha reta dessas penitências acusadoras.

O autor ousou ser original e não alinhado às correntes intelectuais e literárias dominantes na época e foi impiedosamente julgado pelos deuses e anjos da intelectualidade engajada. Não o podiam acusar de covardia na luta pela nação, que ele fez parte da resistência francesa, e isso deve ter redobrado a raiva. Ora, o fulano não era atacável no flanco mais óbvio. Então, merecia sê-lo como cismático do monolito parisiense-frankfurteano.

Ele tinha escrito o Homem Revoltado, uma obra que o ego de Sartre fê-lo perceber como uma acusação contra ele, Sartre. Talvez esse último exagerasse sua importância, pondo-se na condição de atacado, mas os juízes do mundo tendem a proceder assim, pois são o centro do  cosmos e da verdade e, portanto, os destinatários de todos os ataques. De minha parte, vejo no Homem Revoltado ataque a ninguém especificamente e sim uma grande obra.

A Queda é mais precisa e mais densa que o Homem Revoltado. É a penitência de todos por meio de uma só. O juiz-penitente diz o que ele é e, consequentemente, o que são potencialmente todos os homens. Lembro-me, a este propósito, de um episódio que se teria passado em Atenas, quando vivia Sófocles.

Na antiguidade grega admiravam-se bastante as pessoas capazes de saber quem era alguém por sua fisionomia. Chega, em Atenas, um fulano com essa capacidade e todos se apressam em imaginar sua análise de Sófocles, então já um autor velho e consagrado. E Sófocles, a quem o fisiognomista conhecia, chega à sua presença. O homem exaspera-se. Ele diz eu vejo, mas não pode ser exato isso que me parece, é Sófocles. O autor diz-lhe o que vês, que te impressiona tanto? O homem dotado excepcionalmente diz vejo uma pessoa mesquinha, invejosa, preocupada com minúcias, mas não pode ser aquele que escreveu Antígona, devo equivocar-me. Ao que Sófocles teria dito tudo que vês é certo, a diferença é que eu também sei.

Os homens julgam a todo instante e fazem-no a partir de suas moralidades. O que já permite ver que moralidades são códigos muito cambiantes e utilitários de extermínio das diferenças. Mas, acham pouco o juízo a partir das regras auto-ditadas e recorrem a supostas regras mais elevadas. Então, julgam também a partir da perspectiva de um Juízo-Final, de um grande e último julgamento, inapelável, uma sessão de que seus pequenos juízos diários são apenas o prenúncio.

O Juízo-Final, ante os juízos parciais do dia-a-dia deve ser uma tremenda absolvição, na verdade. Não pode ser mais terrível que as sentenças lançadas a cada passo, até porque convencionou-se que o magistrado da última sessão é mais sábio que os juízes de instrução de ontem e hoje, pois esses não se julgam. Não precisamos de Juízo-Final.

Acredite-me, as religiões enganam-se, a partir do momento em que pregam a moral e fulminam mandamentos. Não é necessário exisitir Deus para criar a culpabilidade, nem para castigar. Para isso, bastam os nossos semelhantes, ajudados por nós mesmos. O Senhor falava-me do Juízo Final. Permita-me que ria disso respeitosamente. Posso esperá-lo com tranquilidade: conheci o que há de pior; que é o julgamento dos homens. Para eles, não há circunstâncias atenuantes, mesmo a boa intenção é tida como crime.

E então? Então, a única utilidade de Deus seria garantir a inocência, mas eu vejo a religião antes de tudo como uma grande empresa de lavanderia, o que aliás ela foi, mas por breve tempo, precisamente por três anos, e não se chamava religião. Desde então, falta sabão, andamos com o nariz sujo e nos assoamos mutuamente. Todos culpados, todos castigados, escarremo-nos, e pronto: já para o desconforto. É ver quem escarra primeiro, eis tudo. Vou contar-lhe um grande segredo meu caro. Não espere pelo Juízo Final. Ele se realiza todos os dias.

Eu diria que a culpa geral – aqui, intranscendente – é a grande expressão da democracia.


5 Comments

  1. Davi

    Texto excelente, Andrei! Tenho ‘A queda’ em casa, mas numa edição em francês que nunca li, pois me dá muita preguiça ler em outras línguas.

  2. andrei barros correia

    Davi,

    O livro é muito bom. Realmente, em francês dá trabalho. Na época que li a peste tentei a Queda também, em francês, mas fiquei pela metade.

    O formato quase de monólogo não torna a narrativa das mais fáceis, embora a concisão da escrita de Camus esteja no auge.

    Abraços.

    • Davi

      Gosto do estilo de Camus, ele realmente exprime muito bem as fraquezas humanas. ‘O Estrangeiro’ foi um livro que digeri durante bastante tempo, daqueles que deixam você pensando. Li quando era mais jovem e tive dificuldades para absorver as ideias dele.
      Abraços e bom fim de semana.

      • Davi

        PS: Dada a sua indicação, acho que vale a pena adquirir (e ler, hehehe) um exemplar d’a queda em português.

      • andrei barros correia

        Davi,

        Acho mesmo que vale a pena e que me arrisco pouco afirmando essa sugestão.

        Bom final de semana para você também.

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