O discurso jurídico é, como tudo que se apresenta mediante linguagem, algo apreensível racionalmente. Ou seja, as conclusões seguem-se das premissas e estas são as normas. Seguem-se de acordo com simples modelo lógico-formal, em que a coerência interna não é coisa obscura ou difícil de buscar.

Problema maior – que geralmente é escamoteado – é a fonte do poder, quer dizer, quem pode ditar regras. Aqui, criou-se uma confusão que, no limite, é contrária ao sistema, como ele está enunciado. O modelo do Estado constitucional democrático representativo confere ao legislativo a preeminência, o poder de fazer regras gerais e abstratas, exercendo o poder soberano por derivação.

O restante, consequentemente, é aplicação da lei, concretamente, seja atuação política no campo aberto pela lei, seja aplicação da lei para resolver um litígio. Essas atuações dependem da lei, seja como fundamento de legitimidade da escolha política, seja como fundamento de validade da decisão judicial.

Nesse tipo de sistema, a contradição é uma ameaça à coerência interna, mas ela existe, como é próprio de qualquer modelo que tente racionalizar-se. Porém, ameaça maior que a contradição é sua negação a partir de sofismas mais ou menos complexos, sofismas que são, eles mesmos, profundamente contraditórios.

A aceitação da contradição é antecedente a qualquer postura epistemológica. Sua negação é tentativa oblíqua de usurpar o poder de fazer as normas ou de aplica-las. No limite, tal espécie de negativa e justificação é uma ação criadora de confusão, no sentido mais próprio desse termo. Ou seja, uma ação que visa a dizer que uma certa falta de identidade de duas coisas não existe e que, no sentido contrário, há uma identidade entre coisas diversas.

O sistema legal é hierarquizado de maneira a que as normas fundamentem-se em outras de grau mais elevado e de maior nível de abstração. Tudo isso vai desaguar, de baixo para cima, na constituição. Assim, uma norma que seja contrária à constituição não vale, se essa contrariedade for descoberta, apontada e declarada.

É óbvio que se essa norma não vale – pressupondo-se que foi dito por quem tem essa atribuição – também não valem as coisas que se fizeram a partir dela, inclusive sentenças judiciais. Ora, se a sentença aplicou uma lei que não vale, ela própria não vale, pois o contrário equivale a assumir que o juiz está acima da constituição.

É também óbvio que essa possibilidade de invalidar normas e decisões posteriormente a feitura delas cria potencialmente enormes problemas. Mas, dizer que eles não existem ou dizer que a supremacia da constituição também não existe não resolve esses problemas.

Um indivíduo lúcido – embora polêmico – como Paulo Otero disse uma obviedade – que é o mais difícil de dizer-se – contra que muitos sofistas cerraram forças. Disse que o modelo queria constitucionalizar o inconstitucional. Disse-o a propósito dos casos julgados e as posteriores declarações de inconstitucionalidade das leis que basearam o julgamento.

Está claro que se uma lei foi julgada inconstitucional, os casos julgados anteriores que a reputaram válida são também inválidos. Se não há a base, tampouco há o julgamento, pois este não tem autonomia em relação à lei, senão seria arbítrio judicial, pura e simplesmente.

Essa proposição não faz mais que assumir a lógica elementar aplicável à interpretação jurídica. O problema existe e está bem diagnosticado, mas estudiosos querem negá-lo, negando a própria lógica, ao invés de negá-lo logicamente.

Poderiam dizer que a decisão de um tribunal constitucional não precisa necessariamente afirmar ou infirmar, assim puramente, a inconstitucionalidade de uma norma. Assim, estar-se-ia assumindo que a decisão é mais legislativa que judicial, ou seja, que é mais uma revogação que uma invalidação. E não há problemas nisso.

Problemas há em dizer que se trata de uma invalidação de uma lei que, por sua vez, não invalida as decisões que foram tomadas com base nela. Aí, mais que contradição, tem-se uma profunda mentira.