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Falta de clareza e modismos. A língua escrita não tem os recursos da falada.

Um sujeito, um advogado, pediu o impedimento do ministro do supremo tribunal federal Gilmar Mendes. Fê-lo por meio de um requerimento ao Senado da República, órgão do poder legislativo competente para processar e eventualmente determinar o afastamento requerido. Um ministro do tribunal constitucional – o supremo tribunal federal – é agente político de um órgão de soberania e, por isso, é processado politicamente no Senado.

Esse processo que o advogado quer abrir não é jurisdicional, é político, deve-se apontar claramente. Dirige-se contra um agente político – porque atua em função que pode gerar obrigações para todos, equivalente à feitura de leis – e deve ser apreciado pelo órgão legislativo federal de competências mais elevadas. Ao Senado Federal compete também, por exemplo, julgar o pedido de afastamento do Presidente da República, por responsabilidade política.

Abstraindo-se da procedência do pedido – e acho que o ministro não tem mesmo condições de sê-lo – o pedido é um exemplo de falta de clareza e confusão. Defeitos que se devem, entre várias razões possíveis, à confusão entre político e jurídico e à submissão aos modismos corporativos. Defeitos, e isso é engraçado, que se encontram nos livros do ministro alvo do pedido.

Poucas pessoas escrevem tão mal, no Brasil, quanto os advogados. Por um lado, isso deve-se à quantidade deles e, por outro, às prisões da atividade. A maioria das causas judiciais gira à volta de questões já acertadas, ou seja, de coisas que não demandam boas explicações. Qualquer arrazoado, formatado no padrão dominante, citando e transcrevendo meia dúzia de decisões de tribunais e algumas linhas de leis, serve.

Além da previsibilidade do conteúdo, há os vícios de linguagem profissional. Vícios que enfeiam o texto do advogado, do juiz e do promotor e aumentam a chatice que ordinariamente espera-se de algo do gênero. As palavras e locuções que se repetem sem se saber o que são não podem ser desculpadas como se se tratasse de linguagem falada coloquial.

Elas pretendem-se coisas cultas, alinhadas segundo a norma culta. Portanto, devem ser julgadas com um rigor proporcional à pretensão que carregam. O advogado do caso deve ter toda razão contra o ministro, mas não conseguiu deixar de ser advogado. Claro que isso não importa, porque o pedido será entregado a outros advogados, assessores de Senadores, que nada verão de estranho ou feio.

Bem, aqui não se trata de jurídico, mas de clareza e modismos. O fulano inicia seu longo pedido dizendo que o faz em face de Gilmar Mendes. Não é isso que ele faz ou, melhor dizendo, ele não pede coisa alguma em face de quem se pede a condenação. Ele pede algo contra Gilmar Mendes. Não é feio dizer-se contra, mas tornou-se raro!

Em face de alguma coisa estamos como em frente a um espelho, ou a outra pessoa. Contra alguém, estamos quando pedimos sua condenação, o que é o caso dos processos, sejam judiciais, sejam políticos. As coisas que se pedem em processos, judiciais ou políticos, com autores e réus,  pedem-se contra alguém e isso é óbvio. Bem, isso é apenas um exemplo, apanhado entre tantos iguais.

O jargão domina toda a comunicação de alguma corporação. Ela especializa-se em auferir poder com o uso da terminologia própria, ainda que essa terminologia seja não-significante ou ambígua, ou imprecisa. A corporação acredita nisso como quem não vê qualquer coisa fora dela e cai na armadilha da imprecisão, quando a precisão e o uso de linguagem simples e coloquial seriam desejáveis.

Como o jogo é jogado formalmente, pelo menos até antes do vida-ou-morte, a imprecisão e o modismo serão usados para evitar-se a purga de quem merecia tê-la. Ou seja, o sujeito pede algo plausível, a quem faria igualmente, e tem o pedido negado porque na hora de resolver-se a questão entra em cena um fulano que maneja a lógica formal segundo os padrões estabelecidos e conhecidos.

Não se trata, aqui, de imputar a vício, erro de conjunção ou erro ortográfico um papel decisivo nas relações pessoais e sociais. Trata-se de apontar que são sintomas pontuais de falta de clareza e sucumbência a modismos absorvidos acriticamente. Ora, se entramos a escrever obscuramente, provavelmente será por uma de duas razões: ou pensamos também obscuramente, e assim a escrita é o reflexo da mente do escritor; ou há um divórcio entre o que pensamos e expomos, por descuido ou ignorância.

É interessante notar a possibilidade do erro voluntário, a que chamei descuido, no parágrafo acima. Essa modalidade, quando o falador ou escritor tem conhecimentos formais, é uma renúncia às potencialidades da língua. É como trazer para o campo da coloquialidade informal o que está no da formalidade. Ora, a lingua escrita submete-se a normatividade que não aprisiona tanto a falada porque a primeira tem que ter mais uniformidade, ou seja, tem que ser um código mais padronizado senão não se o entende.

A língua falada tem recursos para minimizar e até afastar as ambiguidades, imprecisões, repetições, flexões verbais erradas. O principal recurso é a presença física do interlocutor, com visão e audição. Assim, ele perceberá as variações de entonações da fala, a a expressão corporal e terá maior ou menor complacência com a informalidade e fará mais esforços para compreender, na medida de sua proximidade, de sua amizade com o falante.

A língua falada conta com importante elemento de coesão significante que a escrita não tem: a cena em que a conversa ocorre. A cena, a circunstância física em que se fala, já traz consigo grande quantidade de significação e indica aos falantes o nível de informalidade que será possível para um dado nível de compreensão. A circunstância – em seus aspectos físico e temporal – delimita bastante o que se pode dizer, pois há coisas que somente se dizem em tais ou quais circunstâncias.

Assim, uma série de lateralidades apoia a linguagem informal e dá suporte a que seja possível, mesmo em um nível de precisão relativamente baixo, se tomarmos as potencialidades. Isso não acontece com a escrita, em geral. Todavia, acontece com a escrita destinada ao círculo corporativo, hipótese em que há um pouco da circunstanciação encontrada na língua falada. Sim, porque há uma pré-definição aproximada do grupo destinatário do texto, o que já põe em marcha o recurso à muleta das pressuposições e das cumplicidades corporativas.

E aqui, como uma coisa puxa outra, percebe-se no avanço do obscurantismo, do uso do jargão, na perda de clareza, uma corporativização crescente da sociedade. Sim, porque os discursos estruturam-se como se destinados ao grupo de pertencimento do falante, apenas. Claro que muitas vezes o discurso é pura e simplesmente corporativo e fechado em torno a certo número de pressuposições e locuções do gosto da corporação.

Porém, observa-se que muitas vezes a prisão e as limitações do discurso fechado não são desejadas pelo falante que, apenas, não consegue dizer as coisas de outra forma, porque circunscrito à parcialidade da corporação, pensa e diz tudo de forma circunscrita. Tomemos o caso do advogado que pediu ao Senado o afastamento do ministro Mendes. Ele não precisava fazer um discurso de contornos jurídicos, ele não estava necessariamente aprisionado por formas pré-estabelecidas porque o pedido é político.

Claro que era necessário uma exposição de fatos e das relações entre eles, ou seja, uma narração. Era preciso demonstrar a indignidade para a função pública, o que não passava por falar como se fala a um juiz, com todos os fetichismos latinistas e locuções da moda jurídica. A ocasião do discurso aberto foi perdida, pois o falante não saiu de sua caverna discursiva, embora muito provavelmente quisesse sair, se soubesse que está dentro. Convinha ao pedidor que seu discurso fosse aberto, porque um pedido político deve ser compreendido pelo maior número possível.

 

 

Tocata e fuga em Ré menor, de João Sebastião Bach, para os dois lados do cérebro.

Sidarta, estimado, pensei em ti quando vi este magnífico vídeo. A melodia da Tocata e Fuga em Dó Maior, de Bach, é triste e insinua uma transcendência gloriosa, talvez temida, talvez com percalços, certamente tributária do platonismo para as massas, na sua melhor interpretação reformada. Em música, é o que Kant foi em filosofia racional cheia de deidades categóricas, disfarçadas em aparente racionalismo. Kant, afinal, é o São Tomás da Reforma.

Mas, não é isso que interessa, por aqui.

O vídeo e a música fazem pensar em limites e possibilidades das linguagens. Por um lado, o que se vê é matemática pura, porque tempos, tons e semitons, na escala cromática, são questões de divisões. Interessante é um mesmo significado ser apresentado por três significantes, ao mesmo tempo, o que nos permite perceber as diferentes abordagens que podem resultar dos hemisférios esquerdo e direito.

Vê-se, sob um aspecto, e escuta-se, também sob um aspecto, matemática. E com uma clareza imensa.

Ao mesmo tempo, o que se vê, os pontos e barras com tempos e intensidades e, mais, cores, é percebido espacialmente, em uma competência especial do hemisfério direito.E com a melodia, dá-se o mesmo, porque ela percebe-se em três dimensões, certamente em função das competências da metade direita dos lobos frontais.

Mas, esse lobos comunicam-se, por meio dos corpos calosos, e tudo percebe-se como um e vários! Já imaginaste como isso seria visto por alguém submetido a calosectomia? É pena que não se possa mais perguntar a Roger Sperry!

Presuntos cuzidos, no Makro, em Campina Grande, e outras divagações.

Quero deixar muito claro que não se trata de fazer troça ou de manifestar reprovação eloquente e acusadora de um erro ortográfico. Realmente, quanto a essas posturas, nunca me esqueci de um trecho magnífico de Eça de Queirós, a propósito das pessoas que se apressam a acusar imediato o erro ou pequeno desvio de linguagem dos outros. Apenas não lembro mais em que livro dele está!

Duas coisas, na verdade, despertaram-me a atenção. Primeiramente, uma evidente e engraçada desproporção entre o anúncio escrito e os produtos que estão na prateleira. As letras falam em presunto, onde quase só se vêm queijos.

Em segundo lugar, como é pouco importante o que está escrito. Essa seção nominada de presuntos cuzidos deve estar no mercado desde a sua inauguração. E o que importa é a identificação visual, ou seja, as pessoas vêm presuntos ou queijos e isso basta-lhes, não se detém a ler o nome da seção. Ou lêem e não percebem qualquer problema, é claro.

Algo semelhante acontece com os sinais de trânsito – também uma linguagem codificada em signos gráficos – a que poucos dão atenção e menos ainda prestam obediência. Não há um intuito deliberado de desobedecer-lhes as ordens e recomendações, há um desprezo, pura e simplesmente, como se ali não estivesse sinal algum.

É interessante – e aqui refiro-me ao Brasil mais propriamente – que a pouca importância dada ao escrito permeia todas as classes, inclusive aquelas que se supõem mais cultas. Nestas últimas, muitas pessoas lidam com a linguagem escrita como as senhoras dos países colonizados lidavam com os adereços que viam as colonizadoras utilizando. Uma caricatura, portanto.

Não consigo evitar falar desse aspecto particular, pois convivo com ele. No meio em que trabalho, a linguagem escrita é o meio principal e as pessoas nesse setor pretendem-se bem alfabetizadas. Prezam muitíssimo a correção ortográfica e não recuam diante da oportunidade de acusar sarcasticamente o erro de um outro. Todavia, a esse zelo ortográfico correspondem defeitos lógicos – sintáticos – imensos, falta de clareza, rebuscamento de farsa e uma fala de doer nos ouvidos. Os plurais – essa suprema inutilidade – foram sumariamente abolidos e essa sim é a grande reforma gramatical.

Ou seja, o sujeito não acha realmente o manejo correto da linguagem algo importante. Ele sabe, por outro lado, que deve aparentar dar-lhe importância e aí surge a caricatura, quer dizer, a imitação, que é uma embalagem vazia e exagerada de enfeites. Pois são precisamente embalagens vazias em caixas rebrilhantes o que se movimenta em tribunais e outras repartições públicas e nas corporações privadas.

O mesmo – a imitação de algo em que não se acredita verdadeiramente – dá-se em outras manifestações humanas. A mais interessante delas é a cortesia mal imitada, porque no fundo as pessoas não percebem qualquer utilidade nela e são profundamente descorteses. É notável que se chegou a ponto de propor uma identificação entre espontaneidade e maus modos, ou descortesia. E nessa identificação é que a maioria das pessoas realmente acredita.

Por tomarem como a mesma coisa a sinceridade, a espontaneidade, o estar-se à vontade, com o portar-se mal-educadamente, sem qualquer polidez, é que são incapazes de qualquer comportamento mais polido, que será apenas uma imitação de algo em que não se acredita.

A reserva, confundem-na com soberba ou arrogância. A discrição, com falta de espírito. Daí que quando o sujeito encontra-se em situação que ele acha recomendar alguma dessas posturas, assume-as falsamente, como uma criança mimada cala-se à força e sem saber porquê.

É uma carga de simulação muito grande para uma sociedade, essa que impõe uma dualidade quase platônica entre o real e o aparente. O real é a vida diária e o aparente é aquilo que se representa como sofisticação. Ora, assim vive-se preso a uma lógica de dominação muito perversa, pois implica na assunção de que o real é bruto e o aparente é só disfarce, portanto não é sofisticado nem útil.

Ora, se as maneiras e usos caricaturais não são aceitas e desejadas realmente, que sejam abolidas sem mais. Se é uma simulação escrever plurais e aventurar citações latinas, enquanto fala-se algo totalmente diferente, que sejam extirpadas as flexões de número e o latim de nada. Se os bons-modos são um esforço tremendo de simulação, que se coma com as mãos e se fale aos gritos. Se a questão é de espontaneidade, que sejamos espontâneos!