Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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O triunfo do homem massa: aridez e esterilidade.

Cansa. Cansa imensamente o mar de superficialidade afirmativa em que se vive. Por todos os lados está o homem massa – é necessário, sempre, dizer que não se trata do homem pobre – a espalhar as vulgaridades que traz na cabeça, os ditos que reputa graciosos, os disparates que reputa expressões de espontaneidade brilhante.

O tipo que vive a espalhar os títulos acadêmicos, sub-acadêmicos, pseudo-acadêmicos ou nada acadêmicos que obteve. Que propõe a irresponsabilidade e que corre para colher algum fruto que ela eventualmente dê e para afastar-se dos resultados desastrosos que provavelmente dará.

O tipo que tem inúmeros direitos adquiridos e quase nenhum dever, nem consigo mesmo. Não tem deveres de cordialidade, de contenção, de nobreza, de esforço, de decoro, de detenção de alguma cultura que vá além da resenha feita por outro igual a ele. Não tem obrigações com outros, com a vida em comum, com o Estado, com a honestidade intelectual.

Acha-se muito seguro de si mesmo e plenamente suficiente com as poucas e descoordenadas informações que ajuntou no cérebro. Fala de qualquer coisa, cita fulano e beltrano que não leu, pratica o oportunismo superficial porque acredita nele com devota sinceridade. Somente nisso não é dissimulado, pois acredita que todos são iguais, rebaixados ao mesmo nível de sub-homem.

O homem massa acredita em uma deformação da igualdade material. Essa crença é uma acusação de tudo quanto não for igual a ele, porque é intolerante com aquilo que o supera, que é menos mesquinho e estúpido que ele. Não percebe realmente essa diferença e apreende-a como se fosse alguma tentativa de mistificação.

Mede as pessoas por sua curtíssima régua e, por isso mesmo, diante do excepcional fica inicialmente perdido, não o compreende, não percebe algo que deva ser medido por outras réguas, e finda por julgar que está diante de alguma representação como é a dele. Retira do excepcional o que tem de superior para poder contê-lo na sua perspectiva vulgar. É, por isso, um destruidor, um assassino de nobrezas, um caçador de estetas.

Quem achar que isso é lamento de um leitor contumaz de José Ortega y Gasset, um leitor que tenta desconfiar de si mesmo todo o tempo, que tenta perguntar mais que responder, está certo. É isso mesmo, infelizmente.

Perderão sem saber porquê. Ou, mais do urubu com raiva do boi.

Acontece-me de seguir minhas leituras de Ortega y Gasset e acha-lo sempre claro e, mais importante, intelectualmente honesto. Além de obrigar-me a pensar, melhoro minha compreensão do castelhano, porque só o encontro nesta língua. Leio ainda mais detidamente, portanto.

A décima nona edição de Espanha Invertebrada é de 1934, portanto de uma das épocas mais convulsivas da história espanhola, precedente à Guerra Civil. Esse período não tem relações com o atualmente vivido no Brasil, embora um e outro aspecto possam ter paralelismos.

Interessante é que a análise da atuação das forças vitais de um país tem linhas de generalidade suficiente para conformarem um modelo. E, assim conformadas, são uma maneira de abordagem utilizável. O autor percebeu que a desagregação originava-se de uma intensa compartimentação dos grupos, de uma compartimentação excludente.

Em certo momento, o padre falava para o paroquiano, o militar para o militar, o advogado para o advogado, o engenheiro para o engenheiro e o trabalhador para o trabalhador. Ao mesmo tempo, todos comportavam-se como vencedores, não como lutadores. São posturas muito diversas, realmente.

O triunfante não precisa lutar, não reconhece perigos, não reconhece que seu triunfo possa não ocorrer, não reconhece que precisaria buscar adesões para obtê-lo. Pensa que ele existe por si e, por isso mesmo, fala para si, não para trazer outros à luta que antecede a qualquer triunfo.

Em certo ponto, a costumeira agudeza orteguiana vai a ponto extremo. No capítulo Pronunciamientos, ele trata de uma coisa  então comum, em Espanha. Um e outro sujeito, representante de algum dos grupos sociais estanques, resolve pronunciar-se. Não o faz como a oferecer à análise, à consulta e à adesão um projeto. Fá-lo para transbordar idéias suas e só suas e de meia dúzia de idênticos.

O autor do pronunciamiento está convencido de que diz o que todos pensam, porque acha que todos pensam igual a si. Daí, não convida os outros àlguma construção, pensa estar a desvelar alguma unanimidade silenciada. O trecho adiante tem muito de aclarador e de violento diagnóstico:

Aquellos coroneles y generales, tan atractivos por su temple heroico y su sublime ingenuidad, pero tan cerrados de cabeza, estaban convencidos de su <<idea>>, no como está convencido un hombre normal, sino como sulen los locos y los imbéciles. Cuando un loco o un imbécil se convence de algo, no se da por convencido él solo, sino que, al mismo tiempo, cree que están convencidos todos los demás mortales. No consideran, pues, necesario esforzarse en persuadir a los demás poniendo los medios oportunos; les basta con proclamar, con <<pronunciar>> la opinión de que se trata; en todo el que no sea miserable o perverso repercutirá la incontrastable verdad.

Esse é o estado de espírito dos grupos que perderão as eleições no domingo próximo.  Hoje, crêem que suas proclamações são o que o todo queria dizer ou escutar, mas são apenas as suas. Porque são proclamações, são intrinsecamente excludentes e auto-referentes. São falas de um grupo para ele mesmo, isso em uma realidade muito maior que um grupo.

Quando não resulta que o todo receba tais proclamações como suas verdades próprias, silenciadas mas suas, reputam que o todo é mesquinho, ignorante ou desonesto. Não lhes passa pela cabeça que os outros simplesmente percebam-se outros em face desses discursos proclamadores.

Não percebem que, quando venceram, foi por não terem assumido tal postura proclamadora restritiva. Foi por terem incluído ao seu âmbito de interesses mais interesses que os seus próprios. A política é sedução, mas não de si mesmo, evidentemente. Esgotada a sedução, fenecem os apoios e as possibilidades de sucesso, ao menos segundo as regras vigentes da representação.

Trágico é que não se percebe o esgotamento e então aplica-se o sentimento do urubu com raiva do boi. O pássaro não percebe como pode o grande mamífero herbívoro não querer morrer para servir-lhe de comida!