Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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Fradique Mendes oferece um exemplo para ilustrar a tese.

Duas postagens sobre o mesmo assunto é chato. Mas, pior seria uma mesma postagem com uma enorme transcrição, ainda que seja de Eça de Queirós. Por isso, segue a parte final da carta a Madame S., em que Fradique oferece um exemplo a ilustrar o que vinha teorizando sobre o domínio de línguas estrangeiras.

Eu tive uma admirável tia que falava unicamente o português (ou antes o minhoto) e que percorreu toda a Europa com desafogo e conforto. Esta senhora, risonha mas dispéptica, comia simplesmente ovos – que só conhecia e só compreendia sob o seu nome nacional e vernáculo de ovos. Para ela huevos, oeufs, eggs, das ei eram sons na Natureza bruta, pouco diferençáveis do coaxar das rãs, ou de um estalar de madeira. Pois, quando em Londres, em Berlim, em Paris, em Moscou, desejava os seus ovos, esta expedita senhora reclamava o fâmulo do hotel, cravava nele os olhos agudos e bem explicados, agachava-se gravemente sobre o tapete, imitava com o rebolar lento das saias tufadas uma galinha no choco, e gritava qui-qui-ri-qui! co-có-ri-qui! có-rócó-có! Nunca, em cidade ou região inteligente do universo, minha tia deixou de comer os seus ovos – e superiormente frescos!

Um conselho de Fradique Mendes.

O final do almoço, Pierre-Auguste Renoir

C. Fradique Mendes é das criações mais deliciosas de Eça de Queirós. Claro, é um caráter feito de superficialidade, dandismo, intelectualidade de mostrar em salão, ironia. Um flâneur de um mundo cujo centro estaria em Paris.

A obra consiste em um volume com a primeira parte chamada Memórias e Notas e a segunda chamada As cartas. Recolho um trecho da quarta carta, em que Fradique comunica a Madame S. algumas opiniões sobre o desejo desta senhora de ter seu filho perfeitamente instruído na língua castelhana.

Não pretenda alguém ver no trecho adiante sugestão ou conselho meu próprio e lembre-se, a propósito, da ligeireza e ironia que fazia a personagem de Fradique. Se há sugestão, é dele, do grande mundano português do século XIX, não minha, que me falta arte para tanto. Bem o queria, mas…

Um homem só deve falar, com impecável segurança e pureza, a língua da sua terra; todas as outras as deve falar mal, orgulhosamente mal, com aquele acento chato e falso que denuncia logo o estrangeiro. Na língua verdadeiramente reside a nacionalidade; e quem for possuindo com crescente perfeição os idiomas da Europa vai gradualmente sofrendo uma desnacionalização. Não há já para ele o especial e exclusivo encanto da fala materna com as suas influências afetivas, que o envolvem, o isolam das outras raças; e o cosmopolitismo do verbo irremediavelmente lhe dá o cosmopolitismo do caráter. Por isso o poliglota nunca é patriota. Com cada idioma alheio que assimila, introduzem-se-lhe no organismo moral modos alheios de pensar, modos alheios de sentir. O seu patriotismo desaparece, diluído em estrangeirismo. Rue de Rivoli, Calle d´Alcalá, Regent Street, Wilhelm Strasse – que lhe importa? Todas são ruas, de pedra ou de macadame. Em todas a fala ambiente lhe oferece um elemento natural e congênere onde seu espírito se move livremente, espontaneamente, sem hesitações, sem atritos. E como pelo verbo, que é o instrumento essencial da fusão humana, se pode fundir com todas – em todas sente e aceita uma pátria.