A hipocrisia não é natural do humano. São-no a vergonha, a auto-complacência e a vontade de poder. Naturais são inclinações potenciais, o que não significa que se manifestem em todos os espécimes e com as mesmas intensidades, em todas as ocasiões.
A hipocrisia é um fato social, ou seja, somente faz sentido em grupos, maiores ou menores. É a escamotação para um grupo, não para si. Mentir para si mesmo é outra coisa, com outras implicações. Novamente, uma explicação: a hipocrisia, fato social, tem também implicações para os indivíduos isolados, mas sua raiz é o grupo.
A hipocrisia social – em quaisquer termos comparativos – é uma resultante de muitas vontades de poder reunidas por algum motivador comum. Torna-se eficaz por meio da difusão da mesma opinião, ainda que suavizada com matizes de diferenças insignificantes.
Esses dois aspectos, o móvel e o instrumento, retro-alimentam-se. A existência de uma motivação comum gera a difusão do discurso hipócrita e esta, a difusão do discurso, reforça a motivação.
É fácil perceber que tal sistema tem muito de involuntário na sua marcha autônoma, ou seja, na sua replicação automática. Porém, essa componente inercial de irracionalidade não significa a inexistência de elementos voluntários bem definidos, na base do seu funcionamento.
O sistema resulta em um instrumento para a obtenção e a manutenção de poder, o que revela seu aspecto útil. E utilidade significa que a ferramenta não funciona apenas por si: ela é manejada deliberadamente, também.
A difusão da informação desempenha o papel da vontade racionalmente dirigida no sentido de usar a hipocrisia como instrumento de poder. Pois ela tem raízes sólidas nas mentalidades do público e convém regá-las sempre, para que se aprofundem mais e mais.
Mata-se e rouba-se bastante, no mundo. E isso faz-se para obter domínio, abstraindo-se dos casos minoritários de demência ou de honra. E prova que o domínio é buscado independentemente de considerações sobre os instrumentos necessários. Alguns, todavia, causam reprovações sociais variáveis e aqui entra a hipocrisia, como um óleo a facilitar o convívio de engrenagens de aço duro.
Hoje, um país, os Estados Unidos da América do Norte, faz tudo que sempre se fez para que seus cidadão gozem de elevada prosperidade relativa, a custo da pobreza, também relativa, dos outros. Nisso, nada há de inovador ou diferente do que fizeram países predominantes, na história.
Diferente é a massiva utilização da hipocrisia como instrumento para obter e manter a dominação. Evidentemente, essa circunstância é historicamente perceptível, porque os meios de comunicação de massas desenvolveram-se excessivamente a par c0m a ascensão desse país.
Tudo que esse país e seus vassalos – que predominaram no mundo anteriormente – fazem, faz-se desde que o planeta é habitado por gente que se considera humanóide e vive em comum. Mas, desse tudo comum, apenas o que fazem países que os EUA reputam indesejáveis é propagandeado e considerado ruim e absurdo.
Digo isso a propósito de mais uma de inúmeras revelações de resultantes de ações norte-americanas em nome de intenções aparentemente boas. O fato é que os EUA bombardearam a Sérvia – inclusive com munições de fósforo e urânio empobrecido, proibidas pela farsa que é a ONU – para criar um Kosovo e uma Bósnia livres da Sérvia.
Livres da Sérvia ficaram a Bósnia e o Kosovo e foram processados ilegalmente líderes sérvios. Todavia, não ficaram livres das máfias kosovares vários sérvios assassinados para a retirada de órgão destinados ao tráfico ilegal.
Um ex-procurado suíço, Dick Marty, produziu um relatório sobre os assassinatos de sérvios por máfias kosovares para retirada de órgãos destinados ao mercado ilegal. E disse que os países europeus e os EUA sabiam do que ocorria e nada disseram. Ou seja, faz-se um morticínio com armas ilegais, a bem de algo tão difuso como a liberdade, para instalar faltas de liberdade tais como essa.
Se nos voltarmos para o lugar mais que comum do discurso da implementação da democracia, lembraremos que os EUA promoveram inúmeras ditaduras, nas Américas do Sul e Central, na África e na Ásia, para estabelecer a democracia. Curiosos casos de remédios que matam os doentes, além de incoerência evidente.
Curioso também lembrar que a falta da tal democracia não causa qualquer espanto em países dóceis ou vassalos, como a Arábia Saudita e o Egito, sobre que os EUA não dizem uma palavra. Isso é compreensível e o silêncio da opinião pública também. Mas, o silêncio desta última não é estratégico, mas pura burrice e fala de crítica.
Os promotores da democracia e da liberdade não se furtam a manter campos de concentração de prisioneiros ilegais, nem de fazer seus súditos europeus cúmplices dessas práticas, embora falem sem parar contra o mesmo praticado por inimigos.
Os campeões da liberdade falam em direitos humanos e apontam o dedo contra seus inimigos, mas executam pessoas julgadas em processos mais que suspeitos, verdadeiros linchamentos públicos que nada têm com justiça.
Os líderes do mundo e campeões na utilização da hipocrisia decairão. Mas terão produzido danos profundos nas mentalidades de milhões de pessoas que não aprenderam a pensar de outra forma além da superficialidade e da aparência. Elas serão os clarões de uma estrela que morre, clarões perigosíssimos de explosões de hélio.
Avançaram o que não precisava de estímulo: a burrice generalizada da opinião acrítica das massas incontroláveis. Isso cobrará seu preço em incompreensão, em gerações sem rumo, em vale-tudo, em ápices de lugares-comuns repetidos como se fossem ciência. Isso levará muito tempo para reorganizar-se e deve-se esperar que a China seja capaz de fazê-lo.