Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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O medo e o grau zero da racionalidade.

Ocorreu algo bárbaro, mas não propriamente raro nestas terras: uma revolta na penitenciária local, desencadeada pelas péssimas condições de encarceramento e por brigas de facções internas. A confusão acelerou-se a partir do momento em que decapitaram um preso e passaram a jogar com a cabeça separada do corpo.

As pessoas acham – bárbaras que são – que as penitenciárias devem ser cópias do inferno. Ignoram que o Estado tem poder de privar de liberdade, que é penalidade, mas não tem direito de privar de dignidade. A humilhação e a imposição de condições degradantes ainda não estão previstas legalmente como sanções penais, embora muitos queiram isso. Assim, é legítimo que os presos queiram condições adequadas.

Claro que a forma de reclamar é também bárbara, mas não seriam ouvidos de outra maneira e nem são mesmo com linguagem tão eloquente. O fato é que desencadeou-se onda de boatos e surto generalizado no vulgo de medo.

Um dos boatos, repercutido por gente que não aceitaria ser chamada de ignorante, dizia que os presos amotinados tinham fugido do presídio e rumavam para o centro da cidade, precisamente para o terminal de integração de transportes urbanos.

É algo muito estúpido até pelos largos padrões de tolerância que se tem de adotar recentemente. O vulgo não pensa antes de repetir algo. Ele age a projetar-se sobre o mundo, age diante do espelho. Ora, é difícil imaginar uma caravana de presos fugidos marchando para o centro da cidade para fazer um protesto! É o grau zero da racionalidade, porque presos fogem para se esconderem.

Mas o vulgo, principalmente o médio-classista que tem feito protesto gourmet contra governo que redistribui riquezas, acha que ele e um preso amotinado tem as mesmas preocupações e anseios. O sujeito estreitou-se a ponto de conceber o mundo à sua total semelhança e fica incapaz de pensar.

Esse estado de ânimo revela campo fértil para a semeadoura do medo, para o alastramento da cultura da repressão, de que a violência decorre da falta de violência. As pessoas repetem acriticamente que tem havido aumento significativo da violência, o que não é verdade. Se não houve recuo, não houve aumento. Basta um pouco de memória para aqueles que passam dos quarenta anos de idade para constata-lo.

Ganham com isso apenas os agentes do aparato de segurança, o que sempre ganham com o medo e a violência. A sociedade nada ganha, porque se pancada resolvesse violência, o Brasil era o país mais pacífico do mundo, tanto já se deu pancada, tiros, torturou-se, tudo à margem da lei e à discrição de selvagens investidos em poderes policiais.

Na esteira dessa cultura do medo histérico, pre-condição para um estado policialesco e de exceção, vem o habitual discurso por redução de maioridade penal e por pena de morte. Duas coisas que já existem, todavia! No Brasil, a maioridade penal do pobres pretos ou mulatos inicia-se no nascimento. Pena de morte é praticada todos os dias pela polícia, sem julgamentos…

As prisões formais. Cumplicidade com a fraude, elemento de coesão social e boa consciência individual.

Época de declaração de ajuste anual do imposto sobre a renda das pessoas físicas, relativo ao ano anterior, é um frenesim enorme na pequena-burguesia brasileira. Convém lembrar que este grupo é a caixa de ressonância do discurso da excessiva carga tributária; acham que pagam muitos tributos…

É a mesma gente que viaja frequentemente ao exterior, notadamente para os EUA e para a Europa e de lá nada trás na cabeça, apenas nas malas. Se não fossem totalmente impermeáveis, trariam algo mais que a memória das vitrines; trariam informações a lhes permitirem comparações e certas purgas mentais.

Os tributos, em geral, nos EUA, são mais reduzidos que no Brasil ou na Europa, mas do Estado nada se recebe além de balas da polícia, por coisas tão sérias como ser meio preto ou estar em atitude suspeita, seja lá o que isto signifique.

Na Europa a tributação é muito mais elevada que no Brasil, seja sobre a propriedade imobiliária, sobre a renda, sobre o consumo, sobre as grandes fortunas. O retorno estatal pelos tributos cobrados ainda é considerável, principalmente na rede de proteção social aos mais pobres, mas isto recua velozmente.

No Brasil, a classe que mais reclama do pagamento dos impostos é aquela que não recorre ao Estado para coisas básicas como educação e saúde e benefícios sociais, porque exatamente não precisa disso, embora diga que gostaria de usufrui-los.

Na verdade, a pequena-burguesia instituiu em seu benefício um sistema muito melhor, que consiste em usar serviços privados e dividir a conta com o Estado e toda a sociedade, consequentemente, por meio de deduções de despesas feitas na base de cálculo de seu imposto sobre a renda. Deduções de despesas com serviços que são oferecidos gratuitamente…

Nesta época ouve-se muito o pequeno-burguês prototípico a falar de recibos de pagamentos por instrução com dependentes e principalmente despesas com saúde. Estão à procura de médicos, farmacêuticos, fisioterapeutas que vendam-lhes recibos de despesas e tratamentos não realizados.  É burla, é fraude evidente, não há como suaviza-lo.

E este ser médio, prototípico, trata o assunto abertamente, em clima de camaradagem e cumplicidade, se for com interlocutores da mesma classe social. Não lhe ocorre – mesmo que seja o mesmo sujeito a fazer passeatas contra corruções – que está a praticar nada mais que uma ilegalidade visando à evasão fiscal.

Alguns, diante da objeção mais sutil à pratica da compra dos recibos, veem com um argumento formal que toma o desconhecido como não ocorrido. Dizem que têm os recibos em mãos e que chamados a dar explicação, terão êxito.

Ora, um delito que não se descobre não é um que não aconteceu. A possibilidade de êxito no axcobertamento de um ilícito não faz dele uma prática lícita.

Melhor andaria o Estado se suprimisse todas as deduções da base de cálculos do imposto sobre a renda das pessoas físicas. Obrigaria a pequena burguesia a abandonar sua oceânica hipocrisia e pendor pela mentira e pedir serviços públicos melhores com sinceridade. Hoje, ela não demanda melhoras sinceramente, porque nunca esteve sinceramente preocupada com serviços que não usa, que são coisas para os mais pobres.

A morte de uma estrela. Ou, tentativa de compreender os efeitos da decadência norte-americana.

Este texto foi originalmente escrito em abril de 2010.

Era previsível que o processo histórico acelerado cobrasse aos EUA algum preço. A decadência é real, no sentido de perda de soft-power. A influência é exercida diversamente; não mais organizada e nitidamente, mesmo que por meio da guerra, mas por intermédio do caos, da destruição levada quase como imposição de solidariedade na agonia que se avizinha. As faces mais destacadas do processo são econômicas. É lugar-comum fixar-se no econômico, como nas obviedades em geral. Mas a desordem é para muito além do econômico. Esse é o risco para o mundo em geral e para os sul-americanos particularmente.

Dois processos se distinguem, conforme sejam as estrelas grandes ou pequenas e suas mortes serão diferentes, portanto. Tanto as grandes, quanto as pequenas, vivem da fusão de núcleos leves, de hidrogênio e de sua variante, o hélio. Ambos são muito longos, na escala de biliões de anos, e têm desfechos grandiosos. Em comum, têm na raiz o esgotamento do combustível, mas as diferenças quantitativas implicam nas qualitativas.

Uma estrela pequena, como o sol que vemos, morre a caminho de tornar-se uma anã branca ou uma anã negra. No início do esgotamento do seu hidrogênio fundível, seu núcleo começará a contrair-se, sob a ação da enorme gravidade, mas ainda haverá fusão de hidrogênio nas camadas mais exteriores. Essa contração do núcleo acarretará um aumento da temperatura que se refletirá também nas porções externas e acarretará uma expansão da estrela.

Em pleno processo de morte, ela se expandirá, tornando-se uma gigante vermelha. As temperaturas do núcleo estarão tão elevadas que o hélio transformar-se-á em carbono. Então, acabando-se o hélio, o núcleo começará a esfriar e as camadas externas a se deslocarem ainda mais, terminando por explodirem numa vasta ejecção de matéria, que formará uma nebulosa de planetas.

Uma estrela grande inicia seu fim semelhantemente a uma pequena. O núcleo vai ficando sem hidrogênio e o hélio vai se transformando em carbono, por fusão, em decorrência das elevadíssimas temperaturas e pressões. Mas, aqui, após o esgotamento hélio, o processo continua, porque as massas são enormes. A fusão segue seu curso e o carbono torna-se em elementos mais pesados, como oxigênio, silício, magnésio, enxofre e ferro.

Tornado o núcleo de ferro, a fusão não é mais possível e, sob o efeito da gravidade – enorme à vista da massa e da densidade – ele se contrai tão violentamente que prótons e elétrons tornam-se em nêutrons. Essa contração rápida gera um tremendo aquecimento e a precipitação das camadas exteriores sobre o núcleo que, então, se aquece muito e explode, criando uma supernova. A ejeção de matéria é vastíssima e pode dar lugar à formação de outras estrelas. O que resta do núcleo pode tornar-se uma estrela de nêutrons, ou um buraco negro, conforme a quantidade de matéria.

Analogia, etimologicamente, é a falta de lógica ou, melhor dizendo, a negação dela. Forma-se com a partícula negativa grega a e a também grega lógica. Consagrou-se utilizar analogia para comparação entre situações distintas mas, sob algum aspecto, similares, visando-se a realçar pontos comuns entre o que não obedece a relações de causa e efeito. Não é um formato de argumento, portanto, limitando-se a ser um recurso comparativo.

Um domínio político-econômico de uma nação, ou grupo social assemelhado, morre, como morrem as pessoas, os bichos, as árvores e as estrelas. E pode morrer de maneiras diferentes, lançar matéria cultural e econômica de formas diferentes, manter ao final um núcleo maior ou menor.

O domínio norte-americano começa a morrer e interessa saber como o fará, porque esse processo pode destruir muitos vizinhos, mais e menos próximos ao moribundo de longa agonia. Morre porque a teoria que a vida não se apressa a confirmar – que a vida imita a arte, não as teses – finda por ser bastante exata até para teoria. Esse suporte teórico não foi propriamente construído por indução, mas por dedução. Aqui deixo claro que a mania de comparar os EUA à Roma do final da República e do período Imperial não me guiou, embora seja mais uma de várias analogias possíveis. Ou seja, um recurso comparativo, sem lógicas, que leva a muitas coisas plausíveis e outras nem tanto.

Não acabará de morrer amanhã, nem depois de amanhã, nem de cem anos, mas morre. As condições para ser a maior potência mundial são compreensíveis a partir de quanta pouca ciência econômica e social se disponha: ter a dianteira da inovação tecnológica, ter a moeda de conversão universal e, por conseguinte, a possibilidade de importar poupança, e a maior delas, poder evitar o desconto das promissórias.

O mesmo suporte teórico avaliza a percepção do início do processo de morte. Perder a dianteira da inovação tecnológica, perder o monopólio do meio de troca e ver a possibilidade de, no limite, evitar o desconto das promissórias ser difundido. Ora, o suporte teórico econômico ficou desacreditado não porque a teoria seja ruim, mas porque a prática não se dava segundo seus postulados, embora isso fosse constantemente afirmado. A teoria era e é boa.

Não é possível gastar ilimitadamente, nem investir também sem limites a partir de poupança externa. Assim como não é possível evitar inflação mantendo os aumentos da renda do trabalho inferiores aos aumentos de produtividade indeterminadamente, a partir da apropriação das produtividades crescentes de terceiros. Um dia, a conta deve ser feita segundo parâmetros ortodoxos.

Quando a falta de hidrogênio e a concentração do núcleo forem muito grandes, as explosões começarão e atingirão quem está mais perto, a América do Sul e a Ásia que ainda não gira totalmente em torno à China. Esses viverão grandes desestabilizações, políticas e econômicas, passearão da extrema direita à extrema esquerda, irão da falência à riqueza, em uma confusão tremenda.

As analogias com a morte do Império Romano são, sim, significativas, embora não me pareçam o protótipo do que pode acontecer. Roma, acabando-se, continuou na Grécia, como tinha, de certa forma, nascido dela. Bizâncio continuou por mil anos, falsa herdeira de Roma, mas na verdade um império grego meio orientalizado e meio eslavo, afinal. E a Europa não romana enriqueceu nos despojos romanos. A confusão não foi pouca, como sabe quem se acostumou com o termo idade média, até suave frente ao também comum idade das trevas.

Acontece que a China não é Bizâncio e se fosse não seria qualquer alento em comparação analógica. Pois Bizâncio tornou-se em outra coisa e não organizou a situação próxima ao morrente Império Romano. Nós, na América do Sul, seremos golpeados por jatos de matéria e confusão cultural resultantes dessa morte lenta e afinal explosiva, que nenhum outro centro de poder poderá evitar. A Europa, essa resolverá o problema com um pouco de empobrecimento, o que é traumático, mas menos que a confusão de quem ainda é pobre.

Ódio golpista e diferenças relativas de classes.

A imprensa conseguiu enfim criar níveis de ódio suficientes para se levar à frente o golpe de Estado fundado na difusa histeria moralizante. Semeou no terreno mais fértil: a classe média.

O interessante é que os sujeitos a serem instalados no poder estatal pelo golpe não são de classe média, nada devem a esse estrato social e nada farão por ela. A classe social onde fermenta o ódio golpista à maior temperatura perderá com o que patrocina.

Cega, não percebe ser instrumento de algo que beneficia a meia dúzia. Todavia, há algo sutil a ser notado. Mesmo que entre a névoa alguns consigam perceber que economicamente nada ganharão com o golpe entreguista, persistem a querê-lo. Por que?

Porque a classe média aceita piorar sua situação econômica desde que os pobres piorem mais. Desde que volte a ter servos mais baratos, que volte a sentir-se segura numa relação esclavagista, que volte a frequentar aeroportos e restaurantes vazios, ela aceitará retroceder também.

O cerne da coisa é a percepção da redução das diferenças relativas. Muita gente não apenas começou a consumir e a frequentar espaços nunca franqueados, como reduziu a atitude mental do servo. Ou seja, passou a perceber-se como gente, como cidadão.

Reduziu-se o número dos que por uma refeição ou roupas velhas empenha gratidão tão cara ao médio classista, que precisa deste conforto. Isso, essa redução das diferenças – não só econômicas, como sociais – o médio classista não perdoa.

Ele entra pra ajudar um golpe entreguista, certamente perderá, mas saíra contente desde que os pobres percam mais e retornem aos seus lugares de serviçais prontos a copiosos agradecimentos por uma refeição.

As contas para o golpe de Estado.

Essa deve ser a última tentativa de golpe de Estado, no Brasil, com forte apoio institucional dos Estados Unidos da América. Não creio que em quatro ou mais anos à frente possam empenhar esforços a ajudar seus empregados aqui, notadamente na imprensa, partidos políticos e judiciário. Exatamente por isso, será a mais feroz, talvez mais que a de 1954 contra Getúlio Vargas.

Não creio que a democracia resista. A pequena burguesia está totalmente cooptada pelo discurso mediático: parcial, superficial, moralista, histérico. Sob medida, enfim, para seduzir a camada pior de toda e qualquer sociedade: a classe média média. As classes baixas não tendem o que acontece e preocupam-se em pagar suas dívidas. As classes altas esperam para ver o que virá; quase sempre ganham…

O motivo é o de sempre: petróleo e Petrobrás; reservas e a empresa que detém o conhecimento da extração em águas profundas. Enquanto a empresa manteve-se relativamente pequena e não anunciou as reservas, a predação foi pequena. Depois que se tornou evidente a existência abundante de petróleo no Brasil e a Petrobrás ganhou tamanho, o entreguismo visou-a diretamente. Já o farsante Fernando Henrique Cardoso empreendeu a primeira tentativa de entregá-la, sem sucesso, contudo. Não houve tempo suficiente.

O golpe interessa a muitos e beneficia a poucos, algo que geralmente só se percebe ao depois e faz rir quem vê tantos escravos empenhados em se autoagrilhoar. A estrutura é nitidamente hierarquizada e dividida entre idealizadores e executores. Idealizadores são bancos, petroleiras, indústria bélica, farmacêutica, enfim, o grande capital articulado no esquema da propriedade cruzada.

Abaixo, vêm os sistemas institucionais públicos e privados. Abaixo do capital grande, o governo dos Estados Unidos da América e seus satélites não governamentais, que atuam para irrigar de dinheiro os subsistemas locais. Localmente, a burocracia judiciária, a imprensa e partidos políticos são agentes da desestabilização.

Os empregados locais, à exceção dos que desempenham funções políticas, fazem poucos cálculos e trabalham quase de graça, movidos, a maioria, apenas por inércia. O discurso da imprensa os embala e os leva até a ser contra si mesmos. Os funcionários públicos a serviço do golpe podem, em sua larga maioria, ser postos neste grupo dos suicidas involuntários, movidos pelo narcisismo, ignorância e vontade de servir a qualquer coisa que não seja o próprio país.

Para o grande capital, quanto mais rápido for o golpe de Estado, melhor. Quanto mais rápido puserem as mãos no petróleo e na Petrobrás, melhor. O problema é que parte dos agentes locais do golpe tem mais contas a fazer. Os parlamentares, especialmente, têm muitas contas a fazer no que se refere ao tempo exato da ação.

Esse problema do tempo deve-se a dois fatores, basicamente. Se derrubam a presidente antes da metade do mandato, geram eleições em que o derrotado das últimas será franco favorito. Se a derrubam depois da metade, assume o vice-presidente. Ora, os golpistas não são um bloco unido e o poder é muito sedutor, mesmo para quem se dispõe a ser preposto de interesses externos.

Poucos se dispõem a dar o golpe em benefício imediato de outros. Poucos acreditam nas promessas de sucessões, porque todos já mentiram muito e traíram-se reciprocamente várias vezes. O imediatismo decorre do nível de predação em que essa gente atua. Terão de chegar a um acordo para enfim executarem o golpe de Estado na forma político-jurídica.

Outro obstáculo, não ao golpe, mas à sua permanência, é Lula. Para o grande capital, pouco importa que Lula retorne eleito em 2018, depois do golpe, caso tenha acedido ao petróleo e à Petrobrás. Todavia, para os agentes executores locais isso é importantíssimo e não pensam dar um golpe de Estado para ficar no poder por dois anos apenas.

Por isso, tentarão a interdição judicial do Lula, para impedi-lo de disputar eleições em 2018. Quem pense que este jogo segue regras dirá que está minha afirmação é quimérica. Mas, quem pense que há regras, esse sim vive imerso em quimeras. O poder judicial fará o que lhe pedirem a imprensa e os partidos de oposição para dar mais um passo na destruição do Estado de direito. Qualquer pretexto servirá a a experiência da grande farsa da AP 470 provou ser possível encenar qualquer comédia e dar-lhe ares credíveis, com apoio da imprensa.

Se será possível evitar o golpe ou minimizar seus efeitos, não sei dizer. Mas, é condição necessária de qualquer tentativa reconhecer que o golpe de Estado está avançado e é patrocinado internamente pela imprensa e pelo poder judicial.

Dilma e os acordos e escolhas errados.

É inútil pagar a quem recebe e não entrega, bem como celebrar acordos com partes desleais. Há incompatibilidades incontornáveis e nem tudo está disponível para se resolver com dinheiro ou boa vontade e concessões.

A presidente Dilma parece ter-se deixado guiar pela tolice de crer nos acordos. Ordenou ou deixou que se adotassem medidas altamente concentradoras de rendas, a bem de agradar aos mais aquinhoados no Brasil, para que estes recuassem nos seus impiedosos, desmotivados e constantes ataques ao governo.

Eles não recuarão. A única coisa que os faria acalmar-se seria a privatização da Petrobrás, mas não creio que Dilma chegasse ao ponto do crime de lesa-pátria.

Subjacente a muitas parvoíces praticadas está a idéia de que a economia de um país nada mais é que a economia de um lar em escala ampliada. Esta crença, evidentemente muito apreciada – na proporção direta de sua estupidez – leva ao fetiche e histeria da austeridade, assumida como dogma.

Nesse sentido, o governo brasileiro, sem que o país viva qualquer crise relevante, nem cambial, nem fiscal, anunciou aumentos drásticos de impostos sobre a gasolina e o diesel, ao mesmo tempo que aumentou os juros pagos pelos títulos da dívida pública.

Não é preciso ter frequentado os bancos da escola de economia, de engenharia ou de matemática pura por quatro anos para perceber que as medidas visam a aumentar a arrecadação para exatamente pagar mais juros, na outra ponta, a meia dúzia de detentores de títulos.

A piorar, o principal aumento de imposto deu-se sobre a gasolina e o diesel, algo que todos têm que comprar, mesmo que na forma de um pacote de bolachas, porque tudo é transportado por alguma máquina movida a diesel.  Ou seja, o aumento de impostos foi profundamente regressivo, pois atingindo indistintamente a todos, atinge os mais pobres mais intensamente.

Para piorar, a medida foi erroneamente percebida como uma recomposição de preços dos combustíveis derivados do petróleo, como forma de ajudar as contas da Petrobrás que, segundo a imprensa, estariam ruins. Mas não foi isso absolutamente o que ocorreu, porque o aumento dos preços da gasolina e do diesel foi apenas nos impostos.

Além de algo regressivo e destinado a arrecadar para concentrar rendas mediante pagamento de juros a poucos, ainda alimentou o discurso de destruição da Petrobrás.

Os beneficiados com estas formas de retirar do todo para repassar a poucos não terão qualquer gratidão pelo agrado recebido do governo, na medida em que são predadores consumados e se creem merecedores de tudo. Não adianta agradar essa gente e desagradar a quantos escolheram este governo.

Para aumentar a arrecadação por impostos havia várias alternativas menos regressivas e que só desagradariam aos que já estão desagradados e tem raiva atávica do governo que melhorou mais a vida dos mais pobres.

Poderiam ser elevados tributos sobre a importação de espelhinhos, sobre cigarros e bebidas, poderia ser instituído um imposto sobre grandes fortunas, poderiam ser criadas novas faixas de imposto sobre a renda, poderia haver mais rigor nas aduanas. Seria interessante, por exemplo, abrir todas as malas dos passageiros provenientes de Miami…

Isso do parágrafo acima acirraria o ódio de quem já o nutre em doses elevadíssimas. Mas, seria menos ruim que desagradar o grande número e, pior, sem agradar realmente a maioria. O governo precisa conduzir-se com mais inteligência estratégica.

Compro, logo existo.

A proposição cartesiana, a estabelecer relação causal entre pensar e existir, sempre me pareceu alguma ironia, porque não me permito achar Descartes tolo. Acresce que ela é perfeitamente inversível, pois existo, logo penso, faz também sentido, à partida e sob perspectiva lógica formal.

Descartes era muito antropocêntrico, como seu século, e assim toda sua ontologia. Soa meio infantil, mas é inegavelmente uma proposição direta e servível. Ele não cogitava do fim da história, isto é certo…

Fato é que experimento mais uma das boas visitas à terra dos que se lançaram ao mar, há quinhentos anos, e se entregaram ao decadentismo mais lento e constante já visto. Não uso desta oportunidade para falar das minhas impressões, que não mudaram substancialmente.

Não venho com este texto para comentar alguma beleza, alguma sutileza percebida, alguma coisa interessante ou original. Isto aqui tem a ver com deselegância, brutalidade, novo-riquismo. Tem a ver, portanto, com a classe média alta e alta brasileiras. Elas são piores fora do Brasil que nele, o que inicialmente soa contraditório.

Fora, estão mais à vontade e não conseguem evitar o destaque, por contraste ao que circunda. Não é uma questão de ser percebido por características étnicas ou pelos trajos. Essas coisas estão já bastante baralhadas e, relativamente aos trajos, a classe dominante viajante brasileira é vanguarda, ou seja, aquilo que está a um átomo de ser ridículo.

A questão é: os brasileiros, no exterior, compram tudo quanto vêm pela frente. Precisamente os estratos sociais que nutrem mais ódio contra o governo atual, que lhes melhorou sensivelmente as condições econômicas, são os que mais viajam e mais compram. É superlativo o consumismo desta gente e totalmente diversificado.

É de tal maneira brutal, que constrange até alguns que vendem e ganham a vida com isto, posto que a ausência de gosto e necessidade de afirmar a posse de dinheiro sobrepõe-se a tudo. Há setores em que o comprar e vender envolve um jogo de regras conhecidas, em que se fingem curiosidades e se afirmam refinamentos, além de se discutirem preços. Conversam vendedor e comprador em certos ramos do comércio, a valorizarem a transação.

Com a invasão brasileira isto não acontece. A compra é um ato isolado, a ser repetido à exaustão. Tanto faz que sejam souvenires comuns, daqueles que se vendem nas áreas mais turísticas, quanto sejam roupas, relógios caros e ruins com marcas de roupas, cosméticos, bebidas, eletrônicos, computadores, qualquer coisa, enfim.

A preparação que antecede a ida de um grupo alto médio classista brasileiro ao aeroporto, depois de suas jornadas aquisitivas, é coisa a ser observada ao menos uma vez, que mais de uma tende a intoxicar ou deprimir. Em frente ao hotel está o ônibus que conduzira os humanos ao aeroporto; em frente ao veículo, um guia atarefado, a pedir ordem, a lembrar que o avião não espera…

Descem as malas e isto é o que importa; é a imagem que gostaria, se o talento fosse suficiente, de pintar com palavras: a descida e acumulo das malas no saguão do hotel e, depois, na fila de cheque do aeroporto.

Há velhotas a conduzirem malas de 40 Kg, algo prodigioso que me faz pensar no descompasso entre os limites mentais e os físicos. O consumo, a posse do que foi avidamente consumido, estende muito os limites físicos e permite que estas malas tão grandes quanto um pigmeu sejam empurradas, roladas e afinal cheguem aos seus destinos.

Claro que ainda há destes viajantes mais ligados ao século XIX e que necessitam de serviçais para carregar suas bagagens dignas de mudanças definitivas. Terrível é não gratificarem os serviçais, coitados deles que pensavam ter saído da escravidão até depararem hordas de brasileiros neo ricos ainda a supurarem as feridas narcísicas.

Alguém que perca seu tempo a ler este retrato do feio poderá obstar que as personagens aqui comentadas são mais universais que se supõe. Ao que direi previamente que há elementos a provar a originalidade.

A franquia de bagagem por peça, nos voos saídos do Brasil e com retorno a ele, se comprados os bilhetes no Brasil, é a maior do mundo: duas peças de até 32 Kg! Esta massa, se se compuser de roupas e outras coisas de higiene pessoal, é suficiente para uma pessoa comum viajar seis meses ou mais. Não se entregue ninguém à tolice de achar 64 Kg de roupas pouquinha coisa.

A acomodação destas dúzias de volumes pesadíssimos no veículo que conduzira o homo qui emit leva mais tempo que o habitual, quando se trata de conduzir outras variações do que Lineu chamou generosamente homo sapiens. A chegada à aerogare, contudo, é o momento triunfal!

Uma simpática funcionária da companhia aérea perguntava-me se as coisas estão assim tão caras no Brasil. Compreendi perfeitamente. Respondi-lhe que sim, estão mais caras que lá, mas nada que justifique um furor aquisitivo tão desenfreado e tão difuso. E nada que justifique o pagamento por excesso de bagagem, algo frequente a despeito da enorme franquia para o homo qui emit.

Cobrar do alto médio classista brasileiro a taxa por ter excedido o imenso limite de peso para as bagagens é um martírio para o coitado do funcionário da companhia aérea. Acontece que muito candidamente o pequeno-burguês brasileiro não tem em mente que seus limites são superiores aos de todos os demais cidadãos do mundo. Eles creem-se aquinhoados muito naturalmente por algo que não poderia ser diversamente.

Aqui outro ponto interessantíssimo: a classe dominante – ou, melhor dizendo, os servos intermédios da classe verdadeiramente dominante –  não percebe as suas diferenças relativamente a grupos de outros países, que se encontrem mais ou menos nas mesmas condições sociais e econômicas nas suas origens.

Acha-se igual ou melhor, o que revela incapacidade brutal de ver-se, de ver os outros, de perceber diferenças e semelhanças. A gente brasileira que viaja para fora é, insofismavelmente, pertencente aos estratos mais altos da sociedade. Não há bilhetes de menos de 1000 euros, exceto se o destino for a Argentina. Isto não é pouco dinheiro e há que se lembrar dos outros milhares que serão gastos com bugingangas.

Pois esta gente é totalmente autorreferente, ignorante, consumista e desprovida de gosto. E acha-se mal posicionada na escala social brasileira; e acha-se merecedora de mais dinheiro; e lamenta não poder ter mais escravos domésticos; e diz gostar de ir à Europa…. Para quê, afinal?

O espelho de Narciso e o suicídio involuntário.

A pequena-burguesia brasileira foi levada a crer que é importante, ou seja, que é o centro das atenções, o ponto em torno a que tudo gira, que suas opiniões são importantes e principalmente que ela tem algo relevante a dizer sobre tudo, como sói acontecer com Caetano Veloso. Essa obra de ilusionismo deve-se à imprensa mainstream, naturalmente.

Esse tipo de fantasia ajuda bastante a imprensa, na sua cruzada incessante contra qualquer governo que desconcentre, ainda que pouco, a apropriação de riquezas no Brasil. Além de imbecilizar as classes sociais suas clientes, a imprensa consegue aumentar a já enorme auto-referência. O narcisismo exacerbado, por seu turno, retroalimente a imbecilização.

As classes médias altas acham que ganham pouco dinheiro e querem que o dispêndio com programas sociais para os mais pobres seja-lhe dirigido. Por isso, com raivinha da atual presidenta da República, marcham em ordem unida com as outras duas candidaturas viáveis: a de Marina Silva, financiada pelo banco Itaú, e a de Aécio Neves, da direita de longa data e não aventureira.

Acontece que nenhum dos dois, nem a do Itaú, nem o queridinho da imprensa, suprimirá, caso eleito, dinheiro de programas sociais para entregá-lo às classes médias altas. Esse dinheiro, a parte do que for suprimido, será destinado ao grande capital, nomeadamente por meio do pagamento de juros remuneratórios de títulos públicos.

 Mas isso, que não é tão difícil de perceber para quem pensa sem se colocar como centro do mundo e sem recorrer a veículos de imprensa, não ocorre à maioria da pequena-burguesia e principalmente àqueles que são funcionários públicos. Mais extraordinária é a ausência de memória desta gente, que apagou os registros de como foi tratada no exemplo anterior mais próximo à candidata do Itaú e no exemplo eloquente que foi o governo do patrono do queridinho da imprensa.

Nada obstante, o ódio a que foi conduzida larga parcela da pequena-burguesia pela imprensa brasileira cegou-lhe totalmente a vista e obstou-lhe qualquer rasgo de sensatez, ainda que eventual e rápido. Se é verdade que o exemplo ensina, também é que se lhe esquece rapidamente…

Assim, pensando com o fígado e alguns poucos neurônios, muitos votarão contra si mesmos e contra o maior número, porque acham-se injustiçados por não receberem o que se acham merecedores, como centro do mundo que são.

A ocultação da ideologia por meio da objetividade fraudulenta. Narrativa da direita.

Os números, todos sabem, dizem o que quisermos que eles digam. A direita, por outro lado, sente enorme dificuldade de abrir-se na sua coloração ideológica própria, numa espécie de vergonha mal-disfarçada. Precisa então construir uma narrativa que pareça ideologicamente neutral, ou seja, que remeta apenas a aspectos gerenciais, supostamente objetivos, de uma realidade que é naturalmente imutável.

Precisa, mais que tudo, ocultar e negar a existência de classes com interesses diversos e conflitantes, tanto relativamente à divisão e apropriação das riquezas, quanto culturalmente. Precisa, vistas as coisas por outro lado, construir e servir-se de um discurso de naturalizada objetividade e negar as experiências bem sucedidas de alteração das desigualdades.

Resulta que a pequena burguesia urbana, profundamente descontente com a melhora dos que estão abaixo de si e alimentada pela imprensa mainstream, reproduz um discurso de objetividade fraudulenta, que parece tratar de um mundo onde inexistem opções guiadas por ideologias.

Quem escuta essa narrativa fria e aparentemente sem juízos valorativos percebe que ela foi purgada de qualquer elemento de escolha, como se opções não houvesse e tudo se limitasse a aspectos gerenciais. Eis o grande fetiche da narrativa direitista: tudo é questão de gestão.

De carta forma, a base deste discurso é já meio antiga, pois cuida-se do triunfalismo que emergiu no final da década de 1980, quando alguns aspirantes a profetas anunciaram o fim da história. O fim da história seria o resultado de um consenso nunca havido, em que o liberalismo absoluto ter-se-ia afirmado como verdade revelada.

A desonestidade dessa gente saltava aos olhos já naquela época, porque nem mesmo o tal liberalismo tem a realidade que nos papéis é fácil aparentar. Realmente, os profetas liberais nunca abdicaram de apropriar-se do Estado para que seu liberalismo funcionasse na medida correta de apropriação, o que significa dizer sempre em maior medida.

Discutem-se números, indicadores, resultados de balanços de empresas estatais, variações da bolsa de valores, estatísticas, tudo quanto possa parecer sintoma de uma coisa natural a funcionar melhor ou pior conforme a administração que tenha. Isso, todavia, além de mesquinho é fraudulento.

Mesquinho porque é micro demais e nega o planejamento e possibilidade de alterar-se a realidade social. Fraudulento porque os números, a depender do ângulo porque se os vejam, dizem qualquer coisa. No fundo, trata-se de investir contra os movimentos de desconcentração de rendas com um discurso que não pareça ideológico.

Tudo que for aparentemente sem valor ideológico, que for terceira via, que for apolítico, que for gerencial é discurso de direita. Isso fica evidente porque o núcleo do discurso direitista é a instalação de um modelo que só resulta em aprofundamento das desigualdades e não sou eu que o digo de forma inovadora, é a história que o prova fartamente.

É compreensível a dificuldade que se põe para um discurso sinceramente direitista, porque a enorme maioria das pessoas não se sentirá atraída por uma proposta de empobrecimento, nem mesmo se ela vier cuidadosamente embalada em palavras complicadas. Daí a necessidade de se recorrer à objetividade fraudulenta e acusar os promotores da redistribuição de gestores ruins.

Interessante é perceber como a pequena burguesia que repete o recebido da imprensa sem pensar incorre em contradições a cada dois ou três meses. Fosse eu da imprensa e fosse mais refinadamente pérfido, teria muito prazer em divertir-me assim com as classes médias, levando-as a dizerem as maiores asneiras e a desdizer-se mês depois com outra asneira ainda maior.

Se se anuncia uma redução de um preço administrado, de um serviço prestado por alguma empresa concessionária de serviço público, correm todos a dizerem que isso é ruim porque a empresa perderá dinheiro e prejudicará seus acionistas! O sujeito vai pagar menos, mas reclamará disso porque foi ensinado que isso é ruim, embora seja… bom.

Pois bem, se este mesmo preço sofre uma elevação alguns meses depois, isso é ruim, o que é mesmo óbvio. Mas, isso é ruim como uma enviesada confirmação da profecia anterior de que baixar o preço também era ruim. A imprensa joga o jogo do ganha-ganha e leva seus alunos a repetirem felizes e lépidos as contradições mais atrozes.

Essa crítica mediática que sempre desagua no ruim, mesmo que duas coisas estejam nos extremos de uma escala – e pensemos no preço da gasolina, por exemplo – revela que se trata puramente de ideologia. Não há objetividade em ser contra a redução do preço da gasolina e contra o posterior aumento pelas mesmas razões. É ilógico para qualquer pessoa que pense com sua própria cabeça.

Detenho-me neste particular dos preços administrados e concernentes a empresas públicas porque o principal objetivo da direita brasileira é vender duas jóias cujo capital ainda é maioritariamente público: a Petrobrás e o Banco do Brasil.

Para vendê-los, caso a direita tenha êxito nas presidenciais de outubro, será  necessário algum discurso, porque não haverá condições, nem coragem de simplesmente vender porque é melhor entrega-las que receber os dividendos que repassam ao Estado como detentor da maior parte do capital social. É preciso dizer que estas empresas são um mau negócio para o Estado, mesmo que isso não faça qualquer sentido, principalmente quando se pensa na Petrobrás.

 Semelhante acontece com programas e órgãos voltados à segurança social e a ações redistributivas. É moda falar das contas da seguridade social como se se tratasse de uma sociedade anônima exploradora de atividade econômica, ou seja, como algo que persegue lucro. Aqui a fraude é enorme, porque os objetivos e a natureza dos órgãos e programas são totalmente esquecidos na construção da narrativa.

Esta narrativa aquela velha estória do Estado mínimo, que é recontada com tênues variações em todas as latitudes e em todos os tempos. Esse Estado só deve ser mínimo para as maiorias, porque ninguém da classe média para cima sobreviveria nos mesmos padrões sem parasitar o Estado de alguma maneira, seja por isenções fiscais, seja por salários, seja por empréstimos a juros baixos e mil outras formas criativas.

Manipulação mediática.

Primeiramente, deve-se dizer que a imprensa mainstream tem lado, trabalha para os interesses plutocráticos e não leva a sério a tolice da imparcialidade. Não é indústria de divulgação de fatos, mas de construção de discursos de suporte político dos grupos que defende.

A imprensa mainstream não conhece realidade e não trabalha com qualquer aspecto de empirismo. Ela constrói discursos com finalidades precisas, à revelia de qualquer coisa que se aproxime do que se chama realidade. Na verdade, ela desconstrói a realidade nessa sua indústria de construí-la segundo conveniências propagandísticas.

A imprensa nem educa, nem informa, embora esta segunda finalidade ela a declare a primordial. Não é. Ela ensina a pensar de uma certa forma e liquida as possibilidades de qualquer outra forma de pensamento. Fornece os pontos e contrapontos pré-estabelecidos, extremos que delimitam o vai-e-vem esquizofrênico dos seus dominados.

Afirma-se liberal, mas não é. Nem é indiferente ao Estado, nem contra ele. Ela depende do Estado ser leniente com a concentração e com a fraude e depende dos recursos do Estado, usurpados imperialmente da maior parte da população. Ela, mesmo quando opera no espaço da concessão pública, como dá-se no uso do espectro de rádio difusão, preda os recurso públicos em troca de publicidade.

É necessário, para a imprensa, que avance a imbecilização sem recuos. Isso não é somente o estabelecimento de baixos níveis de cultura formal, mas a incapacitação para qualquer pensamento autônomo. Este último é o mais destacado meio da imprensa mainstream e sua finalidade precípua é defender a plutocracia.

A manipulação das massas tem de ser bem feita, porque a missão de capturar a democracia implica levar as maiorias a votarem contra seus próprios interesses. Em condições ideais, ou seja, abstraindo-se de fatores externos, seria missão dificílima, daí que a primeira coisa a ser feita é inserir muitas coisas na vida do sujeito comum, todas elas estranhas a ele e às suas circunstâncias, e fazê-lo crer que são todas muito pertinentes à sua vida.

Isso é técnica de dissolução de identidade, tanto pessoal, quanto de classe. Ampara-se no fornecimento de uma moralidade que supostamente é invariável e permeia todas as classes. Nisso há fraude porque a plutocracia, o 01%, não tem moralidade nem honra, as pessoas de exceção tem honra e não moralidade e o restante, da burguesia para baixo, tem moralidade, mas ela é fortemente cambiante.

A par com o fornecimento de uma moralidade supostamente estável e universal – que fará o papel de critério de julgamento de tudo – despejam-se quantidades imensas de informações dispersas, incompreensíveis e, principalmente, inúteis como pontos soltos. O manipulado saberá que houve um abalo sísmico em Sumatra e logo depois que o exército de Israel matou palestinos com munições de fósforo.

Incapaz de relacionar as notícias com qualquer conceito ou abstração, pois não sabe o que são acomodações tectônicas, nem o que é sionismo, terá recebido dois fatos desconexos, atemporais, sem relações com quaisquer outras coisas. Apenas entulho informativo a baralhar as idéias, ocupar espaço nas poucas prateleiras cerebrais e conduzir à desintegração da identidade.

Daí advém a incapacidade de distinguir o relevante do irrelevante, porque tudo é lançado sucessivamente, coisas depois de outras, em desconexão evidente. As diferenças estarão somente na maior ou menor ênfase moralista dada a uma ou outra notícia. Assim, se as coisas apenas se diferenciam a partir da ênfase moralista, tudo é igualmente relevante ou irrelevante, ou seja, a relevância é dada pelo emissor, pois o recetor é já incapaz de perceber diferenças.

Outros característicos da imprensa mainstream no campo tático – porque os acima referidos são mesmo estratégicos – são oportunismo e mesquinheza dignas de um bom funcionário público. Não há pudores em cambiar sentenças taxativas da noite para o dia, assim como não há limites mínimos para desfaçatez e ataques pessoais baseados em baixezas.

Qualquer análise da imprensa mainstream que não esteja comprometida com ela própria, ou seja, com o objeto da análise, concluirá que lhe falta absolutamente algo: coerência. Não haveria nisso problema algum se não insistisse a imprensa nessa estória de coerência, como a criar um novo e universal valor a ser cultivado. Coerência é uma mistificação que parte da suposição absurda da existência da liberdade sempre e incondicionada e, portanto, algo sem muito sentido.

Ocorre que a imprensa cultua e repete o termo continuamente, ao mesmo tempo em que professa uma incoerência profunda. Guiada por oportunismo de fazer inveja a funcionário público, ela é capaz de esgueirar-se por todos os lados e apropriar-se de coisas que atacava um dia antes. E o público recetor, anestesiado, vê a banda passar… O caso que me vem à mente é precisamente o do Mundial de Futebol do Brasil.

A imprensa mainstream brasileira, o que significa dizer basicamente Rede Globo, TV Bandeirantes, SBT, Rede Record, Grupo Abril, Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e Diários Associados atacou a realização do mundial de futebol energicamente, como forma de atacar a Presidente Dilma. Eles são contra o governo e isso não é segredo para quase ninguém, até para quem não pensa com a própria cabeça.

Associaram fraudulentamente toda a realização do Mundial ao governo, desde a construção de estádios até a mentirosa isenção tributária dada à FIFA. Disseram que haveria o caos, que os aeroportos seriam ante-salas do inferno, que os transportes não funcionariam, que seria a vergonha nacional frente a um mundo abismado com nossa incompetência total.

Previram que haveria manifestações generalizadas contra o mundial e mentiram muito sobre a construção dos estádios – muito até pelos padrões elásticos da imprensa brasileira – tanto quanto à origem dos dinheiro, como quanto aos preços e possibilidades de atraso nas conclusões. Não houve tempo nem meios de desfazer as mentiras puras e simples, mas o discurso do caos e do fracasso mostrou-se totalmente suicida e informado pela realidade.

Eis então que o mundial é um sucesso, os aeroportos funcionam muito bem, os estádios estão prontos e são muito bons, estão sempre repletos, assim como hotéis, bares e restaurantes. Ou seja, o caos não houve, a vergonha não houve, protestos houve meia dúzia de pequenos burgueses menininhos satisfeitos. O que faz a imprensa? Cambia o discurso imediatamente e só fala do mundial, agora totalmente dissociado do governo.

Se houvesse fracasso e caos, seriam imputados ao governo; se há êxito, foi por conta de qualquer coisa sobrenatural ou mesmo uma novidade de efeito sem causa. Seria ingenuidade demasiada esperar qualquer pudor desta gente, mas esses câmbios são muito súbitos e embutem algum risco de se perceber o oportunismo que abre a porta a tamanha incoerência.

Evidentemente que se a seleção brasileira afinal não for campeã, retornara o estabelecimento de fantasiosas relações de causa e efeito, a por no caldeirão da frustração o governo. Isso é previsível como o escurecer após por-se o sol. Assim como previsível será a volta dos ataques aos estádios e a acusação de não conclusão de obras.

Eles nunca se preocuparam com mundial de coisa nenhuma, exceto pelo que ganham a vender espaços publicitários, nem nunca se preocuparam se foi ou não gasto dinheiro público em estádios, se haverá ganhos em infraestrutura depois, se muita gente ganhou dinheiro com serviços, nada disso. Eles estão preocupados em servir aos desígnios da plutocracia e evitar a qualquer custo a reeleição de Dilma, porque representa um pouco de redistribuição na apropriação das rendas.

E qualquer meio serve, por mais vil, mais incoerente, que seja.

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