Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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A narrativa é mais poderosa que a experiência e que o interesse.

É impressionante como, nos confrontos entre as palavras e a experiência direta, a palavra frequentemente sai vencedora: muitas pessoas acreditam no que lhes é dito, e não naquilo que seus próprios sentidos indicam.

As linguagens do Cérebro, Horace B. Barlow

 

Todas as classes sociais defendem seus interesses. Uma delas nunca se confunde, nem discursa a favor do próprio suicídio: a dominante. Nas outras, as posturas são cambiantes e há o flerte com a prática real do discurso contra si mesmas.

As classes baixas são variadas; a média é muito mais uniforme nas suas contradições. O poder do 01% é exercido por meio da classe média, a mais tensionada e hipócrita de todas. Assim, ela tem funções demais, porque é a corrente de transmissão do poder do 01% e precisa simultaneamente emular padrões da classe altíssima e conter as aspirações das classes baixas.

O medo e o moralismo vicejam na classe média, que é relativamente pequena no Brasil, porque ela não se define adequadamente somente pelos padrões de rendas e consumo, mas por outras variáveis também. Ela, como a dominante, define-se por herança, ainda, mais que qualquer outro fator. Herança de hábitos, de modos, de linguagem, de bens e rendimentos.

Cresceu muito a classe baixa ansiosa por consumir bens duráveis e não duráveis e isso foi bom, porque além de ser anseio legítimo de um grupo acostumado às privações, impulsionou o mercado interno. Mas não fez destas pessoas médio-classistas no sentido próprio, que é aquele a implicar uma identidade que transcende a aquisição de capacidade de pagamento.

A classe média propriamente dita elaborou uma narrativa para ser levada a esses emergentes, com basicamente duas mensagens: 1) se vocês melhoraram não foi por nada devido ao Estado, mas por vossos próprios méritos e 2) vossos méritos esgotaram-se e assim não se vai adiante. Claro que esse discurso não vai em embalagem tão crua quanto enunciado acima.

As camadas médias fornecem mão de obra técnica especializada para fazer funcionar o poder real. A burocracia estatal e os níveis médios e altos das grandes corporações são lugares cativos da classe média. Os filhos dela estudaram, comeram, foram estimulados a ler e a escrever, tiveram onde dormir, tiveram adequada prevenção de doenças. Tudo isso põe por terra o mito da meritocracia, porque evidencia a inexistência de igualdade à partida entre classes diferentes. Claro que há competição dentro da classe, mas há bastantes lugares cativos.

Dizer que o Estado é um mal é lugar-comum nos discursos elaborados pelos intelectuais, acadêmicos ou não, médio classistas, que alugam suas penas ao 01%. É algo essencialmente tolo, porque tanto os patrões do 01%, quanto a própria classe média vivem da predação do Estado, que põem a seu serviço para predar o povo.

Caso isso que chamam redução do Estado seja posto em prática, não haverá problemas para o 01%, que manterá formas mais sutis de predação. Todavia, se isso implicar redução de número de funcionários e de contratos pequenos e médios, a classe média sofrerá com isso, mesmo que tenha defendido as medidas.

O discurso, na essência, visa a dar legitimidade à redução de despesas com programas sociais, como os de renda mínima. E, contra essas despesas, as cabeças pensantes da classe média dispõem-se a elaborar discursos meio científicos, supostamente elaborados, para serem repercutidos na imprensa, basicamente. Ocorre que esse processo anti-Estado, como todos os que se baseiam em falsas premissas e histeria de cunho moral, pode sair do controle e assumir uma dinâmica mais concentradora que o inicialmente planejado.

O que se observa nestas tensões entre interesses de classes e nas narrativas que o poder utiliza para pregar medidas concentradoras é que há muita tendência ao suicídio involuntário. O sujeito apropria-se de um discurso que é essencialmente contra seus próprios interesses, sem se dar conta disso, porque foi ensinado a não pensar ou a pensar a partir de dados e conclusões pre fornecidos.

Na sofreguidão de se distanciar ou, ao menos, manter a distância pelos de baixo, a classe média trabalha para os de cima e produz e reproduz narrativas que, ao final e ao cabo, são contra ela mesma. Em determinado momento, o sujeito passa a acreditar naquilo que foi produzido por ele mesmo como um trabalho encomendado. Ele acredita na narrativa mais que na realidade sensível. A partir deste ponto, não adianta mostrar dados, números, nem lembrar que existe história…

Você sabe atirar?

A esquerda de academia sabota a que assume riscos reais. O que eles produzem já existe, reinventam a roda cotidianamente, fazem auto celebração e menções cruzadas, vivem do Estado, falam bem ou mal dele conforme a ocasião.

Não ganham eleições. Mas, sentem-se à vontade para tentar extorquir algo de quem as ganha. E se a extorsão não resulta em tudo que querem, estão disposto a emprestarem suas penas para a segunda volta da chantagem. Se, afinal, der errado, recomendam mea culpa a quem deu a cara a tapa e pulam fora.

Uma reunião dessa gente é um campeonato de currículos. Cada um que fala faz a declamação do resumo de sua tese de mestrado ou doutorado, ou tudo junto. Não saem das suas teses e ficam a celebrar-se interminavelmente.

Como todo esquema clerical, são perfeitamente compreensíveis a partir da luta de classes. Estão nas classes superiores e, portanto, contra as inferiores, pouco importando a embalagem em que porão seus reais anseios.

Não assumem quaisquer responsabilidades, certos de que ganharão assim ou assado. Têm muita razão em pouco temer, porque nada ameaçam. Não há que temer, nem por razões formais, nem materiais. Acontece que não era necessário ser além de irresponsável oportunista de funeral.

Lula foi o maior presidente que teve o Brasil. Seus oito anos de governo melhoraram as vidas de todos, sem exceções. Ele é um capitalista esclarecido que apostou no mercado interno e na aliança com a grande burguesia nacional. Vem da classe baixa e isso é inédito.

É claro que a esquerda da academia não o tolera. Ele assume riscos e encara responsabilidades. Sacrifica no altar da academia como em qualquer outro, sem mais reverência aqui que acolá. Não tem graduação, nem pós-graduação; não estudou metodologia, não é epistemológico. Ele é apofático. Não é acadêmico, não é comunista, não é direitista, não é escravo da Casa Grande, mas fala com ela.

A esquerda da academia quer mandar nele, todavia. Agora que ele é o alvo de todo o golpismo enraivecido, a esquerda de academia recomenda-lhe penitência. Recomendam-lhe estudar a situação, com ênfase nesse termo estudar, como a lembrar que formalmente ele não estudou. Eles vingam-se.

Dilma Rousseff estudou. Mas, além de ser economista, ela sabe atirar. Isso não agrada o clero, pois ela tem uma competência que denuncia a incompetência do clero: ela já brigou a briga de verdade, algo que o clero nunca fez, pois terceiriza os limites, terceiriza a violência. Mais que temer, sentem repugnância pelo real.

Quem ganhou quatro eleições seguidas não foi qualquer integrante do clero e, portanto, não foi o discurso do clero. Lula é o branco que assim não é percebido na África, onde branco e dominador são sinônimos. Foi ele a ganhar duas eleições presidenciais, depois de perder três. Suas vitórias não foram vitórias do clero, embora um e outro clerical lhe fizesse vênias.

Quem ganhou foi o operário que nasceu pobre e não estudou. Agora, quem ganhou foi a que estudou mas brigou; a que sabe atirar, algo muito mais difícil que alinhar notas de rodapé e citar os citandos corretos.

Não há perdão para eles, obviamente. O clero dirá que não ganhou porque não quis disputar, porque sua posição é alheia e equidistante, é teórica. Dirá que a massa não compreende o discurso clerical, ou seja, que não compreende a verdade, posta em linguagem dos deuses.

O clero não ganha eleições; nem com a ajuda da imprensa. Mas, tem raiva e tem espaço para externa-la.

O dr. Stanley Milgram tem algo a ensinar ao contra-golpe.

Além das experiências e posteriores teorizações dos professores Roger Sperry e Michael Gazzaniga com secção dos corpos calosos e suas assombrosas consequências em termos de consciência e vontades autônomas, as investigações do doutor Stanley Milgram parecem-me o que há de mais interessante em termos de humano.

O doutor Milgram elaborou o experimento em obediência à autoridade, na Universidade de Yale, a partir de 1964. Dez anos depois, descreveu os experimentos e avançou hipóteses de conclusões no livro Obedience to Authority: An Experimental View.

Feliz ou infelizmente – mais provável o segundo advérbio – a coisa veio a seguir ao julgamento de Eichmann, após sequestro dele e condução para Jerusalém. Infelizmente porque tudo que se associa, por mais tenuemente, ao holocausto dos judeus entre 1940 e 1945 torna-se complicado, mais ou menos proibido e passível de interpretações axiomáticas. Mas, deixemos Eichmann para lá.

A experiência, em termos de equipamentos e tecnologia envolvidos, era muito simples. A encenação que ela implicava, também. Nem tão simples são as conclusões que se podem extrair, notadamente se nos detirvermos, ao depois, no que pode significar autoridade, no alcance deste termo, no que a constituiu e suporta.

Basicamente, três pessoas estavam envolvidas no experimento: o pesquisador e dois voluntários supostos. Destes últimos, um faria o papel do educador e o outro do aluno. Milgram convocava os voluntários por meio de publicações em jornais e oferecia uma módica recompensa – quatro ou seis dólares, não sei ao certo – para quem se dispusesse a participar da experiência científica. O propósito declarado era investigação sobre memória.

À partida, no recinto do experimento, o pesquisador trajado adequadamente de cientista, com jaleco branco e a indefectível gravata, recebia os dois voluntários; um dos voluntários era um ator, circunstância desconhecida do voluntário real. Em seguida, apresentava ao real voluntário dois papéis dobrados que seriam a forma de sorteio dos papéis. Ambos os papéis continham o nome educador. Sempre o voluntário real seria o educador, portanto.

O experimento consistia no seguinte: educador e aluno ficariam em salas diferentes, sem se verem. O educador leria para o aluno uma série de substantivos relacionados a adjetivos. Vinte pares associados, como, por exemplo, céu azul, vento fresco, maçã vermelha, carne apetitosa, etc. O aluno deveria prestar atenção à leitura inicial e pausada dos pares de substantivos e adjetivos relacionados.

Depois, o educador diria ao aluno, por um sistema de comunicações entre as salas diferentes, substantivos da lista, a que o aluno deveria responder o adjetivo correlato, conforme ao que tinha ouvido na leitura da lista toda, anteriormente. A cada erro do aluno, o educador deveria aplicar-lhe um choque elétrico que era incremental de 15 em 15 volts, a cada resposta errada, até ao máximo de 450 volts, choque potencialmente mortal. O educador, isto é essencial, não sabia que o aluno era um ator e que os choques na verdade não ocorriam.

Muitas vezes, antes do início do experimento, era dito ao educador que o aluno sofria de alguma cardiopatia. Os equipamentos dispunham de um sistema que a cada choque, conforme a intensidade, reproduzia gritos previamente gravados. O pesquisador, com ar fleumático e importante, ficava ao lado do educador que perguntava e aplicava choques punitivos no aluno.

Contrariamente ao que esperavam cientistas previamente ouvidos por Milgram, na primeira rodada de experiências, 65% dos voluntários no papel de educador foram capazes de chegar ao choque máximo de 450 volts…

A enorme maioria chegava ao ponto extremo com sinais imensos de estresse e desconforto psíquico. Hesitavam, ficavam aturdidos com os horríveis gritos dos alunos que supostamente levavam os choques, mas iam adiante. O pesquisador ao lado do voluntário educador, a sinais de hesitação e conflito interno, mantinha postura compenetrada e instava o educador a continuar, com frases padrões como: por favor, continue; a experiência necessita que você continue; é totalmente essencial que você continue; você não tem alternativas, deve continuar.

Essa experiência foi replicada em outros locais com resultados muito pouco divergentes. Os voluntários eram capazes de punir e infligir sofrimentos imensos a terceiro sem qualquer outra razão além da obediência à autoridade, representada pela presença do cientista. Há uma variação significativa na ida aos máximos em função da proximidade física do cientista e do educador; isto é relevante.

Observou-se uma redução da disposição a punir severamente quando o cientista estava mais distante fisicamente do educador ou quando o instava menos a prosseguir. A obediência é uma relação dinâmica, percebe-se. Com o cientista fleumático, de poucas e objetivas palavras, perto e pronto a instar o educador a seguir adiante, este continuava a fazer sofrer o aluno, mais e mais, mesmo em tensão psíquica.

O senso-comum rápido propôs a conclusão meio simplista: a obediência à autoridade suplanta os valores morais. Mesmo não apreciando nada que se sirva do termo moral, tenho de dizer que esta conclusão tem sua verdade. Mas, há mais que isso. Inicialmente, há para além disso: o conflito, em muitos casos, cessa. Um dos pólos da comparação extingue-se e há apenas obediência.

Em certo momento e em alguns casos, não se vai adiante a despeito do conflito entre obedecer à autoridade e valores morais, prossegue-se porque o conflito foi superado. Não há mais isto ou aquilo. Acaba-se a relação, na medida em que um dos pólos de comparação já foi excluído. Esta exclusão é basicamente decorrente da cessação do pensar autônomo. Deixar de comparar é deixar de pensar.

Na esteira da experiência e das hipóteses e mesmo conclusões avançadas pelo próprio Milgram e outros que se aventuraram a teorizar sobre a experiência, surgiu, claro, outro simplismo enviesado. Numa correlação ideologicamente óbvia demais, a autoridade foi imediatamente associada ao Estado.

Ocorre que o Estado não é, hoje, nem de longe, a maior autoridade a incidir nas vidas das pessoas, para desespero de quem ler Orwell como se tivesse sido escrito hoje ou há poucos trinta anos. Orwell é genial, mas 1984 é uma teoria em que no lugar do Estado pode-se por outra coisa, conforme mais adequada segundo o tempo. A teoria é boa, mas as personagens não são estáticas.

Muito mais que o Estado, a ciência, a imprensa e o tribunal são autoridades aptas a conduzirem à obediência cega. São mais legitimadas, para se usar linguagem jurídico-social da moda. Essa legitimação da autoridade advém da maior de todas as mentiras: a imparcialidade.

Certas instituições conseguiram criar e estabelecer o mito das suas imparcialidades, quase sempre a partir do discurso de verniz científico. Aqui, cabe menção a Foucault, que viu bem a narrativa e o discurso científico como indutores de legitimação para exercício de poder, do poder indiscutível e impassível de objeção dialética, exceto se se tratar de uma falsa dialética exercida dentro do círculo.

A imprensa e o tribunal tiveram de tornar-se científicos; perceberam-no logo. E foi fácil, porque alguém disse as palavras mágicas: método e sistema. Especializaram-se e se apropriaram da autoridade da ciência, esta, na origem, não destinada a basear narrativas para obtenção de poder.

Era bastante óbvio que instituições quisessem para compor sua narrativa algo como tudo que se soltar cai. Elas precisavam de suas leis da gravidade e as criaram a partir do uso da linguagem própria para enunciar leis físicas. Perderam o talvez e assumiram o axioma, com a chatice das mil e uma falsas dúvidas e da insistência em afirmar metodologias.

Hoje, especificamente no Brasil, imprensa e tribunal se retroalimentam  no jogo da afirmação que é legítima porque é e pronto. E, claro, isto tem propósitos políticos; isto visa ao comando do Estado sem a necessidade de jogar o jogo político, que foi tornado coisa feia, não científica, não imparcial. A autoridade da imprensa e do tribunal atua sobre os alunos como no experimento do doutor Milgram: eles a seguem, não a despeito de conflitos, mas sem conflitos.

 O problema disto – e aqui falo da situação do Brasil atual – é o mesmo da reação em cadeia dos núcleos de urânio que se desintegram: há um ponto em que não há barras de grafite que cessem o processo. Neste ponto, o conjunto dos cidadãos parece ter seus corpos calosos secionados e agir apenas pelo hemisfério direito do cérebro – aqui não há trocadilho, devo dizer.

A travagem deste tipo de processo tem a mesma chave de sua abertura: a autoridade. Ela cria-se; ela pode ser desfeita também, por outro discurso a ela contrário. As objeções dentro do modelo não resultam senão em morte lenta, retórica de nada e frustração.

A autoridade que alimenta os comportamentos irracionais e selvagens da pequena-burguesia brasileira deve ser contraditada. Ela não tem – porque não existe isso – as bases que afirma ter: imparcialidade e ciência. A imprensa e o tribunal não são veículos da verdade, não são instituições desinteressadas; são partes num processo. Isso deve ser dito.

ENEM e ódio de classe.

Viajar é bom, desde que não seja a trabalho. Retornar pode ser bom também, mas é sempre meio complicado e trabalhoso. De volta a casa, constato que nada há para comer e beber, além de lembrar da necessidade de desfazer mala e pôr roupa para lavar. Tudo com a pressa de quem vai trabalhar no dia do retorno…

A obrigação de ir ao mercado com pressa é ruim, embora ir ao mercado, para um velho como eu, seja bom. Vou comprar coisas básicas: pão, queijo, fiambre – recuso-me a chamar presunto o que não é – alho, cebolas, tomates, alguma carne, feijões, cerveja. Mesmo rapidamente, o mercado agrada-me.

Chego ao caixa, ainda vazio, e há apenas um cliente na minha frente, na fila. Percebo que a funcionária do caixa conversa animadamente com a funcionária que põe as compras nos sacos, algo que estranhamente perdura por aqui e que deve perdurar, afinal é um emprego a mais.

Conversam sobre o ENEM, que a menina a empacotar as compras tinha feito, no final de semana imediatamente anterior. Era uma segunda feira e o exame ocorrera nos dias anteriores. O ENEM, deve-se explicar rapidamente, é o exame nacional do ensino médio.

Uma coisa tão óbvia quanto tardia; veio substituir o exame vestibular, como meio de seleção para ingresso no ensino superior. Trata-se de exame de avaliação a que se submete quem concluiu o ensino médio, o que antes chamava-se segundo grau. A nota obtida neste exame pode ser usada para concorrer a vagas nas faculdades que o aceitam como meio de seleção. Hoje, quase todas aceitam-no, a provar a eficácia do modelo.

Somado ao Sisu, ele aumentou imensamente as chances de preenchimento de vagas nas universidades, universalizou a concorrência e permitiu menores gastos para os pretendentes ao ingresso nas faculdades. Um só exame permite ao candidato concorrer aos cursos que quiser, no país inteiro, em igualdade de condições com os demais. O exame vestibular feito por cada universidade, para cada curso, era um filtro sociocrático, não meritocrático.

Na sistemática do ENEM e do Sisu, um candidato obtém nota e com ela candidata-se ao que quiser, onde quiser, em disputa com todos os demais, do país inteiro. É a ampla concorrência em forma quase pura.

Mas, retornemos à fila do caixa do supermercado. À minha frente havia um fulano com muitas coisas e ares de preocupação. Não estava contra a, b ou c, especificamente, mas estava preocupado com algo da vida. Esperou passarem todas as compras e pagou. As moças conversavam animadamente.

Atrás de mim estava uma dondoca. É impossível – e seria artificial também – não a caracterizar assim, porque era isto mesmo. Uma senhora jovem, de cabelos pintados a loiro, assim como loiros eram o relógio e os anéis. Vestida para festa, às oito horas da manhã, e com ar de discreta abjeção pela realidade, o que é diferente de distância ou devaneio. Não disfarçava a impaciência, embora não houvesse qualquer demora excessiva, nem fosse crível que tivesse algum compromisso.

Chega a minha vez. A moça do caixa vai passando as compras e logo pergunto à dos sacos se falavam do ENEM. Ela responde imediato que sim. Perguntei das provas. Respondeu-me que as primeiras tinham sido de língua portuguesa, matemática e não sei o que mais. Explicou-me, enfim, quais as provas e a ordem delas. Perguntei se ela tinha se saído bem. Disse-me que sim e continuou a falar, bem tecnicamente, para minha surpresa.

A senhora atrás não se conteve e nisso não deveria haver surpresa. Não se conteve mesmo que a conversa não tenha atrasado o andar da fila. Eu não me propunha a conversar a ponto de retardar a marcha normal de passar produtos, pô-los nos sacos e afinal pagar a conta. Ela não se conteve por conta do fato da moça ter feito o tal ENEM e dele falar com tanto desembaraço.

Virou-se para mim e disse: Esse negócio de ENEM é o fim do mundo, coisa desse governo! Ao que repliquei: Por que, minha senhora?

Continuou – e se dirigia apenas a mim – a dizer: O mérito, o mérito, era vestibular, as vagas dos melhores… isso tira a concorrência.

Respondi: Olha, isso aumenta muito a concorrência. A concorrência agora é todo mundo.

Ela ouve e não compreende, é claro, e segue: O senhor vê que acabaram com a justiça na faculdade.

Perco a paciência: Qual o problema? A moça não deve estudar? É pra ficar sempre onde esteve, não pode melhorar?

Ela: Não, não é isso, ela deve ser premiada pelo esforço!

Eu: Minha senhora, o esforço dela é maior que o meu; que o seu não sei, que não sei o que diabo faz ou estuda ou estudou. O meu mérito é simples: foi ter nascido onde nasci, estudado nos jesuítas, ter sido alfabetizado em três línguas, passado no exame vestibular mais difícil que havia há vinte anos. Só isso. Menos era vagabundagem. E eu não tenho raiva da menina que fez ENEM.

Não pude deixar de acrescentar, em epígrafe: A senhora, com mais méritos que eu, não pode ter medo dessa menina estudar!

Felizmente a dondoca calou-se. Deve ter percebido algo. Pouco é verdade.

Golpe paraguaio é mais barato que impeachment.

Eduardo Cunha será liquidado na máquina de moer carne judicial. Terá de ser assim para se manter a coerência interna da narrativa; o judicial é percebido como jogo pela regra, embora seja ele um fazedor de regras e, portanto, agente do jogo político que não conhece regras.

Uma figura quase mafiosa, que se serve há muito da chantagem como modo de operação, não é fácil de se descartar, nem de fazer acordos. Assim, deve cair por obra do poder moderador, porque o poder político real precisa podar seus galhos ruins por outras mãos.

O golpe, hoje, precisa mais de livrar-se do deputado que de contar com sua ajuda. A presença do deputado como protagonista do golpe é o retardo da derrubada da Presidente. A situação dele é crítica e um processo de impedimento por ele aberto seria facilmente desacreditado, por evidente movimento pendular de vingança ou barganha.

Além disso, o processo parlamentar é caro, tanto nas seduções imediatas – à semelhança do ocorrido  na votação da emenda constitucional da reeleição para cargos executivos – quanto nas seduções de longo prazo, a partir de compromissos  mais ou menos estáveis.

O parlamentar médio não é estúpido nem suicida como o médio classista típico, leitor de revista veja. A ação dos deputados e senadores médios pauta-se por cálculos muito mais objetivos. Realmente, um parlamentar com raiva é, em 80% das vezes, mera encenação.

O impedimento tem outros inconvenientes que os golpistas de alto escalão consideram atentamente. Se o congresso afasta a Presidente da República, o vice-Presidente assume o posto. Muito embora seja um conservador, ele não é exatamente a quem o partido líder do golpismo quer dar a presidência.

A hipótese de se impedirem ambos Presidente e vice-Presidente é remotíssima porque é dificílimo encontrar ou fabricar qualquer puerilidade com ares jurídicos contra quem não tem efetivo poder, como é o caso do vice. Além disso, Michel Temer é do PMDB e seria algo incoerente demais até para os padrões deste partido.

O cenário de três anos de Michel Temer na presidência da república não é precisamente o sonhado pelos líderes do golpismo, que servem marginalmente a si mesmos e principalmente aos interesses entreguistas. Não haveria muitos problemas para Temer abraçar um roteiro entreguista, mas os ganhos marginais dos operadores políticos do PSDB seriam muito reduzidos.

Temer poderia muito bem articular a interlocução direta com os interesses externos e afastar destes entendimentos os intermediários atuais, tornando-os desnecessários. E teria chances de reeleição em 2018, caso não incorresse na tolice de impor retrocessos sociais muito drásticos.

Daí que o golpe paraguaio – o golpe judiciário – é muito mais plausível, por muito mais produtivo para a vanguarda do golpe. Além de aparentar isenção – pois as massas ainda creem nesta quimera – seria muito mais barato em termos de compromissos. Em um tribunal qualquer com dez juízes, dois estão intimamente comprometidos e os restantes vão na onda com medo da imprensa ou por convicção mesmo, porque leem revista veja.

O único empecilho ao golpe paraguaio é quem assume após consumada a derrubada. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, não tem qualquer interesse em patrocinar um golpe que favoreça o senador Aécio Neves. Alckmin sabe muito bem que seria competitivo nas eleições de 2018.

Aliás, com a blindagem poderosa e a propaganda constante contra o governo federal patrocinados pela imprensa, Alckmin seria muitíssimo competitivo nas presidenciais de 2018. Caso Aécio herde a presidência sem a ter ganho nas urnas, evidentemente não haverá espaço para o governador de São Paulo em 2018.

E tampouco em 2022, porque após sete anos de governo Aécio será virtualmente impossível alguém da sua sigla eleger-se presidente.  Para quem não acredite, basta lembrar o estrago feito por oito anos de Fernando Henrique, tanto no país, quanto na imagem dele mesmo e dos seus acólitos.

Daí que a resolução de conflitos internos ao PSDB é essencial no tempo do golpe, seja ele parlamentar, seja judicial, sendo este último mais provável.

Porque o golpe está em regime de urgência.

O golpe de estado atualmente tentado no Brasil, contra o governo eleito legitimamente, segue em ritmo frenético e, por isso mesmo, confuso. A pressa constantemente tem por consequência a confusão, o que pode ser bom ou ruim estrategicamente, a depender das habilidades dos agitadores e operadores.

É fundamental dizer claramente que este processo golpista – assim como seus precedentes – é preponderantemente exógeno. Internos são os agentes operadores localizados na imprensa, congresso nacional, poder judicial e movimentos supostamente populares que ninguém sabe como se financiam.

Sozinhos, estes operadores internos pouco podem. As elites locais sempre atingem acordos em que mantém quase intocados seus altos níveis de apropriação, mesmo em períodos de concessões mais ou menos tímidas às maiorias. Elas ganham em todas as situações, com algumas variações poucas que não invalidam a lógica capitalista. Logo, o núcleo da burguesia nacional, na ausência de estímulos externos, não patrocina golpes.

Provenientes da grande burguesia nacional envolvidos diretamente como agentes do golpe temos apenas os patrões da imprensa. Todavia, essa gente não é propriamente nacional. Historicamente, têm alinhamentos ideológicos fortes com os norte-americanos, além de participação capitalista externa. A imprensa é formatada de tal maneira que serve, queira ou não, aos interesses norte-americanos. É filha do modelo TV – Hollywood do pós-guerra; um modelo de propaganda, basicamente.

Cabem aos agentes locais do golpe duas missões básicas: dar formato jurídico à violação da institucionalidade e cevar o ódio difuso da pequena-burguesia. A segunda missão é de uma irresponsabilidade profunda, porque é a semente do fascismo, mas eles a levam a cabo, sem cálculos de futuro. Estão imbuídos em uma cruzada religiosa; sua tenacidade é quase de devoção.

A pressa explica-se por fatores geopolíticos e pela perda gradual de fôlego financeiro da imprensa local. Á medida que segue a decadência norte-americana – algo que se sabia seria terrível para o mundo e dramático para os vizinhos continentais – encurtam-se os prazos para fazer tudo que do apoio norte-americano dependa.

As decadências tem vários paradoxos aparentes. Um deles é que à perda de influência corresponde a abertura de mais frentes de combate, sejam políticos ou propriamente bélicos. Nisso, a analogia já feita aqui com a morte de uma estrela, creio ser bastante adequada.

Sucede que a perda de capacidades de enfrentar numerosas frentes de combate, a par com o crescente desejo de as aumentar, cobra seu preço em termos de realidade. A capacidade norte-americana de desestabilizar o mundo reduz-se. Recentemente, a entrada da Rússia na Síria, para dar cabo do Estado Islâmico criado pelos EUA, Israel e outros sócios menores, dá provas disto. Além de encurralados na exposição flagrante de suas hipocrisias, os associados da OTAN vêm-se diante de limites objetivos.

Por maior que o Brasil seja economicamente, não é mais importante que o jogo no tabuleiro do oriente próximo e da estepe asiática. Naturalmente os maiores esforços estão lá concentrados e, considerando-se que os recursos são finitos e decrescentes, fica claro que reduz-se sua capacidade de investir na desestabilização nas áreas menos importantes. Por isso a urgência em consumar o golpe no Brasil, pois será cada vez mais difícil financiá-lo e cada vez mais remota a possibilidade de emprestar a sexta frota para o impor na forma clássica.

As forças armadas brasileiras, hoje, não têm interesse no golpe de estado. Seus oficiais generais não estão dispostos a entrar na aventura. A experiência recente com governos da gente que está à frente do golpe mostrou-lhes que perdem dinheiro. Realmente, o período fernandino, de tão entreguista que foi, quase liquida com as forças armadas. Ora, os oficiais superiores tem honorabilidade no que tange às suas capacidades bélicas reais e não acham muita graça no sucateamento das suas armas.

Por outro lado, uma personagem central do esforço golpista parece ter sido muito mal escolhida. O presidente da câmara dos deputados é alguém muito sujo até para ser protegido pelos fortes esquemas da imprensa e do sistema judicial. Fazer sua integral blindagem mediática e jurídica é esforço semelhante ao de segurar água com as mãos. Sempre vazará por todos os lados.

Mesmo que a pequena-burguesia seja terreno fertilíssimo para a propaganda golpista escrita e televisiva, há níveis de contradições que tumultuam o processo e podem implicar massa crítica para uma reação sem quaisquer controles. As contradições da ponta-de-lança do golpe de verniz jurídico tornam-se muito evidentes e fica difícil escondê-las todas. O presidente da câmara é figura complicadíssima. Tirá-lo da posição será também complicadíssimo, porque ele tem apego pessoal à posição e sabe onde todos os outros possíveis substitutos almoçaram no passado.

Há razões para crer que se o golpe não se consumar neste ano de 2015, será inviável ao depois. Perderá inércia, porque os EUA não terão tempo de o ajudar tão intensamente quanto necessário, a imprensa terá de cuidar da sua situação financeira caótica e os agentes imediatos terão de cuidar de inúmeras defesas na arena judicial. Apenas espero que esse eventual fracasso do golpe não deixe em seu lugar algo tão ruim quanto: o desgoverno.

Exportadores ou contrabandistas e pequenos burgueses ávidos por espelhinhos?

Eis que o dólar norte-americano aproxima-se de custar quatro reais e isso parece ser uma mudança de patamar na taxa de câmbio, mais que apenas esquizofrenia e chantagem de mercado. E isso é bom, pois a moeda brasileira estava muito valorizada. Claro que esta desvalorização a par com aumento dos juros dos títulos públicos é a ante-sala do suicídio, mas esta é outra conversa…

O dólar barato encarece coisas brasileiras como soja, café, assúcar, carnes, minérios, aço processado, alumínio processado e outros produtos mais de pouca elaboração e pouco dependentes de insumos importados. A perda de competitividade na exportação dessas commodities é dramática para o balanço de pagamentos e para a manutenção de reservas em moeda conversível.

Claro que não é algo tão elástico a ponto de ser desejável ter a moeda nacional extremamente desvalorizada, porque resultaria inflação, na medida em que importa-se muita coisa banal e insumos importantes. Como está, atualmente, parece um ponto de razoável equilíbrio.

Acontece que isso desagrada quem sempre está desagradado: a classe média que nunca viajou tanto ao exterior em busca, na enorme maioria das vezes, de comprar bugigangas baratas, seja para as acumular em casa, seja para as revender aos deslumbrados seus semelhantes.

Nos espaços de convívio forçado com a pior parte da classe média brasileira – o trabalho, basicamente – essa desvalorização do real é assunto candente. Todos a lamentam, como uma verdadeira traição ou o último prego no caixão. Ficou mais caro ir a Miami! Como se vive assim?

O engraçado é que o pequeno-burguês a lamentar a alta do dólar tem de, logicamente, lamentar o aumento do custo da atividade de contrabando ou de compra leviana e enlouquecida de tudo quanto vê pela frente. Ora, fazer contrabando é ilícito; fazer compras como a satisfação de um vício é superficialidade em forma pura.

Lembraria o pequeno-burguês contrabandista-consumista que os dólares usados para estes deleites têm de entrar no país de alguma forma? Que esta forma primária é a exportação de produtos nacionais? Que esta exportação depende muito dos preços relativos?

O grande capital não é o único poder.

Com relação ao golpe de Estado que se processa no Brasil, a ser consumado por meios que lhe conferem aparências de formalidade, muitos começam a dizer que não ocorrerá porque não interessa ao grande capital nacional.

Esta negação parte da premissa – muito sedutora e difundida – de que o grande capital é a única coisa a basear o poder. Chamam-no base do poder real, esteio deste a agir por intermédio de vários delegados nas estruturas do Estado e na imprensa. Isso é, em grande parte, verdadeiro. Não de todo, nem em todas as épocas, todavia.

O dinheiro não é sempre e em todas as épocas o maior poder social, mesmo sendo a grande força de cooptação de estruturas burocráticas e da imprensa. Corporações e grupos de interesse que vivem à margem do Estado apresentam dinâmicas próprias e nem sempre é possível guiar-lhes os passos estritamente. Sempre há alguma imprevisibilidade.

É óbvio que para o grande capital nacional e para partes do capital estrangeiro com interesses no Brasil não interessa o golpe de Estado, pelo caos subsequente que trará. De regra – exceto para a grandíssima finança – a desorganização e a insegurança que dela resulta não são coisas boas. Reduz os ganhos, evidentemente.

Acontece, por outro lado, que o processo de semeadura do fascismo na pequena burguesia já dá bons frutos. Bons são os semeadores e boa a terra que cultivaram. Chegou-se a um ponto de não retorno e a imprensa não pode simplesmente passar a desdizer todo o discurso de ódio e estupidez que fez nos últimos quatorze anos.

Nem a imprensa por seus donos pode fazer isso agora – porque o ódio pequeno burguês voltar-se-ia contra eles – nem os seus empregados editorialistas e jornalistas querem desdizer-se, porque são como os vendedores de cocaína viciados nela. Eles acreditam nas tolices e brutalidades que dizem, enfim.

Por isso, mesmo que o grande capital não tenha sob uma perspectiva lógica interesse no golpe, será muito difícil, a estas alturas do processo, travá-lo. Por outro lado, se perceber que a coisa está consumada, o grande capital não verá grandes problemas em pagar os custos da readequação e partirá para compensá-los com mais espoliação financeira.

O fato terrível é que tiraram do baú um grande poder e poder descontrolado: a fúria moralizante dos que tudo ignoram e pensam a partir de notícias de televisão. Esse poder é dificílimo de arrefecer antes de entrar em reação em cadeia. Historicamente, seu controle só é possível com ditaduras…

A pequena burguesia, a hipocrisia e o direito a ganhar na loteria só porque jogou.

Deve haver por aí neste vasto mundo algo mais deformado que a classe média alta brasileira; eu, contudo, não sei onde isto se encontra. Duas marcas são-lhe inerentes e indeléveis: a hipocrisia e a percepção monstruosa do que seja risco.

Esta gente, que brada furiosa contra corruções que vê por todas as partes, sem saber bem de quê se trata ou como ocorra, é ávida pela exceção, pela relativização da regra, pela vantagem de algibeira, pelo argumento impertinente. Enaltece o estrangeiro precisamente pelo que ele tem de diferente deles e pelo que são incapazes de cumprir.

Tenho o infeliz encargo de administrar o prédio onde moro, porque exige muita paciência e dar explicações a gente que não admite ser contrariada. Prédio pequeno e antigo, com bons apartamentos à moda meio antiga; bom tamanho e bom acabamento, coisas de muito antes do fetiche do piso em porcelanato e de depois do bom gosto do piso em mármore.

No prédio, há um salão de festas na cobertura, onde também está uma pequena piscina. De regra, o salão está à disposição dos moradores, desde que o solicitem previamente e se comprometam a deixá-lo, depois, nas condições de limpeza em que o encontraram. Ou seja, o salão mantém-se fechado e a piscina é área sempre aberta.

Esta sala é nada mais que um espaço retangular de aproximadamente 250 metros quadrados, com mesas e cadeiras, dois banheiros e um pequeno balcão em granito e uma pia. É agradável; claro e bem ventilado. Não é adequado para banquetes ou grandes festas, evidentemente.

Eis que uma família moradora pede o salão para uso no domingo, das dez da manhã às dez da noite. Pede na quarta-feira, ou seja, com grande antecedência, e eu firmo a autorização e a ponho no elevador, no quadrinho de avisos, como de regra se faz para que os demais fiquem avisados.

Na sexta-feira, o porteiro procura-me com a cara meio contrariada e diz: a senhora fulana, do apartamento tal, quer falar com o senhor. Era a senhora da festa do domingo e perguntei se ele sabia o que ela queria. Disse-me que queria a chave do quartinho que fica lá na cobertura, acessível por uma porta ao lado da entrada do salão de festas.

Estranhei. Esse quartinho nada mais é que a casa de máquinas do elevador e espaço que tem uma escada de ferro que dá acesso à caixa d´água e, portanto, ao topo do edifício, onde não há muretas de segurança. Era óbvio que não poderia ser atendido o pedido da senhora fulana, tanto por não ter sentido algum, quanto por razões de segurança. Disse logo ao porteiro que não desse a chave.

Como infelizmente havia de ser, a senhora veio procurar-me…, hoje. Seguiu-se mais ou menos um diálogo assim, que que ela é fulana e eu sicrano:

– Bom dia.

– Bom dia senhora fulana.

– O senhor sabe, vou fazer uma festa de aniversário do meu filho, no domingo.

– Sei, sim. O porteiro me disse que queria conversar e me adiantou o que era. Acho que ele lhe disse que não pode usar o quartinho?

– Ele me disse e por isso venho explicar.

– Senhora fulana, permita-me interrompê-la. É uma questão de segurança, basicamente. Sei que a senhora compreende.

– Mas senhor sicrano, é o seguinte: contratamos um bufête. Vêm uma senhora e dois garçons. Eles precisam de um lugar para esquentar as comidas e preparar os pratos. Não dá pra fazer isso no salão! Fica feio!

– Eu compreendo senhora fulana, mas a casa de máquinas do elevador não é lugar pra fazer isso. Pode acontecer um acidente e será uma festa com crianças. Aquilo não é área de circulação. Se acontece um acidente, o condomínio fica exposto a ter de pagar uma indenização de quebrar as finanças.

– Mas senhor sicrano, é tudo gente responsável e não será área de circulação.

– Minha senhora, acidente é aquilo que conceitualmente acontece a despeito de serem todas as pessoas cuidadosas. Não estou dizendo que seus garçons, seus convidados e as crianças sejam irresponsáveis. Podem ser todos responsáveis e dar-se um acidente.

– Mas senhor sicrano, se não for assim perco a minha festa, o bufête!

– A senhora devia ter pensado nisso antes. Ao invés de achar que a sala de máquinas do elevador seria usada como cozinha.

– O senhor vai estragar minha festa!

– Não sei. Sei que não se pode usar uma área que não é do salão de festas para dar apoio a festa.

– O salão de festas não tem cozinha!

– Sim, não tem. A senhora sabia disso.

– A taxa de condomínio daqui é cara!

– É. São doze apartamentos só. A senhora sabia disso também antes de alugar o apartamento.

– Não tem jeito então?

– Não, não tem jeito. Espero que compreenda. Seria leviano e irresponsável se consentisse nisso.

– Mas meu filho onde o pessoal do bufête vai preparar as comidas? No meio do salão? Isso tá errado!

– Minha senhora, antes de contratar um bufête ou qualquer outra coisa, a senhora devia ter feito pensando no espaço disponível. Não devia contar com a sala de máquinas do elevador para isso. Isso é questão de segurança! E a sala de máquinas não é parte do salão de festas.

– Vai ficar mais caro pro condomínio, senhor sicrano! Vão ter que fazer na cozinha do meu apartamento e usar o elevador pra levar e trazer do salão de festas.

– Tudo bem. Pagaremos todos os custos adicionais da sua festa…

– Não tem jeito, então?

– Não. Não tem jeito. E não é um capricho. É que a sala de máquinas não é parte do salão de festas. Não sou irresponsável e isso pode dar problemas, acidentes. Espero que compreenda.

– Tchau.

– Até logo, dona fulana…

Este diálogo aconteceu. O que tem de formal e aparentemente falso deve-se a ter sido assim mesmo. Fui formal e preciso; não me alongo nestas ocasiões e uso de linguagem que beira o artificial. De certa forma obriguei minha interlocutora a também ser meio formal. Não no foi todo o tempo. Houve falas que extravasaram a raiva dela e a vontade da exceção.

Isso é um nada. Vários nadas desses são um retrato do caráter dessa gente. A gente que grita, que agride, que se indigna com corruções e outras coisas de moral de pequenos burgueses. Os indignados que pedem para instalar uma cozinha ao lado das máquinas do elevador…

Terra arrasada.

A imprensa tornou-se o maior poder dos países ocidentais, mais poderosa do que a legislatura, o executivo e o judiciário…precipitação e superficialidade são a doença psíquica do século XX e mais do que em qualquer outro sítio é na imprensa que tal doença se reflete.

Alexander Soljenítsin

 

Incapaz de vencer eleições presidenciais nos últimos doze anos, os entreguistas brasileiros resolveram paralisar o país, disseminar o medo, o ódio, a intolerância, a percepção de crise, tudo isso por meio da imprensa, que serve aos desígnios entreguistas com fidelidade e dedicação.

Os resultados são tão previsíveis quanto terríveis. Há o efeito de autorrealização das profecias e a economia, por exemplo, acaba por retrair-se mais por conta das más expectativas. Mais que cairia normalmente este ano e que é muito pouco, diga-se.

Porém, o pior desta estratégia de disseminar-se que tudo está ruim e em níveis sem precedentes é que a classe média acredita nisso. Já de si é bastante tola e ignorante; com essa ajuda da imprensa, para piorar o ruim, torna-se insuportável. E essa gente é afirmativa, ou seja, reproduz as idiotices que lê ou escuta e sai a pedir confirmações para elas.

Nada no Brasil está pior que há 15 anos. Nem economia, nem distribuição de rendas, nem saúde, nem educação, nem segurança pública, absolutamente nada. A percepção disso seria facílima para qualquer pessoa que olhasse à sua volta e pensasse com sua própria cabeça. Um pouco de memória é necessário também, evidentemente.

O extraordinário foi ter-se instalado o clima de terror, a percepção de caos, a noção de que as coisas estão a piorar. Isso é a grande obra da imprensa e os frutos serão uma ingovernabilidade que não ajudará nem aos grupos de oposição. O sujeito médio – aparentemente possuidor de um cérebro pensante e de memória, além da tão aclamada liberdade – nega a realidade, os números, as séries históricas, nega sua própria percepção e repete o que lhe disse a imprensa e o que lhe desdiz a realidade.

Chegou-se a ponto da histeria macartista contra a corrução – mesmo que ninguém saiba onde ela está e como funciona – lançar âncora no judicial, que a pretexto de a combater promove a quebra de grandes empresas, desempregando milhares de pessoas. As massas enlouquecidas não param a pensar que não é preciso destruir empresas e por na rua trabalhadores para se combater qualquer coisa.

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