Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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O proselitismo duelista.

Como herança cultural e paradigma sempre invocado, a farsa dualista platônica nos teria bastado. Mas, a ela acrescentaram-se camadas de preconceitos semíticos e rudimentos de um teísmo de lei e tribunal. É claro que essa mistura fermentou bem e deu ao mundo nossa celebrada cultura ocidental.

Tão evidente quanto o triunfo deste modelo são suas consequências na formação do homem médio. Sofistas metafísicos mal instruídos são a matéria humana mais disponível que há. Eles são disputadores a afirmarem uma crença sincera na dialética quase lógica que os guia. São sinceros, isso é bem verdade, quando estão a mentir.

Não é a incultura o que me move a escrever ou o que me causa repugnância neste tipo médio que pulula, como a infestar o mundo de um ser cujo modelo é o advogado. É sua crença no que chamam convencimento. Ao mesmo tempo em que instintivamente e inconscientemente visam a poder e a dinheiro, afirmam uma racionalidade que de tão impregnada de moralismos é mesmo racional, sob esta perspectiva.

O debate que visa ao convencimento é uma heresia, no fundo, além de prazer do vulgo. Convencer é o prazer de levar o outro a repetir o que o convencedor já está a repetir. A busca pelo mínimo divisor comum leva ao que ela se propõe: ao mínimo. Enquanto os disputadores procuram convencer-se mutuamente, esquecem de buscar perceber mais claramente quais são seus interesses e em que eles se contrapõem aos outros interesses.

O bom disputador deve, necessariamente, achar que o absurdo não existe, ou, no mínimo, achar que ele é um estado quimérico que pode ser afastado pela sofística. Acontece que a sofística não é uma técnica de remoção de brumas, mas um meio de socialização por autocelebração e crença na inexistência do conflito de interesses.

O convencimento entende-se como uma forma de sedução; uma conquista; a atração de alguém para um discurso; a obtenção da adesão a uma narrativa. Essa é uma lógica de tribunal, que emula uma lógica bem própria de solicitação ao deus que habitava a árida faixa entre o Morto Mar e o mar vivo. Estranha religiosidade que se inicia por pedir as coisas ao deus e se esforçar por o convencer de algo, sempre em detrimento de outrem.

Essa racionalidade irracional é a maior garantia da perenidade do sistema. Haverá pontos e contrapontos, mas nunca pontos fora do campo pre-estabelecido, exceto pelos fascismos enfurecidos, talvez. O sistema prevê a dualidade operante na lógica do convencimento e gera hordas de perplexos com a ineficácia fundamental daquilo em que continuarão a crer.

Esse modelo implica crer nas noções de limite e de impossibilidade, noções cujo transplante das ciências naturais para as humanas é um crime de lesa epistemologia. O humano não conhece limites, nem impossibilidades; sua única impossibilidade é a imortalidade e isto não é humano, é biológico.

O ser médio atual, cujo protótipo é o rábula destituído de conhecimentos históricos mínimos, tem vergonha em quase tudo que faz; e tem medo. Por isso surpreende-se, assusta-se, mas não deixa de ser o que é, porque não lhe foi ofertado qualquer outro modelo a seguir. Ora, a causa da surpresa, de qualquer uma, é a ignorância e isto não é dito aqui como insulto coletivo ou por anseio de escandalizar.

Surpreender-se decorre de ignorar e é muito significativo que um dos locais discursivos mais frequentes seja precisamente a surpresa. O mundo vive de surpresas, umas após outras, a se fazerem esquecer nesta sucessão vertiginosa. A surpresa suspende, conduz a um torpor da suspensão da realidade, ao torpor da aparência do tempo parado.

Essa figura do tempo parado – uma impossibilidade fundamental – é reveladora de quanto a história ausentou-se do ferramental de pensamento. A suspensão do temporal, por choques sucessivos de surpresas, acontece na cabeça do homem médio, tamanha sua aversão pela realidade, que nada mais é que história, ou seja, um processo que se autorealiza.

A surpresa que acontece no não convencimento é também uma forma infantilizada de estar na vida. É semelhante à surpresa da criança à resistência à sua pretensão de apossar-se das coisas das outras crianças. Mas o homem médio acredita-se irresistível sedutor e portador das melhores armas sofísticas, o que só pode decorrer de imensa falta de autocrítica.

As coisas mostram-se.

Venceréis, pero no convenceréis.

Em 12 de outubro de 1936 dava-se a Festa da Raça, na Universidade de Salamanca, com a presença, entre vários outros, do Reitor Miguel de Unamuno, do Bispo de Salamanca Plá y Daniel, da senhora Franco e do general Millán Astray.

Unamuno, convém aponta-lo, havia apoiado a invasão da República pelas tropas africanas do general Francisco Franco. E o novo regime nazista já se tinha consolidado por ocasião desta celebração da festa da raça na Universidade de Salamanca.

Astray ataca violentamente a Catalunha e o País Vasco nesta ocasião: “… cánceres en el cuerpo de la nación. El fascismo, que es el sanador de España, sabrá cómo exterminarlas, cortando en la carne viva, como un decidido cirujano libre de falsos sentimentalismos.” Depois do ataque racista vil, proclamou e deu vivas à morte, o que era seu característico.

Miguel de Unamuno era vasco; o Bispo Plá y Daniel era catalão. E ambos tinham sido favoráveis à derrubada da República pelas tropas nazistas de Franco, que era galego! Do ponto de vista estritamente racional, o ataque de Astray a catalães e vascos era, além de uma imensa e desnecessárias descortesia, uma estupidez.

Unamuno reagiu, mesmo a saber os riscos implicados. E reagiu tão elegantemente quanto firmemente: “Dejaré de lado la ofensa personal que supone su repentina explosión contra vascos y catalanes. Yo mismo, como sabéis, nací en Bilbao. El obispo, lo quiera o no, es catalán, nacido en Barcelona.”

Dejaré de lado la ofensa personal! É extraordinário. A seguir, disse o principal, que não ficaria calado depois de ouvir o necrófilo e insensato grito “Viva a Morte!” e disse que o general Astray era um inválido de guerra e que: “Me atormenta el pensar que el general Millán Astray pudiera dictar las normas de la psicología de la masa. Un mutilado que carezca de la grandeza espiritual de Cervantes, es de esperar que encuentre un terrible alivio viendo cómo se multiplican los mutilados a su alrededor.”

Unamuno morreu, provavelmente de desgosto, pouco após o incidente. Após sua refinada objeção a Astray, este proclamou o célebre abaixo a inteligência, viva a morte. Fez-se confusão, Unamuno ainda disse que venceriam porque tinham força bruta, mas não convencerão. Foi, ao final da cerimônia que se tinha tornado confusão, protegido pela senhora Franco, mas sofreu prisão domiciliar. O general Astray venceu, como se sabe, e venceu por décadas.

As últimas palavras de Unamuno nesta ocasião, referentes à não possuírem os nazistas razão e direito na luta – mas apenas força bruta – inserem-se na grande corrente do racionalismo de origem grega, cantado com beleza no teatro trágico. Unamuno diz a Astray o que Sófocles fez Antígona dizer ao tio dela a propósito da sepultura a ser dada a Polinices.

Este e outros episódios – os acontecidos e os ainda não consumados – provam que a razão e o direito não são condições necessárias ou mesmo eficazes para a vitória. Isto, com relação a vitórias bélicas, pode soar muito evidente; todavia, deveria passar a soar, senão evidente, bastante plausível, também para vitórias políticas.

A força bruta é mais intensa que as outras que contendem no palco político e social e ela não consiste somente na força física. A força bruta intelectual – aquela que provém das mentes mais vazias – é bastante apta a ditar as normas da psicologia das massas. Essa aptidão provém dela ser muito mais naturalizante que humanizadora, e propor coisas muito naturais: como matar, segregar, torturar…

A força bruta intelectual criou ambiente propício a um golpe de Estado no Brasil; ele está em curso. De tão urgente para os interesses saqueadores externos, abriu-se a estrebaria e soltaram-se dois cavalos a correrem paralelamente. O que chegar primeiro entrega o serviço e o único compromisso mútuo dos cavalos é não se atrapalharem um ao outro. O que for mais rápido atende aos interesses entreguistas: congresso ou judiciário.

Para obter apoio nas classes intermédias, a psicologia de massas à Millán Astray foi posta em difusão e estimulada pela imprensa. Este, a par com os destruidores efeitos econômicos e sociais do golpe, será o maior preço a ser pago depois. O fascismo histério e profundamente ignorante foi instilado nas camadas sociais que representam o terreno mais fértil para este tipo de pensamento rasteiro e conduzido de fora para dentro.

Mesmo que se impeça ou que se retome o poder político e se restabeleça o Estado de Direito após o golpe, será dificílimo desfazer os efeitos destruidores desta psicologia de massas fascista ditada pela imprensa para os estratos medianos e muito bem assimilada por eles.

A indiferença pode ser a pior tática oportunista.

É péssimo escrever com advertências precedentes, mas é necessário em muitos casos. A indiferença real – a que aceita todas as consequências e não investe contra elas nem com frustrações mal dissimuladas – existe, mesmo rara. Precisamente por sua raridade, chamam atenção as manifestações da indiferença não de todo indiferente.

Pode ser uma manifestação de cansaço reativa, e aí tem-se a contradição aparente da indiferença ativa, aquela que se afirma. Nesta há bastante autenticidade, no que ela tem de pedido de paz: é reativa, mas não provocativa. Enfim, seria tolo achar que é impossível alguém não gostar de política realmente.

Todavia, na maioria das vezes, nada há mais insincero que a indiferença política. E seus dois móveis mais evidentes são o oportunismo e o medo. Se esta indiferença reveste aspectos táticos, é certo que seu contrário não é o destemor caricato do que se dispõe ao conflito inútil e potencialmente danoso.

Sobre a aparente objeção acima mencionada convém dizer que sempre será lançada e assemelha-se àquela do privilegiado que a privilégios se opõe, o que seria contraditório; uma objeção que revela o mau caráter de quem a lança. Quanto a esta última, basta lembrar que não é reduzindo-se à escravidão que se luta eficazmente contra a servidão. Não é preciso ser pobre para opor-se a pobreza, enfim, nem é eficaz meio.

A pseudo-indiferença pode, entretanto, ser uma tática eficaz, como forma adjacente a uma linha de ação clara. Assim, ela também é bastante clara; é uma indiferença aparente que revela opções muito claras. Esta manifestação – de que o apolítico é exemplo hoje a ser lembrado – serve a propósitos específicos e será recompensada. Ela jogo no campo da narrativa do razoável que se oferece como conciliador: a proposta de parlamentarismo é, hoje, exemplo desta forma oportunista.

Porém, há uma variante que eu diria híbrida: a pseudo-indiferença que não funciona claramente como linha auxiliar de alguma posição, dando-lhe a válvula de escape da narrativa do razoável, mas que tem muito de ingenuidade como tática a serviço de um oportunismo difuso. Este oportunismo é animado por uma aspiração individual difícil de articular-se aos movimentos de grupo; é algo muito narcísico, enfim.

Esta variação tende a ser ineficaz em momentos pré e pós traumáticos em política, ou, pelo menos, a ser pouco eficaz em termos de recompensas, sejam elas pecuniárias, em proteção contra as violências advindas da loucura reinante, ou em efêmera glória. E a raiz desta ineficácia na obtenção de grandes recompensas encontra-se no que Maquiavel já dissera há muito sobre ficar-se declaradamente contra ninguém e a favor de ninguém.

O caráter narcísico da postura é fortíssimo e revela-se muito pelo que o indiferente oportunista quer-se de árbitro da realidade, segundo critérios que podem ser quaisquer, desde que sejam aparentemente originais. É a boa consciência da imparcialidade aparente, o bem estar psíquico da realização científica que seria o grau zero da axiologia.

O indiferente aparente não é estúpido; é autorreferente a um ponto elevadíssimo. Por não ser estúpido, sua indiferença é disfarçada em posição mediana, razoabilidade e imparcialidade, tudo que não existe e cuja inexistência é mais evidente em momentos de crises. Fosse estúpido e menos narcisista e menos ansioso pela originalidade, ofereceria algo mais apreciado por qualquer dos lados e teria a recompensa que a história prova serem merecedores os medíocres razoáveis.

O golpe será no congresso; seu líder é José Serra.

Dos líderes de oposição aos governos nacionalistas recentes o mais capaz é José Serra. Não porque ele seja viável eleitoralmente em nível nacional, mas porque é muito laborioso, tem interlocução direta com os interesses externos e com os chefes da imprensa mainstream brasileira. Ele é o político mais maquiavélico que se viu nos últimos quarenta anos, o que é um elogio.

É óbvia a articulação mediática-judicial para dar as condições do golpe de Estado que deporá a Presidenta Dilma. Por cálculo, percebeu-se o risco da deposição puramente judicial num colegiado. Tanto pode haver minorias contrárias, quanto pode haver conflitos e constrangimentos decorrentes do expurgo baseado em nada.

Soma-se outro inconveniente à deposição por meio de tribunal: quem assume depois do golpe. Nessa modalidade, as hipóteses são muitas, a dependerem do momento e, o pior, a dependerem muitas vezes de nada suficientemente previsível. Hoje, a imprensa conseguiu conduzir as camadas médias a tal loucura, que eleições podem ser indesejáveis, na medida em que, por exemplo, ex-militar nazista do Rio de Janeiro é viável, ambientalista criacionista do Acre é viável.

No início do planejamento golpista, adotou-se uma estratégia muito sagaz, segundo a qual todas as linhas se tentariam e seriam auxiliares umas das outras. Aproximado o desfecho, a coisa seguiria a que se tivesse mostrado mais viável e menos custosa.

O conúbio judicial-mediático foi essencial, mas não como o algoz que empunhará o machado a decapitar a Presidenta. A famosa operação lava-jato, conduzida com tantas violações a garantias constitucionais quanto garantias há na constituição, serviu a muito mais inteligente propósito que envolver pessoas do PT ou mesmo sequestrar por um dia o ex-Presidente Lula.

A lava-jato envolveu quase todo o PMDB e adjacentes partidos de aluguel, bem como boa parte do grande capital nacional. Nisso ela foi uma manobra genial.

Essa gente domina o congresso nacional e vê-se na iminência da humilhação judicial instrumental. Só uma pessoal os pode oferecer socorro eficaz: José Serra. Porque ele pode mandar a imprensa parar de repercutir e alimentar o espetáculo de linchamento judicial tático.

Então, José Serra já está acordado com Michel Temer, que estará bem pago com a faixa presidencial e o título; nunca almejou mais, nem seria capaz de ir mais além, realmente. Para dar provas de seu real poder junto à imprensa, Serra providenciou sinais: uma revista da Globo já detalhou esquemas de Aécio neves; um portal de notícias da Folha de São Paulo fez o mesmo.

Ficou claro que, hoje, a opção é pelo golpe via impeachment e que, portanto, o espetáculo judicial de perseguição a Lula, incessantemente mostrado e reapresentado na imprensa, é jogo de cena e meio de desviar atenções e ganhar tempo para a consumação do golpe parlamentar.

Em um governo Temer, Serra seria o poder de fato e poderia consumar seu sempre acalentado projeto de entregar a maior riqueza do país aos interesses externos: o petróleo. Paralelamente a isto, que é o principal, Serra trabalharia com afinco para a aprovação do modelo sonhado pela classe dominante brasileira: o parlamentarismo.

Aprovado o parlamentarismo, ou seja, a democracia sem povo, os riscos da loucura generalizada estariam minimizados, pois o presidente seria figura meramente decorativa.

Dramático é esse iminente desfecho em que um governo foi sitiado e teve retirada qualquer capacidade de reação pelo assalto em várias frentes com a imprensa a fazer bombardeio diário. E patética é a situação de supostos líderes das hostes oposicionistas que se viram enredados no plano de Serra e sumariamente expurgados pela imprensa na reta final.

O monstro corporativo e a rejeição à democracia.

Acentua-se nas camadas médias da sociedade e principalmente naqueles instalados no serviço público a rejeição à democracia, seja explícita ou disfarçadamente. No estágio atual, as rejeições explícitas são minoritárias e isoladas em grupos extremistas de pouca elaboração narrativa.

Prepondera a rejeição à democracia da maneira mais vil e desonrosa, que é mediante o disfarce e o discurso profundamente hipócrita da defesa da própria prática democrática. Essa postura é de regra para algumas corporações que se apropriam do Estado em benefício próprio. Hoje, notadamente, todos os serviços jurídicos e adjacências, serviços de contenção social – polícias – e as universidades.

 Os grupos formalmente instruídos que compõem estas corporações insertas no Estado agem contra a prática da democracia representativa, mesmo que o façam dissimuladamente. A ação centra-se na democracia interna e transplanta para o público um discurso que somente tem coerência para o privado. Quem é pago por todos de forma impositiva não pode gerir-se como se fosse pago por serviços privados, optativos, específicos.

O protótipo do modelo por todos desejado encontra-se num arcaísmo destituído de sentido, mas nunca seriamente discutido, adotado pelas universidade. Trata-se da eleição dos reitores das universidades públicas pelos votos dos docentes, discentes e funcionários, eleição que, embora não tenha formalmente caráter vinculante do executivo, tornou-se vinculativa na prática reiterada de ser aceita.

Ora, a escolha do reitor da universidade pública no âmbito restrito da universidade – que via de regra tem um imenso orçamento alimentado por dinheiro coletado junto a toda a sociedade – é algo nitidamente anti democrático, embora seja divulgada como o ápice da prática democrática. Aqui, tem-se o triunfo quase completo dos interesses corporativos, pagos com dinheiro da sociedade, em detrimento dos interesses realmente públicos.

Isso é a democracia dos sem votos; a democracia que escolhe como gastar o dinheiro de todos sem perguntar nada a estes todos. Democracia haveria se o reitor, para ficar neste exemplo, fosse escolhido em eleições gerais ou simplesmente nomeado pelo chefe do executivo, que se submeteu a eleições gerais e majoritárias e, portanto, tem mandato popular e legitimidade para a escolha.

Os poderes judiciais – o de decidir e o de acusar – já contam com uma curiosa variante da restrição democrática corporativa. Ela não se conhece em parte alguma e atende pelo nome de autonomia administrativa. A corporação judicial brasileira conseguiu transbordar uma garantia essencial que é a autonomia funcional, isto é, para decidir, para um privilégio sem sentido que é a autonomia para gastar quanto quiser, como quiser, onde quiser, sem dar contas a ninguém.

Eis que corporações adjacentes à judicial anseiam pelos mesmos privilégios e chegam às raias da absurdidade de pretenderem escolher seus chefes por eleições corporativas internas e impor ao chefe de Estado – que teve a inglória tarefa de ir buscar 50 milhões de votos populares – suas escolhas internas, que só atendem aos seus interesses. É uma investida frontal contra o modelo democrático, embalada no costumeiro besteirol jurídico-moralizante, com uso de lugares-comuns da moda, claro.

 É contrassenso absoluto pretender a autonomia de órgão do Estado relativamente ao povo em geral e aos governantes eleitos em particular. Pelo menos é contrassenso postular isso e manter-se aparentemente alinhado ao modelo da democracia representativa. Isto que se propõe e que se deseja é um modelo híbrido do Estado fascista corporativo, com um pouco mais de desconcentração interna que os modelos históricos recentes.

É ilegítimo pretender atuar à margem de qualquer controle hierárquico e gastar dinheiro público à margem de qualquer crítica social. É patifaria embalar este desejo de apropriação do Estado em causa própria com os papéis e fitas do discurso democrático.

O escravo não deve perceber a escravidão. Por isso a imprensa nega a luta de classes.

O capital serve-se da imprensa como se serve da repressão policial. São meios de ilusão e controle social que devem inicialmente impedir a tomada de consciência da luta de classes e, secundariamente, reprimir violentamente qualquer ameaça ao patrimônio.

O discurso é mais eficaz, historicamente. A imprensa, assim como o poder judicial, apropriou-se sagazmente do mito da imparcialidade e ficou livre para mentir e deformar à vontade, em atividades editoriais disfarçadas em jornalismo.

Vendeu a ilusão de que noticia fatos, pura e simplesmente, o que é muito distante da realidade. Ela vende pacotes prontos de idéias simples a serem repetidas pelo público não pensante.

Mas, além da imprensa e do judicial, é interessante perceber que quase toda a sociedade adotou narrativas que tendem a negar a luta de classes, como se os mais díspares grupos em termos de apropriação de rendas tivessem os mesmos interesses.

O discurso corporativo tem exemplos interessantíssimos. Em supermercados, os empregados mais subalternos são chamados colaboradores ou, o que é mais perverso, associados. Colaborador dá idéia de proximidade, de semelhança entre empregado e patrão, algo muito longe de ser verdade.

Associado é perversão e piada. Tudo isso visa a afastar a percepção de exploração e das diferenças imensas na apropriação dos resultados. E resulta bem, a despeito do empregado saber que trabalha muito e que se cansa muito e que ao final ganha pouco.

Essa sagacidade é, talvez, ainda maior nas classes médias, que chamam suas empregadas domésticas pelo eufemismo secretária. Ora, como é que é secretária quem não ganha salário desta função, quem não faz trabalho de secretária? É uma piada de alta perversidade.

Neste caso de secretária, a família médio classista expia um pouco de sua culpa esclavagista, além de suprimir o termo estigmatizante empregada. Claro que do estigma só se extirpa o nome e o restante permanece nesta que é a pior função laboral existente no Brasil.

Mino Carta aponta algo interessantíssimo no âmbito da imprensa. Diz que não conhece outro país onde os jornalistas e repórteres chamem os patrões de colegas. Ora, o fulano que escreve o editorial é o patrão ou funcionário qualificado deste – um quase patrão. O jornalista é empregado, nunca colega de patrão algum.

É necessário expurgar dos discursos todas as menções, todos os termos que indiquem a relação patrão – empregado explicitamente. É preciso que não se percebam com nitidez as diferenças enormes e obscenas entre os 2 ou 4% que se apropriam de mais e os rentantes. Claro que diferenças percebem-se, mas o discurso leva as maiorias a ignorarem qual grandes são elas.

Diferenças que não se percebem nas suas reais e abissais dimensões parecem aceitáveis e podem ser explicadas pelo besteirol comum do mérito e outras mentiras deste tipo. Assim, os escravos seguem a aceitar suas servidões, na medida em que não de veem como servos.

Por conta da negativa da luta de classes – a maior tarefa da imprensa que funciona como uma corporação mundial a serviço do grande capital financeiro – as maiorias são levadas a descrer da política e pensar que o farisaísmo é mais importante que a escolha política. São levadas a acreditar num sistema burocrático supostamente virtuoso, meritocrático e imparcial.

A negação da luta de classes é a negação da política também. Implica a idéia de não haver escolhas, opções, hipóteses, nada variável conforme uma decisão que vise aos interesses próprios de uma classe. É um estado quase religioso de verdade única, de gestão por manuais, ou seja, de naturalização da história. Isso é conservadorismo na forma mais pura.

Por terem tido grande êxito em fazer a maioria das pessoas crerem que compartem interesses com seus exploradores, os avanços políticos, sociais e econômicos, nomeadamente no que se refere a melhor distribuição de riquezas, são espasmódicos, episódicos e sempre sujeitos a travões ou retrocessos.

As pessoas chegaram, em sua imensa maioria, ao grau zero do pensamento autônomo. Não há originalidade para dizer algo belo nem feio, só repetições. Não há noção de história, nem de realidade.

Presentemente, para travar as melhoras nas vidas da maioria das pessoas – algo que repugna às classes médias e altas – a imprensa investe contra governos sob argumentos não provados de haver neles corrução elevada.

Ora, não há hoje corrução mais elevada que em qualquer outro período histórico e só os tolos crêem que há, porque é próprio dos tolos serem ignorantes de história e não pensarem por si mesmos.

Assim, muitos são levados a esquecerem as melhoras de níveis de vida e a bradarem contra algo que é historicamente estável e não mereceu estes ataques, exceto quando havia governos mais favoráveis ao povo, claro.

Conduzido por uma imprensa hedionda o povo busca o suicídio, oferece sua servidão e marcha para um fascismo perigosíssimo.

Uma questão de gênero.

Esse último ano certamente me deu pena do rapaz que teve que preparar uma retrospectiva da política nacional brasileira. Foi um ano intenso, e a cada novo acontecimento de seus últimos dias o ano mais parecia um seriado em que o roteirista brincava de ligar as pontas soltas do ano todo.

Também nesse ano, mais do que em outros, houve um acirramento político no Brasil entre os que se dizem de “esquerda” ou de “direita”, podendo ser considerados representantes de cada lado e tendo visibilidade nacional, estão os deputados federais Jean Willys e Jair Bolsonaro. Um homossexual que defende as políticas de gênero que acha pertinentes, e o outro um ex-capitão do exército brasileiro que as rechaça por completo, ou quase isso.

Esse fato levou à uma distorção não somente do assunto em si, como também de como tratá-lo. Ora, esse não é exatamente um assunto nacional, senão que é discutido em todo o mundo e não é de hoje. Em alguns lugares é mais bem recebido, ainda que não sem resistência a um ou outro de seus questionamentos.

Considerando gênero como a construção psicossocial do masculino e do feminino. há diversos conceitos, para determinar o que chamamos “gênero”: como símbolos culturais evocadores de representações, conceitos normativos como grade de interpretação de significados, organizações e instituições sociais, identidade subjetiva (SCOTT, 1988); como divisões e atribuições assimétricas de características e potencialidades (FLAX, 1987)”

Entre esses lugares onde o assunto é bem recebido, estão todas as nações ditas desenvolvidas, mais explicitamente América do Norte excluindo-se o México, Europa ocidental e Austrália. Via de regra são os mesmos lugares que o “típico brasileiro” se acostumou a dizer que são melhores em tudo, quando se referem diretamente ao Brasil. Esse costume eu identifiquei, ainda que não massivo como no caso Brasileiro, na Espanha com referência a assuntos pontuais, um exemplo seria um “típico espanhol” dizendo que o cinema espanhol é pior que o norte americano. O caso brasileiro é muito mais conhecido por mim, dai vem o “massivo”, não é que em outros lugares não exista, apenas que a situação de meu país é a que mais conheço.

Acontece que na Austrália um grupo de meninas iniciou um grupo de estudo sobre violencia machista que se formou numa aula de literatura, ou seja, contra violência de… Gênero!

Não somente isso, não satisfeitas com a ausência de assuntos como feminismo nos curriculums escolares australianos, as garotas de 8 a 15 anos ajudadas pela professora, iniciaram uma campanha de Crowdfunding para a elaboração de um KIT contra violência de gênero para ser distribuído e usado por professores e alunos em outras escolas australianas. O objetivo era conseguir 3000U$, as meninas conseguiram 12.000U$. Quatro vezes mais, certamente ajudadas por… Pais e amigos!

Na Espanha, onde de momento estudo e na mesma universidade, que é pública, existe um mestrado em… Gênero!

Nos EUA, mais exatamente em Nova Iorque, uma garotinha de 13 anos, passou a escrever um blog e defender mais ou menos o que defendem as meninas australianas, representando a ONU, que não é pouco, e falando de… Gênero. É um blog para adolescentes feministas.

Agora, eu sou do nordeste do Brasil. Lugar notoriamente conhecido por filosofias avançadas com as quais presenteou a humanidade fazendo-a evoluir muito… Só que não…

Não obstante eu compreendo exatamente como se sente um conterrâneo meu ao assistir um vídeo como esse:

Compreendo exatamente porque eu vejo o vídeo e sou tentado a pensar: “A criança claramente foi treinada nesse discurso!”. E não obstante, por morar ali, eu mesmo vi e tive companheiros de classe “afeminados”, que se vestiam de “homem” e eram ridicularizados inclusive pelas meninas de quem eram mais amigos. Crianças e jovens podem ser e efetivamente são bem cruéis quando querem. Por haver tido tais companheiros, me pergunto o que aconteceria se seus pais tivessem desde o princípio acatado a opção do filho e reagido como os pais dessa criança, defendendo-a incluso de outras crianças e outros pais.

Agora… Não sou pai. Falo sem conhecimento completo de causa, e sem medo de afirmar, quando vejo um pai que compra uma boneca para seu filho, vejo muito mais possibilidades nessa criança do que na nordestina, como eu, que foi, é, e será criada para reproduzir velhos preconceitos.

Acreditar e mais que isso, aceitar que existe o problema e lidar com ele, são apenas primeiros passos. É uma coisa no mínimo engraçada que no mesmo Nordeste em que dizem segundo a situação que você “seja homem”, porque de um “homem” se espera uma série de atitudes tais, adquiridas ao longo do tempo, também seja o Nordeste que rechaça que uma mulher também se edifica, e que em ambos os casos, o corpo biológico é mero detalhe. A referência é clara, as críticas a Simone de Beauvoir e seu texto presente no ENEM. Era preferível TENTAR desconstruir a filósofa, do que minimamente pensar sobre sua afirmação.

Da mesma forma que a aceitação é um dos passos para a solução, a politização exacerbada do problema é o primeiro passo para o abismo. Assumir a preferência por político A ou B que via de regra não fazem ideia do que estão falando e são contra ou a favor de partidos políticos com ideologias tal ou qual, é o abismo em si mesmo, e esse é o caminho que seguimos no Brasil.

Continuaremos durante muitos e muitos anos, vendo gerações de brasileiros visitarem Espanha, Austrália, e EUA, regressando de suas viagens a cantar a perfeição nesses lugares, enquanto são contra as coisas mais básicas que lá existem, em seu próprio país. Ações que caso seus filhos realizassem, com certeza seria motivo de seu orgulho, sendo defenestradas de dentro de casa, pelos mesmos pais que gostariam que seus filhos escrevessem para a ONU.

Judiciário: caríssimo e gerador de instabilidade.

Presentemente, duas corporações investem contra o desenvolvimento social, econômico e institucional do Brasil: a imprensa e o judiciário. É até difícil saber qual é pior, mas é certo que da imprensa, como instituição majoritariamente privada – ao menos na aparência – não se espera grande coisa, exceto se se for muito ingênuo. Na verdade, vistas as coisas com rigor, a imprensa é pior, até porque é a garantidora e estimuladora das atuais investidas e excessos do judiciário.

 

Claro que é ingenuidade esperar do judiciário que não seja uma corporação a pensar principalmente em si, a despeito de todo o discurso que produz em sua defesa, a partir do mito da imparcialidade. Ora, é próprio das corporações, estatais e privadas, pensarem principalmente nos seus interesses e isso não é o extraordinário.

 

O que permitiu a essas instituições o poder destrutivo e a imunidade que têm foi a apropriação do mito da imparcialidade. Para tanto, trabalha outro mito, no caso específico do judiciário, o da especialização técnica, que seria algo destituído de conteúdo ideológico ou político, algo como a ciência inerte em termos de valores.

 

Amparado nessas ilusões disseminadas com ajuda da imprensa, o judiciário brasileiro faz o que quer, ao custo que for, e permanece imune a qualquer crítica. Porém, um poder imune à maior de todas as críticas – que são as eleições, a crítica democrática – não poderia jamais fazer pouco da constituição, das leis, decidir casuisticamente segundo o capricho momentâneo deste e daquele juiz.

 

Um poder não legitimado democraticamente não pode se arrogar legislador, não pode relativizar garantias, não pode fazer pressão como meio de produção de provas, não pode ter postura exibicionista.

 

Mas, hoje, o judiciário brasileiro não apenas é um poder sem legitimidade democrática sobre que não incide qualquer controle efetivo, como é tudo isso a um custo obsceno. Quando é para extrair conclusões favoráveis aos seus interesses, a corporação  gosta de comparações. Quando as conclusões são-lhes desfavoráveis, não gostam. Claro, nisso são oportunistas.

 

Pois bem, o judiciário brasileiro é o mais caro do mundo! E este preço absurdo foi atingido à margem da legalidade estrita, com a criação de vantagens astronômicas e injustificadas por meio de atos internos. Acontece que a legalidade dessas iniciativas será decidida por eles mesmos, os beneficiários!

 

Por meio do escandaloso expediente das verbas indenizatórias, esses funcionários auferem mais que o teto remuneratório do serviço público. Na verdade, auferem muito mais. Há semi-deuses ganhando em torno a R$ 70.000,00 por mês, o que é aberrante, nada menos. Há verdadeiras festas de auto concessão de vantagens retroativas, sem base em coisa nenhuma além da própria vontade de abrir os cofres públicos em benefício próprio, mesmo quando a situação recomenda austeridade.

 

O Brasil tem a maior relação de funcionários da justiça por cem mil habitantes do mundo. O judiciário brasileiro custa 1,3% do PIB, algo extraordinário para um sistema de resolução de conflitos muito ruim. Na Alemanha, custa 0,3% do PIB e no Chile 0,2%, para ficarmos apenas em dois casos. E não seria digno de ninguém que tenha um cérebro sadio dizer que o brasileiro é melhor que qualquer outro.

 

Não é melhor. É plausível afirmar que é pior e certamente muito mais caro; é uma deformação sem precedentes na história. A média remuneratória do judiciário brasileiro é de R$ 10.000,00, incluindo-se juízes, funcionários, terceirizados, tudo enfim. Isso é cinco vezes o PIB per capita do Brasil, o que revela a magnitude da aberração. Nem os baixos salários dos milhares de terceirizados baixam essa média.

 

Servir-se de manobras ilegais para sugar mais dinheiro foi chegar ao grau zero da honradez. Não que isso seja surpreendente vindo desta gente, mas é um escárnio com o povo deste país, um desdém sem tamanho com quem ao final paga a conta deste convescote imoral.

 

Um semi-deus juiz recebe em torno a cinco mil reais de auxílio-moradia, uma verba sobre que não incidem imposto de renda nem contribuição previdenciária! Por que? Qual a razão disso? O salariozinho irrisório de R$ 30.000,00 não permite o juiz morar em algum canto? Por que todo o restante das pessoas mora à custa dos seus salários e os juízes não o podem?

 

 

Recebem auxílios para se alimentarem, auxílios para pagarem as escolas dos filhos, auxílios para comprarem livros, têm 60 dias de férias remuneradas ao ano, enquanto os mortais têm 30, têm recessos remunerados. Isso são privilégios injustificados, nada mais.

 

Essas aberrações nada têm a ver com garantias para o exercício das funções, são privilégios sem previsão legal, o que é mais grave. Por que em toda parte juízes desempenham suas funções sem essas aberrações remuneratórias e aqui não é possível? Claro que é possível, o que falta é controle social sobre esse corpo autônomo dentro do Estado brasileiro.

 

Falta a esta corporação noção de risco, falta noção de solidariedade social, falta autocrítica, falta conhecimento humanístico, falta autenticidade, falta legitimidade democrática para atuar como legisladores. Para investir contra os cofres públicos desta forma e torcer a constituição do país corriqueiramente a bem de a interpretar, o mínimo que seria necessário era ir a votos ou empunhar armas.

 

Eles contam com a blindagem da imprensa, que silencia sobre essas aberrações enquanto eles estiverem juntos na cruzada golpista e entreguista que paralisa o Brasil. São tão ávidos e imediatistas que não percebem que a imprensa os abandonará tão logo tenha êxito no seu desiderato político, se o tiver.

 

Os realmente poderosos que guiam a imprensa e o judiciário sabem muito bem que se chegarem ao poder central terão de se livrar desta monstruosidade, tanto pelo custo estúpido, quanto pelo que representam de instabilidade, sempre origem de decisões conflitantes, algumas absurdas, outras voluntaristas e quase todas tendentes a gerar o desgoverno.

 

Talvez a única coisa auspiciosa de um governo entreguista direitista resultante do golpe, caso tenha êxito, seja precisamente o expurgo que haverá na corporação.  Isso, porque ninguém governa com uma corporação destas por perto.

 

 

Mas será terrível também porque é previsível que este movimento pendular obedeça à lógica esquizofrênica que governa as mudanças no Brasil. Se o golpe tiver êxito, os golpistas não partirão para ajustar e por os necessários limites a esta instituição fundamental: farão terra arrasada e se servirão da imprensa para desqualificar o judiciário, como sempre fazem com os grupos potencialmente incômodos.

Michel Temer entra no golpe.

Para os reais patrões do golpe de Estado que está em marcha no Brasil pouco importa que ascenda à presidência Pedro, Maria ou João; pouco importa que seja preto, branco, amarelo ou verde, desde que entregue o petróleo.

Porém, para os agentes internos, políticos profissionais, importa muito, sim, quem ascenderá, porque o poder, mesmo num país espoliado de sua maior riqueza, é sedutor e meio de vida desta gente. O festim no Estado ainda é muito grande mesmo sem as riquezas do pré-sal.

A facção golpista funciona como uma máfia; todos desconfiam de todos e não é senão ingenuidade ou jogo de cena usar o termo confiança. Ninguém se esforçará para dar o golpe para a ascensão dos outros. Para ser sócio minoritário, pode ser melhor deixar como está, principalmente para o PMDB, partido do vice-presidente Michel Temer.

Recentemente, Temer entrou no golpe explicitamente. À partida, foi uma bela jogada que, a par com a manobra desesperada de Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, parecia ter sido o prenúncio do xeque-mate na honrada presidenta Dilma Rousseff. Todavia, a matemática do golpe é complicada.

A adesão do vice-presidente ao golpe seria capaz de envolver na manobra uma peça fundamental: o PMDB, partido sem matizes ideológicas, extremamente capilarizado, sempre sócio de todos os governos desde a redemocratização. À exceção de um ou outro quadro com densidade ideológica e honradez, o PMDB sempre tem sido um partido de aluguel; o maior deles.

Sem o apoio deste partido e depois que Eduardo Cunha admitiu a abertura do processo de impedimento da presidenta, qualquer governo cai, no Brasil. Acontece que o falso motivo jurídico invocado para o impedimento atinge também Michel Temer.

A abertura de créditos orçamentários que dependiam ainda de ajustes na meta fiscal – uma coisa muito corriqueira e sempre feita, para que o país não pare – foi feita também por Temer, em várias ocasiões em que esteve no exercício da presidência.

Logo, a puerilidade invocada como motivo para impedir Dilma atingiria o imaculado Michel e a coisa teria enormes chances de sair do controle e serem ambos derrubados por um falso motivo. Não é muito inteligente supor que o PMDB trabalhará para derrubar o puro Michel também, depois de perder o honesto Eduardo Cunha, que, hoje, precisa ser logo expurgado, pois mais dificulta que facilita o golpe.

O Eduardo Cunha tentou chantagear o governo com a abertura do processo de impedimento. Do ponto de vista dele, não resultou bem. Ele fê-lo como estratégia pessoal de defesa no processo aberto para sua própria cassação. Hoje, desesperadamente, ele retarda os andamentos de ambos os processos. Ou seja, para os golpistas é melhor que se vá logo, mesmo que leve consigo um ou outro parlamentar que navegou nas suas caudalosas ajudas eleitorais.

O Cunha fez o que se esperava dele, mas agora precisa ir-se para destravar o processo. Acontece que ele não quer sair de onde está, até porque, como muitos sabem e dizem, não é um mau lugar e ele precisa de mandato e de não sangrar, porque se verter sangue as piranhas da inquisição o pegam.

O golpe que leve Dilma e Michel juntos não interessa ao governador Alckmin, evidentemente, porque instalaria na presidência o senador Aécio. Obviamente, não interessa tampouco ao senador Serra, que queria ser ele mesmo o homem a servir aos patrões o precioso óleo mineral. Ademais, Serra não teria quaisquer chances para 2018, tanto por ser péssimo nas urnas, quanto por ser detestado por Alckmin, que hoje manda no PSDB.

Em um partido como o PSDB, nenhum desses dois políticos paulistas proeminentes acreditaria em acordo com Aécio para que ele, uma vez instalado na presidência, não concorresse em 2018. Haveria, isso sim, a desintegração do partido, em lutas fraticidas piores que as ocorridas nas últimas presidenciais.

Por outro lado, a tentativa de focar o golpe do impedimento apenas em Dilma, quando os motivos invocados atingem tanto ela quanto Michel, seria muito arriscada. As farsas devem ter tamanhos adequados, não convindo as exagerações demasiado grotescas.

Claro que sempre há um punhado de juristas de algibeira a soldo da imprensa dispostos a sustentarem a aberração de que o processo de impedimento é puramente político. Não é. Puramente político, do ponto de vista teórico, é o processo eleitoral, principalmente tratando-se de eleição para cargos majoritários.

O povo – detentor da soberania, ao menos em tese – vota diretamente para presidente da república. Os parlamentares, mandatários e, portanto, exercentes da soberania em segundo grau, em nome do povo, não podem decidir derrubar o presidente apenas porque o querem fazer. Os parlamentares não têm mandato para violar a vontade popular expressa na eleição do presidente, sem razões jurídicas sólidas para tanto.

Assim, o impedimento sem motivos antecedentes – a prática de ilícito que implique responsabilidade do presidente – é um impedimento de fancaria, uma inconstitucionalidade clara como o céu de Brasília, uma coisa que pode destampar reações inesperadas, de tão farsesca.

O chefe de Estado eleito por maioria do povo não é apeado do cargo por capricho ou porque o parlamento acha que está sem condições de governar. Não cabe ao parlamento revogar o mandato outorgado pelo povo por qualquer outra razão exceto a pratica delituosa nítida. E, no caso de tentarem separar os casos de Dilma e Michel, terão de partir para tal aberração.

Claro que aberrações têm sido comuns no jogo político, seja ele jogado no congresso, seja nos tribunais. A destruição do Estado de Direito já vem de algum tempo e é realizada sistematicamente pelo judiciário e pela imprensa. Todavia, nos últimos processos políticos conduzidos nos tribunais fez-se hercúleo esforço para manter as aparências, para que parecesse haver forma jurídica.

No caso do impedimento não antecedido de motivos e focado apenas na presidenta, a fraude será desmedida. Até os processos políticos que contam com o acobertamento da imprensa requerem proporcionalidade. Quando um processo é visivelmente desproporcional, acontece o que se dá diante do muito feio, diante do grotesco: a incompreensão.

O STF deve julgar, não se vingar, se emocionar, ou se indignar.

Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.

§ 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.

Constituição da República Federativa do Brasil

Não tenho quaisquer especiais simpatias ou antipatias pelo Senador Delcídio do Amaral. Não votaria nele para qualquer cargo eletivo e isso não somente a partir dos acontecimentos desta semana, notadamente sua prisão ilegal.

Tenho, sim, profunda antipatia por um poder de Estado destituído de legitimidade popular que nega vigência à Constituição da República. Principalmente quando o faz por meio do seu órgão máximo, a que compete precisamente a defesa da lei mais importante.

O aplicador da lei, ou mesmo o intérprete dela, se se preferir essa manobra semântica, não cria a regra geral nem a deve violar frontalmente, mesmo na forma sub-reptícia de negar-lhe vigência com amparo em discurso emotivo e farisaico.

A prisão do Senador Delcídio é uma aberração jurídica perpetrada pela mais alta corte de justiça do Brasil.

A prisão de um congressista somente pode acontecer em flagrante de crime inafiançável. Não há prisão preventiva de um congressista diplomado, segundo a Constituição. O decreto de prisão do Senador ampara-se no art. 324, IV do Código de Processo Penal. Essa norma diz que não será concedida fiança quando presentes os motivos que autorizam a prisão preventiva.

Essa norma veda a fiança, mas não amplia o rol dos crimes inafiançaveis. São inafiançáveis os crimes de racismo, de tortura, de tráfico de entorpecentes ilícitos, os crimes hediondos, de terrorismo, e de genocídio e praticados por grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático de Direito. Isto se encontra nos incisos XLII e XLIII do artigo 5º da Constituição Federal.

A prisão do Senador não foi pedida e deferida por qualquer um dos crimes inafiançáveis. Logo, teria de ter sido feita e acatada por crime em flagrante. Mas, em caso de flagrante, o preso teria de ser imediatamente conduzido à autoridade judicial responsável, no caso o ministro relator no STF, o que não ocorreu.

Não houve crime inafiançável, nem flagrante. A decisão é uma monstruosidade jurídica advinda do tribunal maior do país.

Os juízes do STF ficaram melindrados porque uma gravação ambiente sem conhecimento do gravado dizia que ele obteria vantagens inclusive por meio de juízes daquela corte. Ficar com raiva, com espírito de vingança, com vontade de punir exemplarmente é algo adequado a jornalistas de programas policiais vespertinos, na TV.

A vingança está no âmbito da honra privada, não da pretensão punitiva do Estado.

Neste caso, não estavam presentes as condições exigidas pelo parágrafo segundo do artigo 53 da Constituição da República. O decreto do stf é inconstitucional, portanto.

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