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Os CDS – Credit Default Swaps norte-americanos estão mais caros que os brasileiros, eventualmente e pela primeira vez na história!!!
Significa que, hoje, reputa-se mais arriscado um descumprimento de pagamentos norte-americanos que brasileiros!
Nada obstante, a malta banqueira nacional obriga o governo a pagar juros de 12% ao ano. Para quê? Para nada, além de enriquecer os rentistas.
Esse não é um país sério, definitivamente.
No ultimo domingo, dia 22 de maio, aconteceram as eleições municipais e autonômicas da Espanha. Desde algumas semanas antes, se iniciara um movimento, talvez pelo Facebook, talvez pelo twitter, que logo vi, mas pouca importância dei, talvez por estar desde sempre acostumado a não prestar atenção, nem participar, dos poucos movimentos que há onde eu morei.
O nome do movimento era movimento 15 de maio, e chamava todas as pessoas a irem para as ruas no referido dia 15, então uma semana antes das eleições, para demonstrar insatisfação com a situação política atual. Aqui um parêntese, a insatisfação não era contra o governo atual, e sim contra a situação política.
Além de muitos casos de corrupção, dos quais não me inteirei, as pessoas que fariam parte da manifestação, não se sentiam representadas por nenhum partido político espanhol. E aqui, outro parêntese, há mais de vinte anos, só dois partidos políticos tem chances reais de governar o país, o PSOE – Partido Socialista Obrero Espanhol, e o PP – Partido Popular. Não entro em detalhes maiores sobre os partidos, até por desconhecimento, mas como se pode observar com uma leitura primária, o PSOE é de esquerda, e o PP de direita, em alguns casos, com alguns remanecentes da ditadura de Franco que governou a Espanha de 1939 até 1975, quando morreu.
No dia 15, então, começou o movimento, e muita, quando digo muita, não tenho a mínima idéia de quantos foram, mas foi muita gente que participou. A rigor, em Madrid, na Porta do Sol, região central da cidade. A polícia tentou reprimir, no que inicialmente, logrou algum êxito, mas logo a multidão tomou a Porta do Sol. Essa manifestação, que propunha um acampamento na região central da cidade, seria só em Madrid, ou nas maiores cidades, digo isso, pois foi extremamente pouco divulgado nos meios de comunicação em geral, só passando a ser mais divulgado, quando se tornou algo, que mesmo nas menores cidades, já existia.
Na quinta-feira, estive no acampamento de Salamanca, que havia começado na terça-feira… Onde filmei esses 2 pequenos vídeos:
A Universidade Federal do Rio de Janeiro produziu um estudo nominado Segundo Relatório Anual de Desigualdades Raciais. Alguns números são reveladores do racismo brasileiro. Os pretos e pardos têm menos acesso à saúde e à educação, por largas margens. Por exemplo, os afrodescendentes com mais de 15 anos apresentam tempo médio de estudos de 6,5 anos e os brancos de 8,3 anos.
As diferenças já foram maiores e vem reduzindo-se muito lentamente. Mas, essas diferenças revelam o que se quer negar veementemente, a custo de agressões frontais à lógica e às evidencias. O combate à evidência intensificou-se com a adoção de políticas afirmativas de inclusão.
A base do ataque às políticas afirmativas, de reserva de cotas, por exemplo, é a negativa das diferenças e dos conflitos. Por outro lado, ao mesmo tempo em que se tenta combater as cotas raciais, tenta-se esconder que a situação de sempre configura uma verdadeira política de cotas a favor de uma minoria que se julga devedora apenas de si, individualmente.
O modelo social brasileiro é profundamente perverso e sofisticado. Ele conseguiu um êxito raro entre os grupos humanos: manter níveis de desigualdades sociais e raciais muito profundos e evitar a explosão que seria natural esperar-se. E fê-lo com níveis de violência sistemática mais reduzidos que em outras experiências do gênero, como a sul-africana, por exemplo.
Claro que há níveis de violência não sistemática avassaladores, ou seja, de criminalidade dita comum. Ela, de certa forma, desempenha o papel repressor que a violência sistemática e organizada tem nos modelos excludentes tradicionais. Ele é somente aparentemente aleatória, porque os números revelam que as maiores vítimas são precisamente dos grupos excluídos e que se devem controlar.
A contenção social e a punição violenta por meio da criminalidade comum ainda tem uma vantagem de cunho psico-social que é afastar a percepção individualizada de culpa, seja de um e outro indivíduo, seja do governo, seja de uma certa classe social. Ela parece mesmo aleatória, embora não seja.
As partes mais engenhosas do formato brasileiro de exclusão são os múltiplos disfarces sob que ele esconde-se. Muitos escritores de grande talento – intelectuais, diriam alguns – contribuíram esforçadamente para a consolidação da idéia de mitigação das diferenças. E, aparente contradição, fizeram-no celebrando uma miscigenação que não foi uma integração. O caso mais notável é o de Gilberto Freyre.
A celebração da miscigenação racial a partir de elementos curiosos ou pitorescos, encadeados com fibras de ciência social, firmou a noção da democracia racial, até mesmo da esculhambação racial, como se no Brasil essas fronteiras se tivessem abolido em um conúbio de lubricidade e promiscuidade racial profunda. O que pode ser muito verdadeiro em termos puramente sexuais, não tem qualquer sentido social, contudo.
Muitos se compraziam em comparar essa suposta democracia racial brasileira com a segmentação evidente ocorrida nos Estados Unidos da América. Ou seja, ativeram-se ao aspecto puramente sexual e cromático da questão, deixando de lado as resultantes estruturais na sociedade.
A miscigenação, no Brasil, deu ensejo a uma estratificação cromática, a uma escala de branquitude a ser galgada constantemente, ao longo de gerações. Uma escala que correspondia, quase que à exata proporção, àquela do ascenso social e econômico. Quer isso dizer que a miscigenação considera-se um caminho programático de despreteamento da população, algo muito diferente de democracia racial.
A configuração da estratificação cromática sempre foi eficazmente disfarçada pela crença na ausência de barreiras raciais, quer dizer, na carnavalização das relações entre indivíduos e grupos de origens sociais e raciais diferentes. O modelo impôs-se fazendo acreditar que existe, sim, hierarquia social, mas que não existe racial.
Todavia, os valores cultivados, nomeadamente os estéticos, também permitem ver que a hierarquização não é apenas social e econômica, mas racial. Claro que descortinam a questão mais sutilmente que os números reveladores da nítida exclusão por raça. Interessam exatamente porque são uma via de percepção mais sutil.
É notável que os padrões desejados de estética corporal, em sua maioria, claro, apontam para o branqueamento. Assim, em exemplo bem redutor, buscam-se cabelos claros e lisos e não o inverso. Buscam-se traços fisionômicos caucasianos e não é à toa que este país é o campeão mundial na área da cirurgia plástica!
É inegável que há forte miscigenação racial no Brasil e que as classes intermédias são compostas de mestiços. Porém, é também inegável que as classes dominantes, nos seus estratos mais altos – digamos os 02% – são quase integralmente compostas de brancos, que se apropriam da maior parte das rendas nacionais.
Os números e conclusões apresentados pelo estudo da UFRJ indicam que os pretos e pardos têm qualidade de vida inferior aos brancos, sob qualquer aspecto objetivo considerado. Ora, isso não tem outra explicação senão um profundo, dissimulado e continuado racismo. Sim, porque a única explicação restante não convém aos racistas atualmente, excepto por um e outro grupo francamente defensor de superioridades raciais.
Os líderes da dominação, de qualquer delas, sabem que precisam esconder, primeiro a própria dominação, segundo suas causas, terceiro sua inércia. Precisam exercer o domínio por meio do que os norte-americanos chamam soft power, ou seja, mediante o engano, a confusão e o disfarce.
Trata-se de asseverar que existe a igualdade e de pô-la nas leis, formalmente. Trata-se de assegurar que as oportunidades são iguais, ainda que o sejam somente nos papéis escritos. Trata-se, enfim, de esconder que há uma tremenda inércia social e que isso é decisivo para que alguém esteja onde está.
Se alguém consegue perceber, ainda que discretamente, o papel da inércia social, logo o modelo lançara nuvens sobre esse pedacinho de compreensão e falará como se tudo se limitasse ao recebimento ou não de heranças. Pois o domínio implica também em fazer ele mesmo a pauta de discussões e delimitar como os assuntos serão abordados. Assim, ele conduz às conclusões que lhes convém, ou conduz à falta de conclusões, à confusão e a mais nuvens.
É anátema ou apologia falar em ordem e em seriedade. A primeira, as pessoas confundem com repressão. A segunda, confundem com tristeza ou com a aparência formalmente compungida. As duas coisas não são o que o senso comum adotou como percepção delas; e faltam a esse país, ambas.
Repressão, já existe em demasia no Brasil e, ademais, de forma seletiva com pretos e pobres. Transborda seus efeitos, uma e outra vez, sobre aqueles que a glorificam, pegando-os aleatoriamente. Aí, é o escândalo, são os gritos, o fim do mundo, a reação bipolar.
Seriedade, para nós, é uma postura teatral. Há momentos para expressa-la, mas nunca é ua seriedade séria, em que se acredite. Sim, porque achamos-nos os felizes, os do carnaval constante, os únicos e exclusivos seres alegres do planeta. Acreditamos nisso como em uma revelação de carácter distintivo. Temos que sê-lo.
O povo recebeu o guia de comportamento, recebeu as linhas gerais de seus personagens sociais; ele os recebeu mais que os construiu, porque essa alegria, essa falta de seriedade, não se sabe o que são.
Fomos e somos profundamente infantilizados e vulgarizados. Somos capazes de reclamarmos de tudo e de compreendermos nada. Acreditamos que temos direitos vários, embora não os tenhamos, quase nenhum. Gritamos como crianças, falamos como crianças, chantageamos e somos chantegeados como crianças.
Como elas, somos enganados, recebemos um e outro afago; falam conosco naquela linguagem afetada destinada às crianças… e aceitamos.
Somos vulgares e rudes e achamos que isso é espontaneidade. Achamos, porque somos adultos, mas queremos que isso seja aceito porque queremos-nos aceitos como crianças! Estamos deslocados, a padecer de uma puerilidade adulta. Nosso comportamento é dúbio, cambiante, como adultos acanalhados a vagarem pela vida.
Tudo pode e nada pode, como se fôssemos 190 milhões de meninos e meninas, a quem se desculpa tudo. Partimos para o vale-tudo, porque tudo pode. Ao mesmo tempo, vivemos o vale-nada, porque a mão pesada da repressão e da vida miserável cai aqui e acolá, como por sorte ou acaso.
Na verdade, a mão pesada da realidade não somente cai, ela permanece a esmagar a maioria e a maioria… a ser infantil. E a reagir esquizofrenicamente a qualquer estímulo, sem perceber o jogo que joga. A maioria a ser guiada, mas não segundo um guião que construiu a passos lentos, ainda que de servidão, mas construído por seus passos.
Não, a servidão é dupla, é real e formal. É vivida e encenada e suas vítimas resignam-se a ela, nas duas formas. Acham que basta-lhes a possibilidade de fazer parte do caos, ativamente, para deixar de perceber o caos.
A liberdade de ser mal-educado, de expandir sua esfera individual até agredir as dos outros basta às pessoas para viverem sem qualquer liberdade. Deram o mais em troca do menos. Perdeu-se a civilidade para ganhar o direito a viver em aparente liberdade de ser-se selvagem.
Esse foi o diversionismo que 02% do país impôs aos restantes 98% dele. Ou seja, tu podes achar que és livre porque pões o barulho do teu carro a incomodar meio mundo, tu podes urinar ou defecar nas ruas, tu podes furar uma fila, tu podes dar um pequeno golpe de estelionato, para que uma escassa minoria possa apropriar-se de ti, para viver apartada de ti e passar as férias no estrangeiro.
Essa é tua liberdade, a de seres selvagem, fazeres de criança, falares disparates, trabalhares a salários miseráveis. Tudo isso para achares que és livre e manteres as coisas como estão, para 02% do total das pessoas do teu país viverem como querem e como sabem que querem.
Mas, precisarás de segurança pública, precisarás de andar nas calçadas. Ficarás doente, terás que por teus filhos em escolas. Terás o retorno que os selvagens infantilizados e vulgarizados têm, ou seja, qualquer farsa. E, se reclamares, dar-te-ão mais um carnavalzinho e mais um direito a te embriagares.
Se pensares em reclamar com um pouquito mais de crítica, terás uma revista semanal qualquer a te lembrar do roteiro de tua vida. Tens que ficar escandalizado porque um fulano maluco matou dez ou doze pessoas, ainda que teu dia-a-dia te mostre cem ou duzentos mortos tão ou mais reais.
Vais preocupar-te com os japoneses que morreram de um terramoto, ou vais falar de uma guerra em um país que não sabes em que parte do globo está. E tu podes ter rendas mínimas ou até elevadas, és uma criança de toda forma.
Logo, teu supremo direito a passar outra criança para trás, a cometer uma incivilidade qualquer, te fará esquecer até o guião recebido da revista de imbecilidades semanais. Assim seguirás, tolo, vulgar, grosseiro, certo de que és cordial e alegre, servo, sempre servo.
O problema das leis – o maior deles – é o tempo. Elas transformam-se ou mantém-se conforme o ritmo da vida do grupo que disciplinam. Elas têm a pretensão da permanência, mas esse desejo é incompatível com a História, porque vive-se. Mas, a dinâmica histórica é compatível com certos padrões mais estáticos, com certas balizas mais estáveis.
As leis costumam dizer porque se fizeram: é o dever de motivar uma imposição ampla e supostamente abstrata. Ou seja, elas se destinam a tratar de uma situação e devem explicar porque o fazem daquela maneira.
O sistema de fazer leis obedece à hierarquização. Assim, há leis mais importantes que remetem os detalhes a leis menos importantes, sucessivamente. As mais inferiores e detalhadas devem estar em conformidade às superiores.
A legalidade constitucional é tão frágil quanto uma roseira comprada no mercado, que já chega morta em casa. Ela rompe-se e, depois, põe-se no seu lugar outra legalidade constitucional, pois não falta quem escreva uma constituição.
Quando o rompimento é drástico, os problemas tendem a ser econômicos e políticos, ao depois. Quando é aparentemente suave, ou é disfarçado, ou negociado, os problemas são mais sutis, embora mais duradouros, com é uma ferida que não para de supurar.
O Brasil, em 1964, teve um golpe de Estado. Um golpe que teve resultado positivo, depois de muita insistência, pois ele foi tentado várias vezes, contra os governos de dois presidentes, Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek.
O terceiro – ou quarto, melhor dizendo-se – sucumbiu. O Presidente João Goulart foi deposto por um golpe de Estado, em 01 de abril de 1964. Instalou-se no poder um grupo que ainda não saiu dele integralmente, mas não é disso que se trata.
Vigorava no país, na ocasião do golpe de Estado, a constituição de 1946. Os que se instalaram trataram de modificar essa lei constitucional: primeiramente em 1967 e, depois, em 1969. Instituiu-se uma ordem constitucional mais restritiva de direitos e garantias individuais, a bem da segurança nacional. Abstraindo-se do que se considere segurança nacional, deu-se ao país um novo ordenamento jurídico.
Estabeleceu-se, enfim, uma ditadura, com militares à frente das posições mais destacadas no Estado. Instituiu-se um bipartidarismo farsesco, a possibilidade do presidente da republica cassar mandatos políticos livremente e eleições indiretas para a presidência.
Essa ditadura teve vinte e um anos de vida e cinco presidentes não eleitos democraticamente. Ela acabou-se quando julgou conveniente acabar-se; não foi derrubada, cansou-se. Deformou profundamente as mentalidades, instilou as idéias do oportunismo, da superficialidade e da aparência como fundamentos sociais.
Claro que essas três inclinações estão sempre presentes nos agrupamentos humanos, em maior ou menor proporção, por isso mesmo não é necessário estimula-las. As piores coisas vivem por si, não precisam de ajuda.
A ditadura que se queria regime de legalidade plena deixou seus agentes praticarem violências enormes, arbitrárias e ilegais contra os cidadãos. Sequestrou-se, matou-se, torturou-se, violou-se, espancou-se. A mim, parece-me que essa tolerância com a violência institucional era o pagamento aos servos médios. Deixava-se que se saciassem com sangue, enquanto outros saciavam-se com dinheiro. Cada grupo com sua paixão, enfim.
Em 1979, o regime político ditatorial, antevendo o esgotamento, fez passar no Congresso Nacional a lei nº 6.683/79, chamada lei de anistia. Interessa transcrever o artigo 1º e os parágrafos 1º e 2º dessa norma:
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).
§ 1º – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
§ 2º – Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.
O sistema constitucional brasileiro desconhece a inconstitucionalidade de normas produzidas antes da constituição vigente. É uma questão de coerência lógica. Todavia, existe outra maneira de aferição de compatibilidade de uma norma pre-constitucional com a constituição superveniente. Então, as normas anteriores à constituição, ou são recepcionadas pela nova ordem, ou não são.
Para julgar a recepção – conferindo os mesmos efeitos práticos de uma ação declaratória de inconstitucionalidade – existe a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF. Por meio dela, pode-se obter uma declaração do supremo tribunal federal sobre a compatibilidade de uma norma anterior com a constituição superveniente.
A OAB, por meio do excepcional trabalho de Fábio Konder Comparato, propôs uma ADPF para que o stf se pronunciasse sobre a compatibilidade, a recepção, em termos jurídicos, da lei de anistia com a atual constituição. Compatibilidade muito improvável, pois a Constituição veda a tortura e a considera crime imprescritível.
O supremo tribunal federal julgou a lei compatível com a atual Constituição, em atitude infamante e indigna de juízes que se supõem conhecedores da lei, da filosofia do direito e que, ademais, são os maiores magistrados do país. Foi preciso julgar contra a técnica e com amparo nas inúmeras variantes do discurso que, no fundo, nega a história e estimula a violação das regras. O stf agiu em desconformidade a qualquer coisa que se assemelhe a um poder judicial, porque alinhou-se à noção de que regras são desprezíveis.
A lei controvertida anistia os crimes políticos e aqueles conexos a eles. Aqui, deve-se ir ao ponto central, que é a conexão entre crimes. São conexos os crimes que têm a mesma motivação, que são praticados pelas mesmas pessoas e que são praticados nas mesmas circunstâncias temporais e geográficas, sendo as provas de uns dependentes das de outros.
Os crimes praticados pelos agentes do estado não são conexos àqueles praticados por quem resistiu ao regime ditatorial. Ora, crime político é aquele cuja motivação é atingir um regime político e não pode ser conexo aos crimes praticados com a motivação de defender esse mesmo regime. A diferença de motivação é de uma obviedade que leva a pensar que os defensores da conexão não agem por estupidez – que seria muita – mas pela histórica leniência conciliativa brasileira.
Os motivos de quem age contra ou a a favor de uma ordem política são tão diferentes quanto vinho e água. Uma interpretação correta leva à conclusão de que inexiste conexão entre tais delitos e que, consequentemente, a lei foi escrita por juristas incapazes que, embora querendo anistiar tudo, fizeram um texto que anistia apenas quem devia ser anistiado. Mas, nestas plagas, a pressa e a insuficiência intelectual são premiadas depois. As mesmas inclinações chancelam as intenções iniciais, a despeito do erro formal e material.
Essa piada levou o Brasil a ser condenado na Corte da Organização dos Estados Americanos, porque não se coaduna com os princípios a que os Estados participantes aderiram.
A justiça de transição não é a formalização de vinganças. É, antes, afirmação de que há direitos invioláveis, afirmação de que afronta-los implica riscos e, sobretudo, afirmação de que a história deve ser clara, de que devem estar presentes os elementos que permitam observa-la.
No Brasil, não apenas a pretensão à impunidade teve sucesso. A operação de lanças névoa sobre o passado também prosperou, tanto por meio da supressão de documentos, quanto pela consagração de uma tola ideia de inutilidade de falar-se da ditadura, como se o não falado inexistisse. É dos maiores triunfos que se conhecem, nessa área de imunizar-se a críticas.
O contrário do que se faz no Brasil está por todas as partes. Para cuidar de exemplos mais evidentes, basta evocar a Espanha, a África do Sul, a Argentina, o Uruguai. O caso espanhol mereceria um artigo próprio, dada a complexidade e a longevidade da ditadura superada e porque, além de tudo, envolveu uma guerra, no seu início.
Em geral, os países que superam ditaduras em que se violaram direitos de cidadãos, sistematicamente, por agentes do Estado, abrem acesso a todas as informações disponíveis. Assim, quem quiser pode debruçar-se sobre o suporte documental e escrever o que quiser, contra ou a favor. Quem disser algo pode ser contrariado por outrem, que viu os mesmos documentos.
Afastar a obscuridade e o sigilo é fundamental, porque eles só aprofundam a ignorância, a superficialidade e a tolerância ingênua de quem não sabe bem o que foi aquilo sobre que propõe tolerância. É um jogo de cegos e surdos, aos gritos e às tapas, um jogo se soma zero, enfim.
A ditadura militar de 21 anos foi grande vencedora, em detrimento do restante do país. Impôs sua forma de saída, impôs o sigilo sobre o que fizeram os agentes do Estado, concedeu-se – em mau português, é claro – um impossível perdão, estabeleceu as regras para a interpretação de si própria.
Deformou a percepção de democracia, de sistema eleitoral, de igualdade legal, de fronteira entre público e privado. Deixou de herança um partido que ainda hoje é ponto fundamental de sustentação política, um partido que nada mais é que a resultante da oposição consentida, com toda honorabilidade que as oposições permitidas podem ter.
Enfim, o Brasil, depois de 21 anos de ditadura, não teve ainda uma justiça de transição. Teve, antes, uma transição acertada internamente, sem justiça. E a maioria crê que isso não tem consequências.
Passeio de uma família abastada, de Jean – Baptiste Debret
É difícil isolar causas e consequências em um sistema dinâmico, principalmente se ele orienta-se para a manutenção de uma estrutura. As causas e consequências começam cedo por influenciar-se reciprocamente e conferem inércia ao sistema. É possível, apenas, deter-se sobre um e outro momento específico, para olhar-lhes à lupa e, nesse momento, falar com alguma propriedade de uma e outra causa e consequência.
O Brasil surgiu de uma colonização visando a exportar o que fosse possível, como nasceram vários outros países. Aos poucos, migram para cá alguns operadores do modelo colonial. Com o passar de algum tempo, esses vêm-se na contingência de guerrear e, então, assumem identidades um pouco afastadas dos colonizadores iniciais.
Está transplantado para o país já um modelo interno próprio, embora articulado a um maior, que envolve a metrópole. O que se transplanta e se instala na colônia é um modelo de sociedade mais vincadamente estratificado. Sua marca essencial é a diferença entre senhores e servos.
Claro que há inúmeros matizes e sutilezas na conformação social, mas nada que invalide o corte profundo a dividir as duas classes. Esse afastamento profundo é, inclusive, institucionalizado, porque o país adota a servidão. A sociedade que tem vastos contingentes a que se nega a personalidade jurídica é dividida por essência.
O afastamento drástico resultante da escravidão institucional projeta-se no futuro, muito além de sua extinção formal. Sim, porque antes mesmo de se acabar formalmente, ela tinha operado um curioso e perverso efeito. Ela tinha incluído na classe percebida como servil elementos que originalmente não tinham essa condição, do ponto de vista jurídico.
Quer dizer que indivíduos excluídos pela pobreza extrema foram incluídos no imaginário social na grande classe dos servos, assimilando-se a eles. Entretanto, a exclusão econômica de uns fê-los passar a uma classe caracterizada pela exclusão total, jurídica e econômica.
O conceito de servo, inicialmente bem delimitado pelo estatuto jurídico de coisa, foi estendido, na percepção social, para englobar todos os muito pobres. E, evidentemente, extrair-lhes o estatuto jurídico-formal da personalidade e da detenção de alguns direitos. Assim, quando extingue-se a servidão, do ponto de vista formal, o vinco já estava formado, a dividir quem age e quem sofre ação, independentemente de igualdades jurídicas apenas de discurso.
Sob um ponto de vista estático, a causa desse processo é a concentração brutal de dinheiros e poderes institucionais. Ela, a concentração, enseja um efeito nítido nas classes dominantes: a auto-referência. Realmente, o efeito produzido muito diretamente de um ambiente de poucos, que têm as instituições apenas para si.
É quase inevitável, portanto, que classes dominantes muito restritas e muito afastadas dos restantes – por diferenças marcadas profundamente – sejam auto-referentes, porquanto a realidade institucional, jurídico-formal, existe apenas para elas. Elas agem no quadro institucional como os associados a um clube exclusivo, ou seja, dentro de um subsistema próprio.
Na verdade, esse subsistema entende-se como o sistema todo, porque os restantes não são participantes agentes. Somente em momentos posteriores, o subsistema passa a ver-se como uma parte, mas ainda a parte que detém toda a esfera de poder institucional.
Toda a dinâmica social ocorre dentro do subsistema auto-referente e, assim, para ser-se um pouco agente é necessário ingressar nele. Fora dele, nem mesmo espectador alguém é, porque não compreende nem pode entrar na sala do espetáculo.
Um pouco ao depois, o sistema auto-referente percebe a necessidade de disfarçar sua existência, de fazê-la incompreensível, porque em certas situações só existe aquilo que se não vê. Ele, então, destaca as diferenças que existem dentro dele, as as estratificações internas em termos de maiores e menores graus de detenção de dinheiro e poder institucional.
Ele quer fazer crer aos que estão fora que suas diferenças internas são a prova de sua inexistência, ou seja, de que há uma estratificação natural e contínua na sociedade, não dois subsistemas nitidamente separados. Esforça-se, portanto, para apontar diferenças internas como provas da inexistência da grande e fundamental diferença.
A auto-referência produz estragos difíceis de reverter, nas individualidades. Ela é um modelo de pensamento que põe um restante, um grupo de seres outros, em referência ao sujeito. Nesse sentido, ela revela uma aparente contradição interessantíssima: sua exacerbação do individualismo não-republicano é o fator de sua coesão.
Ela induz a que todos procedam como se o sistema – incluindo-se obviamente o Estado – estivesse em função de várias predações individuais em competição de morte. Nesse estágio, o subsistema auto-referente já apresenta diferenças internas marcadas, aquelas diferenças que antes afirmava somente para confundir.
Como sua causa inicial é a concentração, que nunca cessa a marcha, o subsistema diferencia-se internamente, sempre a partir do critério de apropriação material e de poder institucional. Não obstante, o efeito inicial e agora causa também, a auto-referência, está presente em todos os integrantes, como inclinação fundamental de postura ante a vida.
Ela é o ponto de contato, o específico comum a todos, o elemento que identifica os diferentes dentro do subsistema concentrado. Em outro momento posterior, ela, a auto-referência, começa a desempenhar um papel mais curioso, embora não seja inesperado; ela funciona como armadilha.
Aquilo que é fator de coesão dentro do subsistema concentrado, tem efeitos diversos sobre seus diferentes níveis internos. Para os que se encontram no topo, uma restrita minoria, é o que move a crescente acumulação. Para os níveis médios e baixos, serve desempenha uma função que poderia ser objeto de investigação psicológica.
A auto-referência nos estratos médios e baixos do subsistema concentrado cega. São nuvens que impedem o sujeito diante do espelho de ver-se refletido, ele que só queria isso. E impede, mais obviamente, de supor qualquer coisa atrás do espelho. Ele continua a ter a noção de pertencimento, mas não de distância, e dá-se à servidão sem percebê-lo nitidamente.
Nitidamente, ele só percebe que deve ser evitada, a todo custo, a queda para o outro lado do fosso, para o outro subsistema, que nem mesmo é tão organizado a ponto de considerar-se sistemático. Todavia, a servidão, essa é-lhe inevitável e será aceita com mansidão.
Porém, como a dinâmica não cessa, nesse sistema que ignora leis físicas e tem inércia própria, o fosso também desloca-se. Essa deslocação, a par com a cegueira produzida pela auto-referência, é fator de loucura e bestialização.
O que falta, vou dizer a conclusão logo ao princípio, é exposição pública, é assunção de riscos correspondentes à natureza da atuação deles. Falo aqui do supremo tribunal federal, aquele que julga a constitucionalidade dos atos normativos no Brasil e que ocupa um espaço mediático maior que os tribunais congêneres, nos demais países com sistema jurídico assemelhado.
Ocupa maior espaço na imprensa porque reivindica maior poder político, embora já o tenha muito. O protagonismo crescente do tribunal gera toda sorte de mal-entendido e de análises e propostas disparatadas. Esse risco, o de fomentar a incompreensão, é indesejado, ao contrário do risco político puro.
Na semana passada, o stf julgou um recurso a envolver a aplicação da lei da ficha limpa. A tal lei foi elaborada por iniciativa popular, depois da coleta de mais de um milhão de assinaturas de apoio e de forte campanha com ênfase moralista e emocional.
O fato é que se acredita, no Brasil, que os políticos são piores que as demais pessoas, em termos de honestidade. Não percebo a coisa assim. Acho que o problema, neste país, é que existem políticos em demasia, esferas políticas demais, bastando tomar-se o caso do número de prefeituras municipais para compreender-se o que falo.
No relativo, a política equivale-se em quase todas as partes, porque se trata basicamente da mesma coisa, ou seja, tomar conta do público em benefício próprio, embora sempre a nega-lo. Claro que há diferenças no custo de oportunidade da desonestidade na condução política. E aqui, novamente, a diferença quantitativa brasileira faz a diferença qualitativa.
A existência de milhares de pequenos e minúsculos municípios, todos com suas prefeituras e câmaras municipais e estruturas administrativas, todos mantidos com dinheiros do governo federal central, torna o desvio de recursos públicos um convite fácil de aceitar-se. Uma estrutura dessas é virtualmente não fiscalizável.
Bem, o caso é que a lei da ficha limpa foi proposta, aprovada e sancionada e entrou em vigor. Previa a inelegilibilidade de quantos tivessem sido condenados ao menos por um órgão colegiado, ou seja, em duas instâncias. Ela entrou em vigor antes da convenções partidárias que escolheram os candidatos ao pleito geral de 2010.
Há um artigo na constituição federal dizendo que a lei modificadora do processo eleitoral não se aplica às eleições que ocorrem até um ano da sua data de vigência. A questão chegou ao stf, que decidiu, por seis votos a cinco, que a lei não podia ser aplicada às eleições de 2010.
O problema é definir processo eleitoral. De minha parte, acho que começa com as convenções partidárias e, portanto, a lei da ficha limpa não alterou o processo eleitoral, porque ele iniciou-se já sob novas regras. Mas, não quero discutir teses jurídicas, até porque uma questão decidida por seis a cinco é daquelas que ensejam discussões intermináveis.
Os candidatos impedidos pela lei da ficha limpa foram escolhidos por conta e risco exclusivos dos seus partidos políticos, que já conheciam a regra, evidentemente. Tiveram seus registros de candidatura indeferidos e começaram o previsível caminhos das ações judiciais. Munidos de decisões precárias, por serem liminares, apresentaram-se à votação, como se tudo estivesse muito bem e definitivamente resolvido.
Durante o período imediatamente anterior ao pleito e nos momentos que se seguiram, o stf furtou-se a decidir a questão antes da posse dos eleitos. Fê-lo ao argumento – hoje evidentemente falacioso – de que a corte estava desfalcada de um juiz, estava com apenas dez de sua composição de onze. E argumentaram alguns juízes que a responsabilidade por isso seria do Presidente Lula, que não nomeara o décimo-primeiro ministro a tempo.
Um sofisma que chega a ser tolo e que foi desmascarado facilmente, embora seus propositores façam de conta que não o formularam. Primeiramente, a corte podia, sim, decidir com dez juízes, porque o presidente pode e deve votar para desempatar. Segundamente, basta considerar que um dos ministros podia estar afastado por doença, por exemplo, e ninguém em são juízo diria que a culpa era do Presidente que nomeara o doente!
Decidida a questão agora, passados três meses das posses de senadores, governadores, deputados federais e estaduais, sucede que centenas de parlamentares, que foram diplomados e empossados, perderão seus mandatos, substituídos por outros que nunca podiam ter disputado o pleito, porque inseridos nas hipóteses de ficha-suja.
Não é desejável para uma democracia representativa o entra-e-sai de agentes políticos, ao sabor de decisões judiciais múltiplas e conflitantes e tomadas – ou não tomadas – inoportunamente sob argumentos pueris. Reforça a percepção de que se trata de um jogo obscuro – não falo de obscuridade mafiosa, mas de complicação mesmo – em que o voto é um detalhe, as regras são detalhes, de que ocorre uma luta de vale-tudo entre especialistas, algo de que o público, enfim, não tem a menor noção, nem participação.
Interessante é notar que essa insegurança patrocinada pelo judiciário, mais notadamente pelo stf, pretende-se baseada apenas na interpretação de normas técnicas, ou seja, fora das possibilidades de crítica de quantos não são os especialistas da corporação jurídica. Na verdade, não é isso que acontece.
O jurídico, qualquer que seja o fenômeno jurídico, está impregnado de política, pois trata-se de tirar algo de um para dar a outro. Ora, essa atividade não se faz sem escolhas que não sejam mais complexas que as escolhas prévias que a lei contem. O direito puro, mecânico, alheio a escolhas políticas é uma falácia.
Que assim seja, é natural. Não é natural que assim seja, mas pretenda-se de outra forma, a querer-se disfarçar em ciência pura o que é disputa minimamente organizada. Há balizas mais e menos gerais que contém a disputa, que a põem em termos mais ou menos previsíveis, que apontam alguns limites do absurdo.
Por conta das indignações emocionadas e previsíveis do público, volta e meia surgem idéias de reformas judiciais que, no fundo, nada mudariam ou mudariam para pior. Estas reações são, na verdade, as desejadas pela corporação, que reforça sua incomunicabilidade, seu hermetismo defendido ao argumento da especialidade própria e inatingível. Livra-se da discussão e do fogo aberto próprios da esfera política.
Somente poderiam reivindicar essa impossibilidade de crítica se estivessem no jogo como conceitualmente prevê-se que estejam: sóbrios, discretos, afastados, atentos à lei, sem antecipar decisões, sem manifestar-se sobre tudo, até o que não lhes diz respeito. Se assim procedesse, o judiciário – o stf – poderia reclamar o privilégio de não se submeter ao julgamento público amplo.
Mas, não. Joga como jogam os meninos que são os donos da bola, contra quem nada se pode dizer, embora queiram jogar. Fazem política, emitem opiniões sobre o que julgarão, julgam por voluntarismo mais que por legalidade e para isso não buscam legitimidade.
Há pessoas que vêm na forma de escolha dos ministros do stf um sistema errado. Isso é uma bobagem, o modelo é o único harmonizável com a forma de estado que a constituição desenhou. Um tribunal político não pode ser formado senão politicamente, pois, do contrário, não pode tomar decisões políticas. E as decisões de constitucionalidade são eminentemente políticas, o que não quer dizer que sejam aleatórias, evidentemente.
O tribunal constitucional não pode ser tecnocrático, ou seja, acessível apenas para os quadros de uma corporação estatal, porque esses quadros não têm legitimidade popular, não receberam um mísero voto, e a constituição diz – bem ou mal – que todo poder emana do povo. Nem uma leitura enviesada de Habermas dá suporte à idéia de um tal tribunal constitucional formado por burocratas escolhidos por concursos públicos.
No formato atual, os juízes são indicados pelo Presidente da República – a pessoa com mais votos no país, evidentemente – e são sabatinados pelo Senado da República, uma casa parlamentar de representação paritária dos Estados Federados. Depois, se aprovados na sabatina, são nomeados pelo Presidente para o cargo vitalício.
A vitaliciedade é um equívoco e os juízes do stf deveriam cumprir mandatos determinados, precisamente por ocuparem uma posição política. Muita coisa fala-se a respeito da duração dos mandatos políticos, em um sistema que se quer democrático. E fala-se entusiasticamente que eles devem ser limitados, porque a falta de limites seria contrária à democracia.
Pois bem, assim sendo, impõe-se que os juízes do stf cumpram mandatos fixos, porque este tribunal encarna um dos poderes da república que se diz democrática. Um poder que diz o que é ou não constitucional é mais legislativo que judiciário, na verdade. Faz escolhas em nível mais elevado que as do dia-a-dia do parlamento, porque trata de normas mais elevadas.
Em meio à confusão que se segue à indignação, as idéias mais absurdas e diversionistas podem frutificar. Eis que se propõe, agora, como reforma do funcionamento judicial, a supressão dos recursos extraordinários, ou seja, daqueles que vão além dos tribunais regionais. Essa limitação de acesso à jurisdição quer-se a bem de reduzir a morosidade.
Ora, os recursos não são os responsáveis pela morosidade judicial. Os responsáveis por essa imensa litigiosidade que se observa no Brasil são coisas de que ninguém quer falar. Suprimir recursos, reduzir prazos, mudar número de artigos de lei, é algo que deve interessar somente às editoras de manuais jurídicos.
O isolamento dos tribunais superiores, decorrente dessas idéias de os tornarem inacessíveis por meio de recursos, é a busca de concentração de poder. A busca do aprofundamento de sua natureza legislativa, que fica evidente nas decisões vinculativas e de aplicação geral.
A busca de poder, notadamente de poder equivalente ao legislativo, deve passar por discussões mais lúcidas, amplas e aprofundadas que essas que se lançam no calor de uma polêmica pública. Isso não é trivial, nem exclusivo de uma classe de iniciados, nem desimportante para o público.
Seria interessantíssima uma consulta pública sobre o judiciário que o Brasil quer ter. Seria interessante que se apontassem algumas das causas do entupimento dos tribunais de processos. Por exemplo, devemos milhões de processos ao voluntarismo aleatório-selenítico do ex-Presidente Fernando Collor.
Uma atividade governativa e legislativa inspirada na avalanche de um discurso de modernidade de fancaria, implicou na mais intensa supressão de direitos patrimoniais que já se viu neste país. Desde o confisco puro e simples do dinheiro das pessoas, as demissões arbitrárias de funcionários públicos, à supressão mágica de índices de inflação, além de outras coisas do gênero. Isso gerou um passivo judicial imenso, evidentemente.
Ao invés de se pedir a supressão de recursos judiciais, os senhores togados deviam pedir ao governo que reconhecesse suas dívidas e as pagasse, extinguindo as demandas. E que não voltasse a andar de braços dados com a loucura de medidas emergenciais com bases jurídicas que devem ter sido forjadas por primeiro anistas ou pândegos a divertirem-se com os problemas que estavam criando para o futuro.
Ao invés de deixar de julgar alegando impossibilidade pela falta de um ministro e de pôr a culpa disso no Presidente, deviam julgar com quantos se encontrassem, porque isso é possível.
Pode ser bom escrever com raiva, desde que se saiba bem estar possuído por tal inclinação. Saber-se disso já é deixar a raiva escoar. E, escrever nesse momento mantém a incisividade que o passar do tempo pode retirar.
A escassez de médicos e outros profissionais do tratamento de saúde cobra um preço enorme da sociedade. E gera boas remunerações para os que aí estão, mas não é disso que se trata, não se trata de ganharem bem ou mal, que entrar nessa discussão é cair voluntariamente em armadilha.
O problema é do outro lado, ou seja, do lado dos destinatário dos serviços. Esses pagam – ou o governo paga por eles, embora haja médicos que recebam dos dois – e recebem um serviço ruim! Recebem um serviço pouco, qualitativa e quantitativamente e demorado e arrogante e que se supõe impossível de ser de outra forma.
Abram-se faculdades de medicina em cada esquina, pois. Aumente-se o número de médicos, para que o serviço melhore, ao menos quantitativamente e que tenha reduzido seu componente de arrogância, derivado direto da escassez.
O argumento elitista e sofístico contra essa ampliação gira em torno a qualidade ou, melhor dizendo, a uma possível queda da qualidade dos profissionais. Esse argumento é, ele próprio, imensamente arrogante, pois baseia-se na suposição de que a qualidade de todos os profissionais é grande.
O que é grande, na medicina brasileira, são os investimentos materiais, em equipamentos, em clínicas com assinatura de arquitetos que se poderiam chamar decoradores do mau-gôsto dominante de cada ciclo de dez anos. Ontem, mais doirados, hoje mais painéis escuros, amanhã qualquer bobagem visual que a moda dite.
Só piora o que é bom, deve-se ter isso em mente, bem fixadinho, para evitar os raciocínios de inverdades óbvias. E a saúde, serviço público ou privado de resolução e criação de estados mórbidos não vai bem, neste país. É difícil fazê-la pior do que está.
Os grandes médicos são poucos, como em qualquer outra profissão. E isso faz sentido, porque os grandes problemas clínicos também são poucos. E os grandes médicos são precisamente aqueles que não se ocupam de fazer o discurso contra o aumento do número de cursos e de profissionais, porque sabem que isso é uma questão estatística.
A enorme maioria dos problemas é trivial, algo que um profissional que saiba ler e escrever e tenha boa-fé resolve. O grande problema, enfim, é de disponibilidade e de não se entregar à estupidez absoluta. Havendo uma e não havendo a outra, estará tudo bem.
Mas, os preocupados com a manutenção da reserva de mercado discursarão bravamente, eles mesmos que não fazem mais que atender em escala industrial, utilizando 10% de alguma ciência médica que tenham decorado na faculdade e tenham-se apressado em esquecer, ao depois de receber a carteira do CRM. É natural, quem faz reclama de quem fará o mesmo.
Mas, o triunfo do discurso pela qualidade – pelos que não trabalham com ela – implica na manutenção das esperas de três ou quatro horas por alguma bobagem, implica nas mortes de pobres em hospitais públicos, implica nas cobranças duplicadas ao governo e aos pacientes.
A questão é saber-se se o país, um conjunto discretamente maior que o número dos médicos, quer isso.
Contrata-se uma TV a Cabo, no caso a Via Embratel. O preço e os canais disponíveis estão claramente oferecidos em prospectos e no sítio de internet da empresa.
Como se trata de um contrato, cada parte tem suas obrigações. A do contratante é pagar polos serviços em dia, segundo os preços oferecidos pela empresa. Paga-se em dia.
A obrigação da empresa que ofereceu os serviços é entrega-los, na medida e na extensão do que foi contratado. Mas, o que acontece?
Acontece que nós pagamos o preço, nos prazos estipulados e a empresa não oferece os serviços na extensão contratada. Dois canais simplesmente não funcionam.
É simples, uma das partes descumpre sua obrigação. Fá-lo porque vale a pena fazê-lo, nestas paragens de tolerâncias imensas com serviços mal-prestados. O consumidor, se descumprir a sua parte, que é pagar em dia, tem o serviço cortado e pronto.
Quando o descumprimento é do prestador do serviço, as coisas complicam-se e não foi à toa que se fez um Código de Defesa do Consumidor, logo tornado em papel molhado.
O consumidor está condenado a telefonar para aqueles sistemas de atendimento que, ou não atendem, ou atendem com funcionários cujo objetivo é enrolar tudo ao máximo, resolver nada e levar o consumidor à exasperação e perda da paciência. Depois de sugerir toda sorte de tolice – como sugerir que os cabos não estão corretamente conectados – ele vai dizer que é preciso um chamado da área técnica.
Esses coitados que atendem às chamadas telefônicas cumprem um papel aviltante. Os filhos-das-putas são as empresas, que têm por política gerencial atender da forma que bem entendem e que se danem os clientes.
O consumidor, incauto e exasperado, pensa que tem grandes âmbitos de liberdade e pensa: vou deixar esta merda e contratar os serviços de um concorrente. Mas, o concorrente é a mesma coisa!
Viva a liberdade de lesar o consumidor – que é mesmo a parte mais fraca – viva o mercado, viva o capitalismo das cavernas…