Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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Deve-se negar ao dominador o conforto do soft power.

O controle social por meio de estruturas narrativas tem em seu estoque de meios a confusão permanente e controlada. É algo que teria uma metáfora razoável na reação nuclear em cadeia controlada por barras de grafite. Um processo meio arriscado, mas que gera muita energia.

A confusão permanente a que as pessoas são conduzidas impede-as de, criticamente, dissociar fatos e idéias que se ligam por nexos na verdade inexistentes. Por outro lado, a técnica impede as pessoas de associarem fatos e idéias obviamente conectados.

O que se vive é uma espécie de presente contínuo em que o ritmo é dado pela imprensa corporativa, que oferece fragmentos de realidades fáticas e oferece editorial, de forma a dar ao destinatário a cola que reunirá todo o sem sentido isolado. Isso dá um ritmo às vidas e gera dependência das pessoas.

O controle social por meio de narrativas em linguagem verbal e simbólica é o exercício ideal do soft power. Não somente mais eficaz, mas mais barato que o exercício do hard power, que, como o nome evidencia, implica a violência, verbal ou física, ou ambas juntas.

O problema maior da necessidade de se recorrer ao hard power é evidenciar que houve ruturas irreparáveis e que há quem negue, veementemente, legitimidade ao modelo dominante e o rejeite integralmente. Significa, enfim, que há que esteja percebendo por outros filtros e racionalizando por outras lógicas.

Sociedades com assimetrias sociais muito pronunciadas – como é o caso do Brasil – e com populações muito numerosas, recorrem a técnicas sofisticadas de controle social que permitam seguir adiante a apropriação brutal do feito por todos por um pequeno grupo. Isso deve ser feito sem que o explorado perceba-se como tal. Ou seja, é preciso criar o normal. Todos os processos devem ser normalizados e mesmo naturalizados.

Assim, cria-se ou delimita-se o campo de ação das pessoas sobre algum processo político. Ele está previamente dado por um certo número de abordagens pre-concebidas e todas tributárias da matriz levítica platônica. Todo o background teórico a partir de que as pessoas observarão o processo será moralizante.

A narrativa jurídica serve a este propósito normalizador, evidentemente. Para que isto funcione, no campo do controle social, é necessário que seja cultivado sem cessar o mito da imparcialidade da burocracia judicante, da mesma forma que se incensa este mito relativamente à imprensa corporativa.

Aceita a premissa de que estes campos do judicial e da imprensa corporativa regem-se por regras que asseguram o exercício de suas funções  imparcialmente – ou pelo menos que a imparcialidade seja preponderante – os resultados possíveis de qualquer embate estão previamente dados. Assim, o contraponto está previamente capturado. 

Os grupos contra dominantes centram suas narrativas na surpresa com a parcialidade de certas máquinas e em apontar incoerências internas a elas, o que é ineficaz em termos de contraponto. O ataque a modelos narrativos a partir de suas contradições é feito dentro dos modelos e, assim, não constitui suas negações.

Houve, no Brasil, um golpe de Estado que visou, basicamente, a duas finalidades: 1) alienar a soberania e as riquezas nacionais; e 2) conduzir um processo de reempobrecimento das classes baixas que melhoraram seus níveis materiais de vida entre 2002 e 2014. As duas finalidades vem sendo plenamente atingidas.

Há, por outro lado, grupos que se põem contra o golpe e suas finalidades. Mas esse contraponto tem muito pouca eficácia. Primeiramente, como algo originalmente planeado desde fora do Brasil, o golpe tem poderosíssimos suportadores. Neste ponto, convém dizer que os destinos brasileiros estão a depender muito mais da grande geopolítica que de qualquer coisa ou movimento interno.

Enquanto o império estadunidense tiver tempo a dedicar às desestabilizações na América do Sul, nós estaremos à mercê delas, sem muito a poder fazer. Todavia, esta dependência evidente dos processos mundiais não significa a total inexistência de um campo de atuação minimamente eficaz.

Esta ação implica compelir as forças dominantes a recorrerem ao hard power. Devem ser levados a exercerem a violência – verbal e física – abertamente, pois que um movimento brutal deve praticar brutalidades. Se ficam os dominantes a agirem no campo narrativo, sem necessidade de dar à luz a brutalidade pura, eles mantém-se tranquilamente.

O reempobrecimento avassalador dos grupos que tinham obtido significativas melhoras obrigará, por um lado, que o emprego da violência física torne-se mais intenso que já é. Mas este, disfarça-se em controle de criminalidade.

A brutalidade evidencia-se quando os grupos contra dominantes rejeitam, pura e simplesmente, as pretensões da institucionalidade. Rejeitam o jogo e suas regras aparentes, não recorrem aos seus meios de solução de conflitos e dizem as coisas claramente e sem a indignação que fica bem nos ingênuos.

As eleições que se realizarão em outubro de 2018, no Brasil, inclusive para escolha de presidente da república, não ocorrerão em ambiente normalizado institucionalmente. Elas seguem-se a um golpe de Estado e trazem este vício de origem. Quem as conduz pretende um resultado, que é qualquer um exceto um postulante nacionalista.

Um certame eleitoral assim não é legítimo, exceto se pudesse concorrer nele o ex-presidente Lula. Ele não concorrerá, evidentemente, porque não se dá um golpe de Estado tão sofisticado para levar o contra golpe apenas dois anos depois. 

Ora, os resultados são previsíveis, pois o processo é essencialmente viciado em tem objetivos claros. Não há ações que sejam demasiadas, nem ações de que o grupo dominante seja incapaz de adotar. Tudo é possível e tudo vale para seguir o projeto do golpe de alienação de soberania. Não haverá recuos, agora, por conta de escrúpulos jurídicos, por exemplo.

Assim, a única negação minimamente eficaz é aquela que se dirige contra o modelo. Se o processo é viciado, não se deve concorrer nele. Esse é o ataque mais veemente que se pode fazer, ou seja, negar o modelo e obrigá-lo a desnudar sua brutalidade.

Surpresa hipócrita e tentativa de legitimação.

A imprensa corporativa necessita investir constantemente no mito da imparcialidade. Nos momentos fraturantes, a mitologia começa a mostrar-se, a pouco e pouco, é verdade, claramente como farsa. Então, nestes momentos, é necessária uma remodelação das narrativas, de maneira a readquirir a aparência da imparcialidade e a continuar a confundir as massas receptoras de editoriais.

Os discursos agressivos, nesta etapa de readequação narrativa da imprensa corporativa, retrocedem. Inaugura-se uma aparente brandura, a partir da ênfase nas pautas de costumes e na surpresa com o que seriam efeitos indesejados ou, mais que isso, efeitos sem causas.

Em um país colonizado e alienado de sua soberania, como é o caso presente do Brasil, a imprensa corporativa serve aos interesses do capital financeiro transnacional. Ou seja, ela tem um lado muito claro e este não é o lado dos interesses da maioria do país. Mas, essa parcialidade evidente precisa ser disfarçada, o que implica um esforço constante de alterações pontuais ou drásticas – conforme o momento – nas estruturas narrativas.

Os discursos de estímulo ao ódio cego e descontrolado contra uma parte do campo ideológico cumpriram sua função e esgotaram-se já em 2016. O golpe de Estado foi dado, afinal, com uma facilidade que só pode surpreender os pouco acostumados ao estudo da história e da psicologia social. Com este objetivo cumprido e com os efeitos previsíveis nos cotidianos das pessoas, é necessário por em marcha narrativas da conservação da situação degradada.

Inicialmente, a imprensa pratica a dissociação entre efeitos e causas. As coisas são apresentadas como se entre elas não houvesse nexo, não houvesse ligação. Então, por exemplo, a evidência de que uma política recessiva produz recessão é apresentada como algo, ou acidental, ou um efeito indesejado e imprevisto ou, simplesmente, como coisa solta no ar, sem causas antecedentes.

É fácil dissociar causas de efeitos econômicos, por um lado porque esse esoterismo que atende pelo nome de economia é muito mal compreendido pelas massas. Por outro, as pessoas tendem a desacreditar das más intenções e estão propensas a crerem no equívoco, no erro de cálculo circunstancial ou mesmo na necessidade de se fazerem coisas ruins para que num futuro indeterminado colham-se os frutos das privações. Ora, frutos das privações é algo essencialmente contraditório, claro, mas talvez por isso mesmo seja algo em que se acredita tão prontamente. As contradições são muito convincentes.

Essa estratégia narrativa tem seus limites, evidentemente. A depender do grau de degradação das condições de vida das maiorias, suas propensões a racionalizarem a situação conforme aos modelos recebidos da imprensa corporativa reduz-se significativamente. Quando as coisas vão muito mal, a eficácia da dissociação entre causas e efeitos e da narrativa da culpa das vítimas reduz-se muito, até porque qualquer nível mínimo de racionalização implica algum conforto material e tempo.

Outra vertente da reinvenção mediática, após o êxito na empresa golpista e de aniquilação do país como soberano e provedor de mínimos sociais para suas populações mais carentes, está no investimento na pauta de costumes e das diversidades de grupos sociais.

Meio subitamente, os meios que estimularam fortemente o ódio fascista pequeno burguês contra pobres – que são pobres porque assim querem – contra mulheres ativistas, contra homossexuais e contra qualquer pessoa que se mostre razoável e não essencialmente maniqueísta adotam nas suas programações pautas caras aos grupos mencionados. Há aqui uma aparente traição àqueles que os média estimularam e criam-se unidos para sempre. Mas esta traição, se traição for, pouco importa, porque os efeitos desejados pela ênfase narrativa anterior já foram atingidos.

A traição revela que os grupos propensos ao ódio desmedido são, para os média, o que são todos: instrumentos na sua empresa antinacional e concentradora. Servem e deixam de servir e assim é sempre. A viragem serve a outro propósito muito caro à destruição nacional: a produção da confusão, das situações em que as próprias viragens narrativas surpreendem e geram o estado em que ninguém compreende nada.

Haverá quem pense que eles – os média –  afinal abraçam causas nobres de direitos de minorias, de tolerância sexual, religiosa, de direitos humanos. Ora, se assim fazem, afinal não eram tão nocivos como pensávamos e podem ter, anteriormente, apenas incorrido em equívocos, cometido erros pontuais de que agora redimem-se.

Além disto, o foco na pauta de costumes visa a um resultado que é o Santo Graal da engenharia social que visa a manter e aumentar a concentração de riquezas em cada vez menos detentores. Ela retira de cena a pauta econômica e social focada na redistribuição e nas formas e proporções das acumulações. As pautas das liberdades fazem parte das esquerdas abandonarem as pautas das desigualdades, seduzidas pelos direitos. Esquecem-se que sem os mínimos de sobrevivência material não haverá mínimos em termos de direitos humanos.

E assim a imprensa corporativa segue a conseguir legitimar-se, forte no mito da imparcialidade, a disfarçar editorial em notícia. Isto, todavia, como já cansei-me de dizer, tem limites. As massas, quando chegam a certos níveis de embrutecimento e empobrecimento, perdem a linguagem…

 

 

 

 

 

Competição por recursos escassos e senso de conservação.

Quando, em 1936, Miguel de Unamuno foi demitido do cargo de Reitor da Universidade de Salamanca, após o episódio brutal protagonizado por Millán-Astray, a Universidade não precisava mais de reitores, embora os pudesse ter.

As ações que visam à conservação – seja de situações individuais, seja de situações de grupos – requerem, para serem eficazes, que os conservadores não creiam no mito da invulnerabilidade. A primeira vontade não se concretiza na presença da segunda crença. A crença impede a eficácia da ação conservadora porque, no fundo, se há invulnerabilidade, não há necessidade de trabalhar pela conservação.

As maiores partes dos grupos intermediários que agiram ativamente para a consumação do golpe antidemocrático e antisoberania tem seus horizontes de conservação no contracheque do mês seguinte, no que emulam muito os políticos de varejo, que vivem um dia após outro na sua rapacidade, como se o mundo fosse acabar-se muito brevemente.

Alguns conservadores legalistas que não faltaram às aulas da alfabetização perceberam o encontro marcado com o paradoxo do serviço terminado e com a competição por recursos escassos e tendencialmente cada vez mais escassos. Essa escassez, inclusive, era previsível, porque o projeto que ajudaram a implantar propõe-se inequivocamente a produzi-la, no que se refere a recursos públicos.

Por um lado, para os que fazem contas e inserem-se no grupo que realmente exerce o poder, para agir à margem da constituição, há quem o faça mais barato e mais organizadamente. Na verdade, o Estado de exceção não é Estado na sua concepção consagrada no pós-guerra, embora a expressão esconda esta constatação óbvia. Logo, ele prescinde de estruturas jurídicas reais, bastando-lhe a aparência. E a aparência não precisa custar excessivamente.

Por outro lado, após o serviço ser completado não são necessárias ações excessivamente brutais e explosivas, senão como combustível para a selvageria que também vai contra o desejo de conservação dos agentes intermediários colocados no topo da burocracia estatal.

É verdade que o caos que toma o Brasil é funcional aos interesses dos grandes e futuramente únicos beneficiários da supressão ilegal da democracia. Sistema financeiro e a articulação dos saqueadores de recursos naturais ganharão sempre, mas apenas eles ganharão. O caos e a regressão econômica brutal, além da supressão dos sistemas de proteções sociais mínimas, significam perdas para todos. Claro que os eufóricos agentes operadores intermédios não o perceberam.

Muito embora o aumento das distâncias relativas entre as classes médias e as baixas traga um regozijo para as primeiras, é certo que, em termos absolutos, ambas regredirão em benefício do topo da pirâmide e em consequência da depressão econômica inevitável. O caos é funcional ao saque, mas não ao crescimento. Por isso, não deve ser grande surpresa se alguns grupos agentes internos operadores do golpe conduzam um processo de endurecimento.

 

 

 

 

Brasil a caminho de ser Líbia.

A regressão lenta e gradual da hegemonia estadunidense é o processo mais perigoso que já viveu a humanidade. São comuns as comparações entre os impérios romano e estadunidense, no que têm de paralelismos nas suas criações, apogeus e fases de declínio, mas o que se prefigura agora é diferente, para além das diferenças óbvias que há entre processos históricos separados por dois mil anos.

A exacerbação retórica contra os países malvados e perigosos, a russofobia que não teme o ridículo profundo, a provocação irracional e inútil à China, a multiplicação de ações de desestabilização política de países antes soberanos, tudo isso são sintomas do declínio. Não alinho entre os sintomas as múltiplas guerras, porque estas são inerciais e funcionais aos interesses do complexo industrial-militar; são, enfim, bons negócios.

As evidências são indisfarçáveis. As mais significativas delas são a histeria e o primarismo retórico, coisas de quem está com pressa e algum medo. O controle do médio oriente, que já foi absoluto, apresenta fraturas, depois que a tentativa de inviabilizar a Síria como país soberano fracassou. A rearticulação de forças por meio da aliança israelo-saudita não parece muito tendente ao sucesso.

A tentativa de sabotar as rotas comerciais clássicas entre a Europa e a China, por meio da guerra no Afeganistão, está em vias de exaurir-se e provar-se afinal inútil. O ensaio de tentativa de desestabilizar o sudeste asiático, para criar dificuldades para a China, será travado no nascedouro pela China. Afinal, esta última tem condições de reação e inicia os movimentos do que é a maior ameaça à hegemonia estadunidense: a compra de óleo por outros meios que não o dólar norte-americano.

O dólar norte-americano é meio de troca e reserva de valor universal. Enfim, uma moeda que é também um ativo, porque lastreada em petróleo e urânio enriquecido. Isso permite aos EUA criarem dinheiro muito à vontade e exportarem inflação, ao tempo em que importam bens e serviços. É a causa mais remota da situação peculiar dos EUA, que podem ser ricos mesmo quando perdem capacidade industrial e sustentam imensos défices.

Seria estúpido e irresponsável tentar prever datas, ou um cronograma definido das etapas deste processo. Contudo, é claro que a capacidade dos EUA de intervir e desestabilizar países e regiões, para instaurar o caos funcional à dominação, reduz-se muito nas áreas principais que são a Ásia, as estepes e o oriente próximo. As articulações entre China, Rússia e, em menor intensidade, destes com o Irã e pontualmente com outros países, minaram o poder de interferência na Ásia.

Que a Ásia, mais especificamente o sudeste asiático, seria esfera de influência da China, é algo trivial. Porém, que uma tentativa de destruição de um país, como na Síria, por meio de guerra por procuração financiada pela Arábia Saudita, tenha dado errado, é algo novo. O mesmo pode-se dizer da tentativa de destruição do Iraque que, ao contrário das expectativas iniciais, conseguiu reorganizar-se e alinhar-se ao Irã.

Essa modalidade de intervenção que se tem feito é, por um lado, a mais selvagem possível e, por outro, a mais rentável para os dois setores mais poderosos do império: as finanças e a indústria bélica. Para atacar um país soberano rico em recursos minerais – ou estrategicamente localizado – inicia-se por fomentar revoltas internas que, para qualquer observador atento, não fazem qualquer sentido, dada a desproporção entre a realidade e do que se reclama. Agentes infiltrados dão conta desta tarefa de alimentar com dinheiro e narrativa pronta as revoltas difusas e histéricas.

Chega-se a um ponto onde as fraturas sociais e de grupos étnicos ou de interesses são irreversíveis. É a fase da guerra civil, aberta ou fragmentada e localizada. Neste ponto, a imprensa corporativa, articulada intimamente aos interesses imperiais, começa a repercutir seletivamente episódios de violência, com mentiras se for necessário. A imprensa corporativa não tem quaisquer escrúpulos em mentir, isto deve ser repetido sempre que possível.

O conflito será alimentado com dinheiro e armas e com mercenários, se for necessário. Nesta altura, as estruturas sociais, estatais e de serviços privados estarão em ruínas, a magnificar a precariedade das vidas das pessoas. Deste ponto em diante, duas opções apresentam-se: 1 – deixar o processo degenerativo seguir adiante com os elementos originais desencadeadores, até que o antes país torne-se um nada; ou 2 – intervir militarmente com o nobre propósito de cessar a carnificina que o próprio interventor criou.

A escolha entre as duas linhas finais de atuação acima mencionadas dependerá de muitas variáveis, mas a mais importante certamente é ter ou não o país alvo grandes riquezas minerais. Caso tenha, é provável que sofra o ataque militar e depois experimente a ocupação por contingentes mercenários. Isto é muito lucrativo para o imperialismo, pois destrói um país e paga a guerra contra ele com os próprios recursos dele.

É algo esplêndido, como um produtor de bens ou serviços conseguir criar a própria demanda, como obrigar o outro a consumir o que não quis a esgotar suas economias. E, depois, ainda se empresta dinheiro a juros para o arruinado reerguer-se um pouco, para arruinar-se novamente mais à frente. Convenhamos, é um negócio muito bom.

Pois bem, o Brasil é riquíssimo em recursos minerais, nomeadamente hidrocarbonetos e minérios de ferro e bauxita, além de água doce. O declínio da influência e da capacidade de desestabilizar dos EUA, na Ásia e no oriente próximo fará com que se voltem ao quintal de sempre: a América do Sul. Aqui, ainda contam com o servilismo das classes alta e média alta colonizadas culturalmente e sofredoras de um patético complexo de inferioridade.

O processo de destruição de soberania e alienação de riquezas nacionais, que começou com o afastamento da presidenta Dilma, a partir de um compromisso entre a imprensa e as corporações estatais judiciais e com a participação relevante das classes médias, não culminará em situação estável e pacífica. Mesmo que não culmine com um contragolpe ou uma revolução popular, é certo que paz e estabilidade não são situações prováveis nos curto e médio prazos.

A degradação das condições de vida das classes média baixa, baixa e dos totalmente excluídos será muito rápida. É pueril achar-se que as insatisfações resultantes serão canalizadas de forma organizada por tal ou qual vertente político-ideológica. O controle social por meio de discurso mediático, neste estágio, será ineficaz. O controle terá de ser mediante violência física, a cargos das polícias e de serviços privados de segurança. Essa modalidade, porém, tem a desvantagem de retroalimentar a violência…

A partir de um certo de nível de conflituosidade e de instabilidade política – que provavelmente assumirá a forma de quedas sucessivas de governos e luta brutal entre as corporações públicas pelos recursos minguantes – estão dadas as condições para a intervenção do império. Convém apontar que, para o império, o caos é funcional ao saque de riquezas e este saque é mais vantajoso que um mercado consumidor mais ou menos organizado e pujante.

Após se terem apropriado das estruturas de produção de petróleo e gás, de extração de minérios, de produção de grãos e de acumulação de águas os agentes do império terão de proteger militarmente estas estruturas. Inicia-se a exceção formal e material à soberania neste ponto, com as autorizações de atividades bélicas abertas em solo nacional, ou por meio de mercenários de segurança privada.

Os três setores principais do império ganham enormemente com esta configuração. O complexo industrial militar vende seus equipamentos e seus serviços, o setor petroleiro saqueia o país parasitado sem lhe pagar nada e o setor financeiro oferece crédito a todos, bem como serviços de lavagem de dinheiros. E o pais destruído paga tudo, ou seja, paga pela própria destruição, e precipita-se no caos.

Este não é um cenário tão remoto para o Brasil, como gostam de pensar os que não anteciparam nada do que hoje vive-se…

 

 

 

 

Por medo e ignorância.

A classe média é o eixo de transmissão do poder. Não é ela que toma as grandes decisões, evidentemente, mas é ela que permite executar os planos dos reais detentores do poder; é instrumental, enfim. Isso deve-se, em parte, ao fato de ocupar os postos chaves da burocracia estatal.

Nesta classe estão os formuladores de narrativas de justificação do governo no interesse do grande capital, como são os acadêmicos e os jornalistas de ocasião, por exemplo. Essas personagens são necessárias para o estabelecimento do domínio mais ou menos pacífico das grandes massas de pobres e remediados.

Em geral, os indivíduos não têm consciência da articulação da classe nas estruturas que conformam o real e dão fluxo ao exercício do poder. E tampouco costumam ter consciência de seus papéis individuais intra-classe. Essa falta de percepção, ou percepção parcial e confusa, é fundamental para o bom desempenho de seus papeis esperados.

O ponto central é agir estritamente dentro da lógica da luta de classes, mas em mão única e sempre a negar a existência de luta de classes.  Esse grupo é levado a isto por obra da imprensa corporativa que, praticamente, tem apenas esta classe como público alvo, porque os extremos não precisam ser convencidos de nada e seria demasiado caro construir três narrativas distintas.

O medo e a ignorância, características destacadas desta classe, ajudam bastante na tarefa de levar o grupo a trabalhar pelos interesses dos de cima e para travar os avanços dos de baixo. Convém fazer a ressalva de que essa instrumentalização não significa que a classe média não atue por seus próprios interesses, embora os resultados para a classe dominante sejam maiores.

Os médio classistas são levados a identificarem-se com os estratos superiores, o que se percebe até na simbologia visual, ou seja, nos trajes e nos trejeitos que emulam. Acreditam numa comunhão de interesses, que seria baseada na aliança contra os de baixo. Sucede que a parte que lhe cabe na apropriação dos resultados do trabalho é muito menor que a destinada à classe dominante. E a desproporção é tamanha que bastaria para despertar quantos pensassem com as próprias cabeças.

São como feitores de fazendas, prontos a servir aos interesses do fazendeiro e açoitar os trabalhadores, em troca de pouco, materialmente, e da honra de sentar-se na mesma mesa uma ou duas vezes por mês. Fazer tais serviços implica um nível muito baixo de auto percepção, além de necessidades materiais, claro.

Ela vive a luta de classes, uma realidade tão tangível que precisa ser constantemente negada. Essa vivência dá-lhe medo das grandes massas, que anseiam por ganhos materiais na proporção em que quase tudo lhes falta. A classe média é suficientemente sagaz para perceber que alguma redistribuição pode ser realizada em cima da sua parte da apropriação e teme.

A contradição surge na percepção das relações com o grupo que está acima. Embora também tenha medo dos de cima, não é da mesma forma que teme os de baixo, pois há um elemento reverencial, próprio do medo que se tem do que se anseia ou se tem por modelo ideal. Não se percebe a luta de classes nesta relação entre médios e altos, para enorme benefício dos que estão em cima.

O médio classista tende a ser conservador e a acreditar, assim, que as coisas são de tal maneira porque são e não poderiam ser diferentemente. Por trás desse simplismo, claro, há vários argumentos e narrativas de justificação do é assim porque é, para que essa petição de princípios e primarismo abissal não se mostrem tão claramente. Haverá, sempre, o recurso ao que se convencionou chamar meritocracia, que é nada mais que inércia social.

Essa negação da luta de classes conduz, eventualmente, o grupo a buscar perdas para ele mesmo. Às vezes essas perdas são suportadas por causa da recompensa que é ver os mais de baixo perderem mais, porém nem sempre esse deleite demofóbico é capaz de anestesiar totalmente os efeitos do próprio retrocesso.

A desestabilização política no Brasil foi obra planejada desde fora. O consórcio entre imprensa corporativa e sistema judicial comandou as ações que culminaram no golpe de Estado e no caos que sobreveio. E nessa operação a classe média teve papel fundamental, pois foi ela a agente incansável no exercício dos micropoderes pouco percebidos.

Sucede que o caos é funcional ao projeto externo de apropriação de riquezas naturais, mas não é interessante para a classe média, principalmente acompanhado de depressão econômica e destruição programada do Estado.

 

 

 

O caos é uma face visível da superestrutura.

O processo político brasileiro atual não oferece a previsibilidade que os costumeiros analistas tentam apreender e expor. Ele só tem alguma previsibilidade no âmbito macro, se olhadas as coisas mais ao de longe, mirando-se as linhas mais gerais, nos seus aspectos geopolíticos, ou seja, nas articulações com interesses maiores e externos.

No plano micro, aquele das jogadas e movimentos cotidianos, oferece-se o caos e um nível elevado de imprevisibilidade. Isso mostra-se claramente no uso constante da expressão blindagem e na surpresa quando se verifica o levantamento desta blindagem relativamente a certas personagens, que são deixadas a arderem nas fogueiras da inquisição moralista pela imprensa e pelo subsistema judicial.

O interessante, realmente, é a surpresa tida com o efeito guerra total a que se chegou, presentemente. Esse efeito não se pode dizer resultado de um planejamento prévio meticuloso que antevia todas as fases do processo com boa definição e ordenação. Mas, ele é um efeito necessário da forma de domínio estrutural que há. Neste sentido, o caos – e pouco importa qualificá-lo aparente ou não – é produto da superestrutura e previsível sua instalação.

Que haveria caos era esperado, tanto porque os movimentos golpistas desestabilizariam um país grande e complexo, quanto porque o caos em si é um elemento estratégico. Mas, os movimentos intracaóticos, táticos e estratégicos, não tem um nível de previsibilidade que permita análises micro para além da narrativa do já acontecido.

É preciso identificar e isolar os grandes objetivos que subjazem ao movimento golpista no Brasil, para não se cair na mera narrativa do cotidiano, com a identificação de um e outro ponto tático: alienações de soberania e de riquezas naturais. Esses são os movimentos por trás de toda a dinâmica posta em marcha, em que o caos interno da guerra de todos contra todos é a face visível.

Os agentes locais da desestabilização do país – não apenas das formas democráticas – concorrem por poder e dinheiro, duas coisas que veem, ou de fora, ou do Estado brasileiro, ou das outrora grandes corporações privadas nacionais. Era previsível que esta concorrência se acirrasse a ponto de atingir a guerra ampla e, em alguns casos, a autofagia por erros táticos e estratégicos comuns nos processos demasiado vertiginosos.

Notadamente nas corporações públicas, percebe-se avidez crematística sem precedentes, exatamente no momento em que o Estado tende a reduzir-se, de forma geral, e em que reduz-se drasticamente a arrecadação, especificamente, o que é uma consequência obvia do ambiente recessivo. O nível de apropriação financeira a que chegou o subsistema judicial é insustentável e o grupo deve percebe-lo, o que talvez explique a lógica de levar ao máximo o mais rápido possível.

A obtenção de poderes formais ampliados é condição necessária do aumento da apropriação dos recursos do Estado. Para tanto, foram necessárias bodas com a imprensa corporativa, que é o cônjuge mais poderoso, embora se esforce para não o evidenciar. Desse casamento surgiu o slogan moralizante fundador: na política todos são iguais e sujos. Era necessário instalar esse moralismo esquizofrênico.

Todavia, convém lembrar que tudo isso é política e, assim, não se mata a política, nem se a refunda redimida de pecados. Apenas promove-se a troca dos ocupantes de certos postos ou se tenta a instalação do Estado corporativo, que atendia por outros nomes em tempos pretéritos. E a habilidade política dos políticos em sentido estrito tende a ser superior à dos demais agentes que se aventuram na atividade, sem antes terem pedido votos.

Fora de dúvidas neste panorama é que a dinâmica caótica seguirá como força condutora do processo por mais tempo e não parece ser pouco. E que, assim postas as coisas, os objetivos de alienação de soberania e de riquezas serão atingidos.

 

Demofobia. Ou, o anseio de que fossem ao menos invisíveis.

O grande dilema filosófico da classe dominante brasileira é se os pobres deveriam ser escravizados ou, antes, todos eliminados fisicamente. É uma dúvida que seria menos atroz se tivessem rudimentos de economia. Essa dúvida leva a que vagueiem a expressar sua essencial demofobia incoerentemente.

Não me entrego ao grande luxo da surpresa, real ou fingida, frente ao que conheço. Mas, ainda me impressiono, aqui e acolá, com as duas vertentes narrativas principais da demofobia: a clara e a disfarçada. Não sei realmente qual a mais perversa, até porque as duas variantes costumam ser usadas alternadamente pelas mesmas pessoas.

Semana passada tive de escutar uma estória interessante, da vertente disfarçada, que agride mais pela hipocrisia subjacente. Fato é que um fulano disse estar frequentando um parque público da cidade e que havia, gratuitamente, aulas de educação física para os presentes. Atividades específicas para velhos, atividades para jovens. Enfim, alguns educadores físicos à disposição dos frequentadores.

A surpresa do meu interlocutor residia exatamente em que as tais aulas públicas, em um espaço público, funcionavam! Ou seja, eram algo desejável, a custo nenhum. A partir daí, comecei a esperar as objeções e não as esperei somente dos tipos que dizem ser fácil fazer coisas boas. Não sabia exatamente qual objeção viria relativamente a algo que era percebido como bom.

E a objeção veio pelo viés liberal puro, pelo viés privatista. Disse o civilizado que aquilo devia custar muito à municipalidade. Ora, primeiramente isso não custa muito à municipalidade e, segundamente, mesmo que custasse era algo bom. E, em terceiro lugar, insisti, há coisas muito mais custosas e que não promovem o convívio e o bem estar em espaços públicos.

Mas, a insistência no custo persistiu, o que me fez antever o que viria a seguir, pois a estas alturas ficava claro. Meu interlocutor disse: deviam cobrar algo para entrar no parque, algo que fosse ao menos simbólico. Essa proposição é de uma estupidez tamanha que as minhas feições devem ter denunciado o que pensei. Achei que fosse válido ser honesto e redargui: o acesso a praças públicas não é cobrado em parte nenhuma do mundo.

Dizer que algo funciona de uma maneira uniforme no resto do mundo costuma ser eficaz para calar os brasileiros de classe dominante, cuja única vergonha real é a de falar inglês com sotaque. Como vivem a dizer que na Europa isso é assim, nos EUA isso é assado, costumam calar-se quando se diz que algo está exatamente como nestes lugares.

Mas, eis que o discurso demofóbico passou a basear-se nas duas vertentes: a explícita e a disfarçada. Enfatizou meu interlocutor que a cobrança que ele propunha era de um valor simbólico. Ora, se é simbólico, para que cobrar? Afinal, o que é um valor simbólico, o que ele simboliza? Feitas estas perguntas, meu interlocutor desagradou-se, o que era previsível, pois teria de pensar, ou ser sincero até o fim.

Essa estória do valor simbólico é a desonestidade intelectual que quase sempre se insinua impunemente. Se é simbólico no sentido de módico, não tem qualquer sentido como fonte de recursos para custear os serviços oferecidos ao público. Se não é simbólico no sentido de módico, visa a afastar os pobres, pura e simplesmente.

E assim, percebe-se o que é: não tem nada de simbólico como barato, porque nada é barato para pobres e miseráveis e, por outro lado, é sim simbólico, porque simboliza que o espaço pretensamente público é, na verdade, privado. A classe dominante brasileira abomina espaços públicos, porque os pobres podem estar neles, pelo menos potencialmente.

O pobres devem ser invisíveis e, preferencialmente, serem eles mesmos a optarem pela invisibilidade, para que a classe dominante não seja compelida a os mandar retirar e tanger para longe, violentamente. Ter de usar destas violências, inicialmente, fere os escrúpulos desta gente, embora não recuem se for necessário.

Eis que se criou um espaço público na cidade, que tem uma espécie de lago. E, como era evidente num lugar muito quente, as pessoas passaram a usar o espaço público e a banhar-se no lago. Um amigo contou-me as reações de asco de espécimes da classe dominante com os banhos dos frequentadores do espaço público. Viram nos banhos falta de educação!

Não é de educação que se cuida, que essa gente nem na tem, nem se preocupa muito com isso. O problema é percebido visualmente a partir de dois aspectos: a quantidade de gente no local e a cor das peles das pessoas. Se o lago estava repleto de gente a banhar-se, a pular, a mergulhar, a espalhar água e se todos ou quase todos eram de morenos para pretos, era um caso de falta de educação.

Este meu amigo disse que redarguiu para o grupo dos fiscais de educação: Ora, no verão infernal de Roma as pessoas entram na Fontana di Trevi. E o mesmo acontece na França, na Espanha, em Portugal… Foi perverso, muito perverso…

 

 

 

Expurgos e ganho de produtividade.

Uma conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze, ocorrida em 1972, foi recolhida no volume intitulado Microfísica do Poder. Em determinado momento, Deleuze diz algo interessante: Se se considera a situação atual, o poder possui forçosamente uma visão total ou global. Quero dizer que todas as formas atuais de repressão, que são múltiplas, se totalizam facilmente do ponto de vista do poder: a repressão racista contra os imigrados, a repressão nas fábricas, a repressão no ensino, a repressão contra os jovens em geral.

Essa visão total, essa articulação de vários subsistemas, indicam que o poder é muito sutil – como emanação variada, não como meios de atuação prática – e que, por outro lado, consiste em um movimento. Uma roda de bicicleta que desça sozinha uma ladeira é metáfora bem razoável para descrever-lhe a inercialidade.

A representação política é uma de muitas faces perceptíveis do poder atuante à luz do dia. Costuma ser a mais útil, porque geralmente calcada nas narrativas de legitimidade formal para a alocação de recursos do Estado. Mas, não é preciso, ou não é completo, dizer-se que o poder está somente no governo do Estado, ou seja, nas representações políticas e nas demais classes dirigentes corporativas.

Os exercentes de poderes de governo, em maiores e menores escalas, são tão intermediários quanto detentores de frações de poder que se exercem em determinado sentido, contra um núcleo de interesses opostos. Os agentes são identificáveis, mas o poder em si é difícil de identificar tamanha a integração sistêmica dos seus componentes. Acontece, porém, que rearranjos sempre acontecem.

Hoje, no Brasil, há muitos surpresos com os ensaios de expurgos internos no grupo amplo que assaltou o Estado para retomar a compressão social e alienar a soberania pouca que havia. Esses expurgos não são idênticos ao de Carlos Lacerda, por exemplo, mas obedecem praticamente à mesma lógica. Eles não serão apenas o que os apressados querem ver: desculpas para golpes maiores em líderes do campo oposto; não há grande necessidade destas desculpas, pois o mito da imparcialidade não ruiu.

O grupo dos intermediários na representação política reproduz-se e postos elevados podem ser reciclados com relativa facilidade. Os que existem mais ou menos para além da inercialidade são poucos, são os que conseguem por-se um pouco à frete e ao lado, para ver as coisas, e que conseguem fazer da teoria uma prática e vice-versa. Assim, há competição interna nos grupos, o que, de resto, é evidente, embora não tão evidente seja a intensidade a que chega.

Em essência, o expurgo interno tem uma causa principal e mais remota: desnecessidade. Um político pode ser desnecessário por uma de duas razões: ou não é viável eleitoralmente, ou não é útil porque as eleições a que visa não ocorrerão. Este fenômeno acontece em função do poder que advém do dinheiro e é, talvez, onde a parcela financeira do poder se exprima mais claramente, quando ele muda o equilíbrio entre os intermediários de que se serve.

Hoje, a intermediação mediática e pelos subsistemas repressores policial e judicial assume a frente, em detrimento da representação política. Claro que isso, também, sofrerá rearranjos posteriores, depois que façam o que deles se espera, mesmo que mantenham sempre poderes residuais e latentes prontos a ocuparem outros espaços e reivindicarem utilidades.

Feliz ou infelizmente, os preços das coisas importam e importam crescentemente à medida que avança a escassez de dinheiros, ou seja, nas depressões econômicas. O sistema busca ganhos de produtividade, ou seja, produzir resultados semelhantes a custos menores. Isso afeta a parcela apropriada pelos intermediários responsáveis pela produção de narrativas, por quase todos eles. E isso já é o prenúncio de outros deslocamentos e rearranjos de poder.

Afinal, produtores de narrativas não são assim tão raros e o grande número está quase sempre pronto a seguir projetos em que não tem interesses muito claros, como são os financeiros e econômicos. São, ainda como dizia Deleuze, mais desejos que interesses e desejos são mais difusos e profundos que interesses. O expurgo, na espiral moralista, compraz o grande número e só surpreende o expurgado.

Carlos Lacerda não previu nem aceitou seu expurgo. O que significa que, mais que não compreender os novos ocupantes do governo, não entendia o grande número de então.

O grande jogo não busca a imprevisibilidade, embora sirva-se da confusão espetacular. Ora, ao assistir calmamente o expurgo interno de intermediários esforçados, está dando a conhecer que os abandonados e os novos que pretendem substituir aqueles são, ambos, fatores de imprevisibilidade.

A extrema direita é um problema da direita.

É facílimo acostumar-se à liberdade de costumes e acha-la coisa natural, como a erva que brota sem aparentes semeadura e rega. Contudo, a liberdade de costumas é coisa bem outra, é obtida em processos tão lentos quanto penosos e, o que poucos lembram, é reversível.

As classes médias são, em sua grande maioria, polarizadas por pautas de costumes. E, ainda em sua parcela majoritária, apreciam estas liberdades, pois lhes permitem dizer asneiras à vontade e exercer a irreverência, que tomam como sinal maior de inteligência e independência.

Pois bem, grupos de classe média começam a experimentar o que podem ser sinais de fechamento do regime que agora se instala no Brasil. E a experiência causa horror e indignação nos mesmos que não as sentem quando os pobres e miseráveis experimentam brutalidades muito maiores e cotidianas.

Eis que no carnaval houve episódios de censura por opinião e prisões evidentemente arbitrárias e ilegais de grupos que nada mais faziam que afirmar o Fora Temer. Juridicamente, é uma aberração, mas não é esta aberração que mais impressiona. Politicamente, é mais aberrante ainda, na medida em que atingiu em cheio grupos de classe média cuja propensão a protestar é pouco mais que um hábito exótico de afirmação.

As pautas de justiça social e de redistribuição de rendas nunca seduziram muito as classes médias. As de costumes, todavia, sempre despertam muito interesse, seja pelo lado do fechamento, seja pelo da abertura. Tanto assim é, que próceres da direita alfabetizada perceberam a eficácia de discursos tais como o de legalização de entorpecentes, notadamente da maconha, bem como das uniões civis homoafetivas. Fernando Henrique é um exemplo.

Mas, era necessário, para consumar o golpe de estado, cevar a direita bestial de inclinação fascistas. O problema desse tipo de estratégia é que o fascismo da direita moralista não tem botão de liga e desliga e precisa ser esvaziado lentamente, por diluição.

Às primeiras concessões feitas ao controle de costumes seguem-se mais outras, pois os fascismos são muito vorazes e desconhecem a saciedade. Será um imenso problema para a direita liberal tratar com o avanço da direita selvagem, até porque o discurso civilizado pouco diz aos não civilizados e aos pobres e miseráveis, pois estes últimos não conseguem acreditar na existência do que nunca viram.

A manutenção da unidade das classes médias é fundamental para a implementação do golpe entreguista e concentrador de rendas. Mas, esta unidade – ou, pelo menos, não beligerância interna – implica que a pauta fascista retroceda. Já há sinais de que a imprensa tentará induzir este retrocesso, mas a eficácia deste movimento é duvidosa.

A outra face da narrativa meritocrática: a culpa.

Não é simples o sistema que subjaz ao estado de aceitação pelas massas de medidas que pioram evidentemente suas situações social e econômica. Há uma narrativa bem construída com técnicas consagradas de engenharia psico-social, que prepara o terreno para que as pessoas – em maiores e menores proporções, consoante suas porosidades à imprensa corporativa – aceitem o saque do pouco que têm.

Apenas o discurso das medidas amargas necessárias para que se abra uma era futura de bonança não é suficiente para que alguém aceite perdas drásticas. É preciso que uma narrativa mais sutil instile nas camadas psíquicas menos dependentes de linguagem a tendência a aceitar o discurso da necessidade do que é contra si mesmo.

Esse papel cabe à culpa, a face reversa do mérito. Se Deus dá tudo e tudo retira, o mérito dá e a culpa retira. Ou, mais precisamente, a culpa permite que se aceite a retirada e o seu discurso de justificação. É o alicerce pouco consciente – mas já conformado em linguagem, evidentemente – sobre que serão depostas e assimiladas as camadas narrativas da necessidade de sofrer.

É sofrer a expiação de um mérito que a sinceridade mais interna – aquela que aqui e acolá revela-se involuntariamente – sabe inexistir. O mérito que pouco é mais que inércia, que é muito próximo a acaso ou que é realmente mérito na detenção da arte de tripudiar, esse mérito o meritocrata tem contato com ele, intimamente, dentro de si mesmo. Nessas ocasiões, não há mentiras.

Essa sinceridade – digamos interior, por falta de palavra melhor – entre em choque com a narrativa cuidadosamente arrumada em linguagem, a que se projeta. Desse choque surge a culpa e estão dadas as condições para a aceitação da piora, quase como uma penitencia ritual.

 

 

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