Muito estranhamente, não havia tido ocasião de perceber que o guarda-chuvas é um aerofólio perfeitamente submetido às leis de Bernoulli.
A sorte ou a natureza pouparam-me estranhamente em ocasiões anteriores que me podiam ter feito lembrar o princípio baptizado com o nome deste francês ou suíço, matemático ou físico, que enunciou aquilo que faria voar os aviões e funcionar os carburadores.
Em certas condições – que não cabem aqui enunciar, nem estariam nas minhas capacidades – um fluido a movimentar-se mais rapidamente numa face dum plano implica pressão menor que na face de menor velocidade de deslocação.
Ontem, percebi que um guarda-chuvas é aerofólio tanto quanto a asa de avião. A pressão embaixo é maior que em cima, porque o vento em cima flui mais rápido. Daí que eles se põem pelo avesso, empenam os raios e perdem-se definitivamente.
O raro é que em sete, oito, nove, sei lá, dez vezes que me expus à chuva e vento constantes, diários, isso não tenha ocorrido. Pois ocorreu ontem e achei-me a rir, mesmo que ficasse encharcado de água fria. Só podia ter-se dado em Braga, comigo.
O engraçado é que a cena é comuníssima, mas a mim nunca ocorrera, certamente por favor dos deuses, que não me queriam rapidamente experimentado nas coisas mais comuns.
Há tempo, eles já me haviam levado ao chão, numa queda patética, depois de escorregar numa laranja, mas pouparam-me do mais comum, que devia acontecer depois. Não ouso questionar as razões deles.
Seria mais tolo que sou se achasse que fevereiro seria sem chuva e sem ventos. Tolo a ponto de não conseguir emendar três palavras seria se supusesse não estar frio. Nessas tolices não incorri.
Precisava encharcar as pernas dos joelhos para baixo, e inclusive os pés, daquela água gélida que impregna as calças e as meias como um aerosol lento. Dá uma impaciência tremenda, obriga a caminhar de cabeça baixa, a cuidar de não meter o guarda-chuvas na cara das pessoas que cruzam.
O verão de agosto não me traria aqui, exceto se por alguma obrigação ou premência. Nem me traria, nem se me trouxesse seria mais agradável que esse desagradável molhar-se e demorar-se a secar.
Isso tem nome em português: saudades. Mas, elas se foram tornando mais maduras e mais puramente saudades que necessidades. A primeira vez que se atende e sucumbe à necessidade, é o mergulho na confusão de sensações que aparentemente catalisam-se em euforia. As saudades imediatas são necessidades, paixões.
Amadurecem e- e convém dizer que o amadurecimento das saudades nada tem com o do saudoso – a perder o caráter duma paixão que sofre o afastamento. Solidifica-se como tudo que do quente passa ao frio.
O amadurecimento começa por revelar-se nos detalhes e as saudades fracionam-se, ficam detalhistas, específicas, exigentes mais de algumas coisas e mais frouxas com outras.
Maduras não são tristes como são as recentes, as apaixonadas. Sempre permanecem algo felinas, naquilo de ir ali e acolá para ver se certos lugares estão da mesma forma. Isso é praticamente invencível, não é poético, não é mais a esta altura melancólico; isto é, simplesmente.
As apaixonadas, recentes, matam-se em dias poucos. As mais distantes em dias poucos confundem. Não se sabe se os dias são poucos, suficientes ou muitos. O caso é particular e leva a crer que há saudades compostas, que talvez haja experiências compostas de mais de uma saudade individual.
Não faltavam apenas conversas com interlocutores tão inteligentes como estimados, Braga, chuva, frio e vento e as pedras do chão. Faltava talvez experimentar essa revisita com ausência velha e nova que deram saudades futuras; peço desculpas pelo paradoxo, mas haverá quem o perceba na sua total extensão.
Os tempos de maturação das percepções são quase todos diferentes, embora o subjetivismo de superfície se esforce para convencer do contrário. Há que se esforçar contra a superficialidade para que as saudades não se tornem na componente de uma personagem.
Esse texto é para ser compreendido.