Quero deixar muito claro que não se trata de fazer troça ou de manifestar reprovação eloquente e acusadora de um erro ortográfico. Realmente, quanto a essas posturas, nunca me esqueci de um trecho magnífico de Eça de Queirós, a propósito das pessoas que se apressam a acusar imediato o erro ou pequeno desvio de linguagem dos outros. Apenas não lembro mais em que livro dele está!
Duas coisas, na verdade, despertaram-me a atenção. Primeiramente, uma evidente e engraçada desproporção entre o anúncio escrito e os produtos que estão na prateleira. As letras falam em presunto, onde quase só se vêm queijos.
Em segundo lugar, como é pouco importante o que está escrito. Essa seção nominada de presuntos cuzidos deve estar no mercado desde a sua inauguração. E o que importa é a identificação visual, ou seja, as pessoas vêm presuntos ou queijos e isso basta-lhes, não se detém a ler o nome da seção. Ou lêem e não percebem qualquer problema, é claro.
Algo semelhante acontece com os sinais de trânsito – também uma linguagem codificada em signos gráficos – a que poucos dão atenção e menos ainda prestam obediência. Não há um intuito deliberado de desobedecer-lhes as ordens e recomendações, há um desprezo, pura e simplesmente, como se ali não estivesse sinal algum.
É interessante – e aqui refiro-me ao Brasil mais propriamente – que a pouca importância dada ao escrito permeia todas as classes, inclusive aquelas que se supõem mais cultas. Nestas últimas, muitas pessoas lidam com a linguagem escrita como as senhoras dos países colonizados lidavam com os adereços que viam as colonizadoras utilizando. Uma caricatura, portanto.
Não consigo evitar falar desse aspecto particular, pois convivo com ele. No meio em que trabalho, a linguagem escrita é o meio principal e as pessoas nesse setor pretendem-se bem alfabetizadas. Prezam muitíssimo a correção ortográfica e não recuam diante da oportunidade de acusar sarcasticamente o erro de um outro. Todavia, a esse zelo ortográfico correspondem defeitos lógicos – sintáticos – imensos, falta de clareza, rebuscamento de farsa e uma fala de doer nos ouvidos. Os plurais – essa suprema inutilidade – foram sumariamente abolidos e essa sim é a grande reforma gramatical.
Ou seja, o sujeito não acha realmente o manejo correto da linguagem algo importante. Ele sabe, por outro lado, que deve aparentar dar-lhe importância e aí surge a caricatura, quer dizer, a imitação, que é uma embalagem vazia e exagerada de enfeites. Pois são precisamente embalagens vazias em caixas rebrilhantes o que se movimenta em tribunais e outras repartições públicas e nas corporações privadas.
O mesmo – a imitação de algo em que não se acredita verdadeiramente – dá-se em outras manifestações humanas. A mais interessante delas é a cortesia mal imitada, porque no fundo as pessoas não percebem qualquer utilidade nela e são profundamente descorteses. É notável que se chegou a ponto de propor uma identificação entre espontaneidade e maus modos, ou descortesia. E nessa identificação é que a maioria das pessoas realmente acredita.
Por tomarem como a mesma coisa a sinceridade, a espontaneidade, o estar-se à vontade, com o portar-se mal-educadamente, sem qualquer polidez, é que são incapazes de qualquer comportamento mais polido, que será apenas uma imitação de algo em que não se acredita.
A reserva, confundem-na com soberba ou arrogância. A discrição, com falta de espírito. Daí que quando o sujeito encontra-se em situação que ele acha recomendar alguma dessas posturas, assume-as falsamente, como uma criança mimada cala-se à força e sem saber porquê.
É uma carga de simulação muito grande para uma sociedade, essa que impõe uma dualidade quase platônica entre o real e o aparente. O real é a vida diária e o aparente é aquilo que se representa como sofisticação. Ora, assim vive-se preso a uma lógica de dominação muito perversa, pois implica na assunção de que o real é bruto e o aparente é só disfarce, portanto não é sofisticado nem útil.
Ora, se as maneiras e usos caricaturais não são aceitas e desejadas realmente, que sejam abolidas sem mais. Se é uma simulação escrever plurais e aventurar citações latinas, enquanto fala-se algo totalmente diferente, que sejam extirpadas as flexões de número e o latim de nada. Se os bons-modos são um esforço tremendo de simulação, que se coma com as mãos e se fale aos gritos. Se a questão é de espontaneidade, que sejamos espontâneos!
Caro Andrei,
É com gratidão que leio o teu escrito. Gratidão pela intelegência da escrita, gratidão, ainda, pela sensibilidade que revela aquele que assim é. É um casamento de intelegência, sensibilidade e realidade, que se distende a quem te lê.
Se mo permitires, publicarei este teu escrito na nova janela mágica de virtualidades que é o facebook, para que te leiam.
Um abraço agradecido,
miguel
P.S. Espero autorização.
Prezado Miguel,
Autorização dada, prontamente. A demora foi culpa somente do trabalho, essa rotina infeliz de montes de processos.
Agradeço-te as palavras, Miguel.
Um grande abraço