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Uma gente proclítica e intransitiva.

Pronomes pessoais oblíquos querem mandar nos verbos, mas findam por deixar clara sua sucumbência a estes. Por serem oblíquos, não é o agente a comandar a ação, antes é a ação que consente em dar ao sujeito a posição de aparente comando, consente em que fique, obliquamente, na primeira posição, antesposto ao real.

Porém, manda o real e delicadamente permite ao sujeito – que já não é agente – que se insinue afirmando sua pessoalidade, obliquamente: Me dá! Curiosa afirmação de pessoalidade, que prescinde do pronome do caso reto: Me dá fica a parecer mais pessoal que Tu, me dá.

Intransitivos e, consequentemente, reticentes. Sem complementos, diretos ou indiretos, ação pura e, portanto, abstrata! Somos muito mais abstratos do que supomos, nós que nos queremos tão concretos e atuantes.

Queremos domar a ação, afirmar-nos principais em relação a ela, por-nos antes dela. Precisamos, pois, de uma ação sem complementos, aberta à compreensão das reticências, que precise antes da compreensão do sujeito para ser compreensão de qualquer outra coisa.

Assim, os complementos são um estorvo para nós. Eles podem conferir muita objetividade, muita concretude; podem reduzir drasticamente o campo aberto das reticências e as várias possibilidades da ambiguidade.

Se uma pátria – um pertencimento – é sua língua, somos, os brasileiros, isso mesmo: proclíticos e intransitivos.

A gente tem seus pertencimentos.

Acabo de ler uma das deliciosas crônicas de Joca Souza Leão, publicadas no sítio de internet pe360graus. O texto chama-se Pernambuco em Toledo e gira em torno a um episódio passado em 1976. Na ocasião, em Toledo, Joca reconheceu um conterrâneo pela gargalhada.

Pois bem, isso fez-me lembrar de uma coisa interessante e pensar em outras mil desimportâncias. Percebi, no ano que morei em Portugal, que consigo reconhecer brasileiros, principalmente nordestinos. Ora, isso é óbvio? Claro que é, porque passa por identidades culturais, mas são menos óbvias as percepções que as pessoas têm dessa possibilidade.

Por experimentação mesmo, uma e outra vez comentava dessa facilidade de reconhecimento. As reações mais interessantes – muito embora trata-se de uma obviedade – eram duas. Uns escutavam o comentário como se se tratasse da coisa mais exótica do mundo, ou de uma impertinência ou tolice imensas.

Outros, achavam que era a enunciação científica de uma coisa negativa, ou seja, da existência de signos identificadores que seriam basicamente maus-modos. Não é isso, todavia, pois essa percepção negativa é complexo de inferioridade e vontade de emulação do colonizado.

Uma vez que eu apontei uma tremenda falta de educação de um brasileiro, em uma crônica, não foi para dizer que o reconheci como brasileiro pelos maus-modos, foi porque o sujeito falava aos berros na Madeleine, que é uma igreja e em que havia uma missa naqueles exato momento. Identifiquei porque o fulano berrava no telefone celular em português brasileiro. Só não identificaria se fosse mais surdo do que sou!

Seria possível discorrer sobre os sinais que identificam um grupo e, no caso, os brasileiros e nordestinos, mesmo que não digam uma palavra. Mas, isso não é um ensaio científico, são impressões. Seria até arriscado enumerar os possíveis sinais, gesticulação, forma de andar, pois, de tão improváveis as distinções, pode parecer suposição arrogante.

Mas os sinais existem. E para capta-los basta conhecê-los e estar atento, seja involuntariamente, seja por esforço disciplinado. Percebo-os quase sem esforços, intuitivamente, embora isso seja o trabalho de muitos neurônios associando e dissociando memórias e conceitos.

Na verdade, extravagante mesmo seria se isso não fosse possível, porque então seria um mundo de homogeneidade avassaladora ou de pessoas absolutamente incapazes de identificações. E muita gente parece não gostar dessa carga de signos identificadores que carrega e expõe sem poder disfarçar.

São frequentes as figuras do brasileiro que não quer ser reconhecido, seja porque sua situação recomenda a assimilação, seja porque vive aquela presunção do cidadão do mundo que fala sem acento e veste-se como acha que um sueco da mesma idade se vestiria.

Bem, é verdade também que são numerosos os brasileiros que, ao contrário das figuras escamoteadas, afirmam-se efusivamente no estereótipo do simpático, falante, acolhedor brasileiro. Mas também esses, pouco importa que estejam representando um papel ou a si mesmos, estranham que possam ser identificados ainda que se calem ou não estejam com a camisa amarela da seleção nacional.

O fato é que se acredita na possibilidade do disfarce, suprema ingenuidade!

Presuntos cuzidos, no Makro, em Campina Grande, e outras divagações.

Quero deixar muito claro que não se trata de fazer troça ou de manifestar reprovação eloquente e acusadora de um erro ortográfico. Realmente, quanto a essas posturas, nunca me esqueci de um trecho magnífico de Eça de Queirós, a propósito das pessoas que se apressam a acusar imediato o erro ou pequeno desvio de linguagem dos outros. Apenas não lembro mais em que livro dele está!

Duas coisas, na verdade, despertaram-me a atenção. Primeiramente, uma evidente e engraçada desproporção entre o anúncio escrito e os produtos que estão na prateleira. As letras falam em presunto, onde quase só se vêm queijos.

Em segundo lugar, como é pouco importante o que está escrito. Essa seção nominada de presuntos cuzidos deve estar no mercado desde a sua inauguração. E o que importa é a identificação visual, ou seja, as pessoas vêm presuntos ou queijos e isso basta-lhes, não se detém a ler o nome da seção. Ou lêem e não percebem qualquer problema, é claro.

Algo semelhante acontece com os sinais de trânsito – também uma linguagem codificada em signos gráficos – a que poucos dão atenção e menos ainda prestam obediência. Não há um intuito deliberado de desobedecer-lhes as ordens e recomendações, há um desprezo, pura e simplesmente, como se ali não estivesse sinal algum.

É interessante – e aqui refiro-me ao Brasil mais propriamente – que a pouca importância dada ao escrito permeia todas as classes, inclusive aquelas que se supõem mais cultas. Nestas últimas, muitas pessoas lidam com a linguagem escrita como as senhoras dos países colonizados lidavam com os adereços que viam as colonizadoras utilizando. Uma caricatura, portanto.

Não consigo evitar falar desse aspecto particular, pois convivo com ele. No meio em que trabalho, a linguagem escrita é o meio principal e as pessoas nesse setor pretendem-se bem alfabetizadas. Prezam muitíssimo a correção ortográfica e não recuam diante da oportunidade de acusar sarcasticamente o erro de um outro. Todavia, a esse zelo ortográfico correspondem defeitos lógicos – sintáticos – imensos, falta de clareza, rebuscamento de farsa e uma fala de doer nos ouvidos. Os plurais – essa suprema inutilidade – foram sumariamente abolidos e essa sim é a grande reforma gramatical.

Ou seja, o sujeito não acha realmente o manejo correto da linguagem algo importante. Ele sabe, por outro lado, que deve aparentar dar-lhe importância e aí surge a caricatura, quer dizer, a imitação, que é uma embalagem vazia e exagerada de enfeites. Pois são precisamente embalagens vazias em caixas rebrilhantes o que se movimenta em tribunais e outras repartições públicas e nas corporações privadas.

O mesmo – a imitação de algo em que não se acredita verdadeiramente – dá-se em outras manifestações humanas. A mais interessante delas é a cortesia mal imitada, porque no fundo as pessoas não percebem qualquer utilidade nela e são profundamente descorteses. É notável que se chegou a ponto de propor uma identificação entre espontaneidade e maus modos, ou descortesia. E nessa identificação é que a maioria das pessoas realmente acredita.

Por tomarem como a mesma coisa a sinceridade, a espontaneidade, o estar-se à vontade, com o portar-se mal-educadamente, sem qualquer polidez, é que são incapazes de qualquer comportamento mais polido, que será apenas uma imitação de algo em que não se acredita.

A reserva, confundem-na com soberba ou arrogância. A discrição, com falta de espírito. Daí que quando o sujeito encontra-se em situação que ele acha recomendar alguma dessas posturas, assume-as falsamente, como uma criança mimada cala-se à força e sem saber porquê.

É uma carga de simulação muito grande para uma sociedade, essa que impõe uma dualidade quase platônica entre o real e o aparente. O real é a vida diária e o aparente é aquilo que se representa como sofisticação. Ora, assim vive-se preso a uma lógica de dominação muito perversa, pois implica na assunção de que o real é bruto e o aparente é só disfarce, portanto não é sofisticado nem útil.

Ora, se as maneiras e usos caricaturais não são aceitas e desejadas realmente, que sejam abolidas sem mais. Se é uma simulação escrever plurais e aventurar citações latinas, enquanto fala-se algo totalmente diferente, que sejam extirpadas as flexões de número e o latim de nada. Se os bons-modos são um esforço tremendo de simulação, que se coma com as mãos e se fale aos gritos. Se a questão é de espontaneidade, que sejamos espontâneos!