Lê-se que os juízes da corte constitucional brasileira querem ganhar salários de 30.000 reais. Acham que o atual salário de 26.000 reais é pouco. É tolo não fazer comparações ou não fornecer os meios de fazê-las, porque quase tudo interrelaciona-se e, portanto é comparável. Convém apontar também que os oportunistas não gostam de comparações somente quando elas descortinam seu oportunismo. Quando os ajuda, recorrem a comparações sem quaisquer pudores.

Pois bem. 26.000 reais equivalem a 14.800 dólares norte-americanos e a 11.300 Euros.  E 30.000 reais correspondem a 17.142 dólares norte-americanos e a 13.043 Euros. Não é pouco, nem o atual, nem o que querem receber os juízes. Na verdade, é muito mais do que ganham seus congêneres mundo afora e não há qualquer evidência de que valham mais que os outros.

As pessoas que argumentam a favor desse absurdo usam de sofismas, confundindo administração pública com negócios privados. Há muito predomina uma deformação intelectual, no Brasil, que consiste em utilizar a noção de mérito deslocada de sua real significação para o interesse público.

O critério orientador das retribuições por funções no Estado é de utilidade do serviço público prestado, não de mérito como se entende nas relações privadas. Realmente, a verificação de suficiência técnica que se faz por meio de concursos públicos não é uma forma de seleção propriamente meritocrática, porque este é um conceito que vai muito além da simples detenção de conhecimentos técnicos.

Por outro lado, no serviço público lida-se com a idéia de legitimidade, a partir de que as investiduras têm que estar conformes à lei e ao que antecede à lei: a vontade popular. Aqui, nada há que se aproxime minimamente dessa deformada idéia de meritocracia. O que se convencionou chamar de meritocracia é, na verdade, uma burocracia corporativa auto-referente e anti-democrática.

O absurdo dos salários juizais – atuais e provavelmente futuros – percebe-se em outras comparações, além das externas. Neste país pobre e desigual, o salário mínimo atual é de 510 reais. Equivale a 291 dólares norte-americanos e a 221 euros. O salário atual do ministro do tribunal supremo, por sua vez, é cinquenta vezes maior que o mínimo. E será, breve, cinquenta e oito vezes maior!

Isso é pago com dinheiro tomado de todos, por meio de tributos cobrados em um sistema altamente regressivo, ou seja, que penaliza os mais pobres. Trata-se da superposição de duas camadas de injustiça, que se mantém firme porque os pagadores não são chamados a dizerem o que acham do preço e dos serviços que têm em troca.

Claro que uma situação dessas apenas se mantém com doses maciças de desinformação e supressão de mecanismos de democracia efetiva, participativa. Porque, esses senhores, regiamente pagos, seriam totalmente incapazes de defenderem – com aprumo e clareza – que precisam ganhar tanto para fazer o que fazem.

Terão coragem de dizer que seus congêneres europeus ou americanos trabalham mal? Que são menos capacitados que eles? Terão coragem de enfrentar a realidade de que trabalho melhor é feito por preço menor, mundo afora?

Lembrava-me, agora, a propósito de democracia participativa, do sistema constitucional francês de referendos e da conformação que lhe deu Charles de Gaulle. A constituição francesa de 1958 prevê duas formas de ser emendada. A primeira é por deliberação do parlamento, com a aprovação do presidente, seguindo-se uma necessidade de ser adotada por 3/5 do parlamento, em sessão conjunta do senado e da assembléia da república.

A segunda implica também que a proposição chegue ao parlamento e seja adotada em termos iguais pelas duas casas legislativas e aprovada pelo presidente. Todavia, a segunda volta de aprovação conjunta por 3/5 do parlamento é substituída por um referendo popular.

Em 1962, de Gaulle subverteu a ordem comum desse processo e levou uma emenda a referendo, diretamente, que veio a ser aprovada. O Conselho Constitucional reuniu-se e deliberou por sua adoção, porque o referendo expressava a vontade do povo soberano e, portanto, era mais que qualquer deliberação parlamentar quanto ao poder de emendar a constituição.

Questão de conhecimento de teoria do estado e de direito constitucional, de amadurecimento político e de coerência entre forma e matéria. Ora, se a constituição é resultante do poder soberano e se este é de titularidade do povo, nada impede que a aprovação popular legitime alterações na constituição. Na verdade, essa é a verdadeira formula que se harmoniza com a idéia de soberania popular.

No Brasil, adota-se a fórmula da soberania popular, mas apenas formalmente. Procura-se afastar essa tal soberania o máximo possível, estabelecendo várias camadas de legitimações derivadas e de tomada de decisões por órgãos de representação. Que tal se buscássemos nos aproximar mais daquilo que propomos nos papéis? Que tal, por exemplo, se o povo opinasse sobre esses miseráveis salários dos coitados dos juízes?