Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Padre Cícero, livro biográfico de Lira Neto.

Padre Cícero Romão Batista


Um texto de Andrei Barros Correia.


Alcides ofereceu-me o livro Padre Cícero, escrito por Lira Neto, com entusiasmada recomendação de leitura. Disse-me que a prosa do autor é boa e o livro baseado em ampla pesquisa documental. Acabei de ler a obra e corroboro as impressões dele, o livro realmente é bom, o estilo simples e direto, as bases documentais apresentadas de maneira fácil.

Já havia lido uma obra sobre o Padre Cícero e os eventos supostamente milagrosos sucedidos no Juazeiro, na segunda metade do século XIX, um livro do acadêmico norte-americano de Columbia Ralph Della Cava, chamado Os milagres do Joaseiro. Esse é um interessante estudo, de alguém completamente estranho ao ambiente dos acontecimentos. Mas, é uma obra nitidamente de pesquisa acadêmica e, ademais, traduzida para o português.

O livro aqui comentado não sugere que os milagres tenham ocorrido, nem que se tenha produzido um embuste. Não promove o Padre Cícero a santo, nem afirma que foi um bandido. Não põe toda ênfase na religiosidade do Padre, nem na atividade política por ele desenvolvida. O autor – e isso é admirável – conta a história da personagem sem acusá-la ou santificá-la e, mais que isso, sem incorrer na aparente neutralidade de formato acadêmico.

Socorre-se da farta correspondência epistolar e telegráfica mantida na época, entre o Padre e vários interlocutores, nomeadamente os bispos, os cardeais inquisidores, os amigos e apoiadores, os políticos, inserindo-a exitosamente na narrativa. Muitas cartas e telegramas estão transcritos na obra, com pertinência cronológica e sem tornar cansativa a leitura. Preciosa correspondência! Tive reforçada a impressão de que o Padre viu-se em meio a uma situação que ele propriamente não criou mas, que depois de iniciada tampouco podia ser travada.

Punido pela igreja – sempre temerosa das manifestações de religiosidade mística popular – viu-se na contingência de defender-se como podia. E o fez pelos meios ortodoxos, frente ao tribunal do Santo Ofício, a Inquisição, e também por meios heterodoxos, pois tornou-se político. De fato, nem sempre é razoável esperar que um homem acuado e convicto de não estar a cometer delitos resigne-se às punições e indignidades que se lhe impõem.

Cícero Romão Batista nasceu na cidade do Crato, na região do Cariri, situada no extremo sul do Estado do Ceará, próxima às divisas com os Estados da Paraíba e de Pernambuco. Região inserida no sertão nordestino, assolado por períodos secos realmente trágicos e local de práticas religiosas tendentes a um misticismo próprio. Pobre e católica à sua maneira, enfim.

O padre estudou, quando jovem, em uma espécie de pré-seminário mantido na cidade paraibana de Cajazeiras pelo famoso padre José Maria Antônio Ibiapina, uma figura interessantíssima. Homem nascido em família remediada, Ibiapina foi advogado e deputado e abandonou a vida profissional e política para tornar-se missionário católico nos sertões nordestinos e sair a construir capelas, escolas, cemitérios, açudes e outras obras.

Posteriormente, Cícero ingressou no seminário de Fortaleza e ordenou-se sacerdote. Retornou à sua terra natal, o Crato, e terminou por instalar-se em uma pequeníssima e paupérrima freguesia chamada Joaseiro, a leste do Crato. Passou a cuidar da capela do local e a reunir uma comunidade piedosa, onde antes todos eram considerados vagabundos, bêbados e desordeiros.

Rapidamente, Cícero tinha ao seu redor um grupo de beatas, a viverem em função dos modelos religiosos então em voga: trajes próprios, intermináveis períodos de orações, comportamento litúrgico próprio e vida em comum. Esse formato comunitário agregava em torno à religiosidade e ao padre pessoas que não dispunham de estruturas familiares tradicionais, basicamente por conta do fator desagregador que é a pobreza da região.

Em 01 de março de 1889 deu-se o primeiro de uma série longa de fenômenos que logo foram considerados milagrosos. A beata Maria de Araújo recebeu a comunhão de Cícero e começou a entrar em estado de confusão. A hóstia tornava-se em sangue, na sua boca, na presença de outras beatas e do padre. O fenômeno aconteceu várias vezes e a ele acrescentaram-se outros, do rol dos milagres relacionados às transfigurações e aos estigmas de crucifixão. A beata também sangrava em locais habitualmente associados às feridas de Jesus no processo de tortura precedente à execução.

Rapidamente, os eventos causaram uma exacerbação de religiosidade popular em torno ao padre e às beatas e as notícias espalharam-se. Também muito rapidamente o Bispo de Fortaleza pediu explicações a Cícero e recomendou-lhe discrição e não divulgação das hóstias sanguinolentas. Cícero não se furtou a dar explicações ao Bispo, embora nunca tenha negado as ocorrências.

A narrativa da obra de Lira Neto evidencia o que outras também fazem: o padre assume uma linha muito clara de estar à disposição das hierarquias eclesiásticas para explicações, não afirma o caráter milagroso dos eventos, mas não os nega em qualquer oportunidade. Ele adota uma ambiguidade cuidadosa nas suas missivas ao Bispo, no que tange a deixar de falar do assunto e negar publicamente as ocorrências.

O Juazeiro torna-se em local de romarias e devoções populares apaixonadas e sua população aumenta significativamente. Para lá acorrem os pobres e desencaminhados de todas as partes do sertão, acolhidos sem distinções na localidade. O padre firma sua posição de líder espiritual e mantém controle sob a situação, ao contrário do que supunham as camadas superiores da hierarquia. Entretanto, as transformações da hóstia em sangue, na boca da beata Maria de Araújo, continuam.

A evolução do caso, sob a perspectiva do direito canônico e da ortodoxia doutrinária é deveras previsível, principalmente considerando-se que o Padre Cícero era insistente nas suas convicções. Menos previsível era a coerentíssima linha de defesa adotada por ele. Cícero sabia e dizia que semelhantes acontecimentos na Europa não eram causa de qualquer escândalo maior ou de punições.

Realmente, milagres desse tipo eram relativamente comuns na Itália, na Alemanha, na França, em Portugal, em Espanha e levavam a novas devoções, não a repressões e punições. Por que, enfim, não podia estar a ocorrer no Juazeiro? A proposição é o triunfo da lógica, mas a vida e as instituições conduzem-se por lógicas mais tortuosas e particulares. Não há como se afastar da conhecida noção de que a Igreja Católica temeu e teme a exacerbação da religiosidade mística nos sítios mais pobres. Era isso que ocorria, enfim.

Temia e teme que tais manifestações, afastadas do centro europeu, saiam do controle e, além de desvirtuarem a pureza doutrinal, acarretem complicações políticas. No caso brasileiro, estava então em curso um exemplo muito nítido. Antonio Conselheiro havia dado origem a um movimento místico milenarista que acarretou uma guerra em pleno sertão da Bahia. Quatro expedições do exército brasileiro foram necessárias para promover o extermínio do arraial do Bom Jesus e dos pobres seguidores do Conselheiro.

Todavia, as diferenças dos casos eram tão nítidas, que sua não consideração é sinal de ignorância dos prelados graduados, mais que de cautela. O Conselheiro não era sacerdote, nem tinha qualquer instrução formal. O Padre Cícero era uma figura totalmente diferente daquela do fanático andarilho dos sertões. Cícero era mesmo um conservador, tanto religiosamente, como politicamente. Não propunha qualquer coisa desviante dos padrões da ortodoxia católica, não invectivava contra o governo, não antevia o fim do mundo, nem via pecados e demônios por todos os lados. Não era um fanático, nem um ignorante, a toda evidência.

Contudo, mereceu quase o mesmo tratamento dispensado a fanáticos. Cícero foi suspenso de ordens pelo Santo Ofício, embora – e isso é bastante significativo – tenha ido a Roma defender-se no Tribunal o que não é minimamente aparentado com a conduta de algum fanático ou cismático! O padre era teimoso, o que pode ser outra palavra para digno. É pouco arriscado dizer que estava certo de não cometer qualquer infração a ensejar tão virulenta reação. Como destacado anteriormente, eventos daquela natureza eram relativamente comuns em plagas européias.

A partir de então, o padre defende-se com o que dispunha: a lealdade impressionante dos fiéis ao seu redor. E torna-se político! Mais extraordinário ainda, o Padre Cícero torna-se o fiador da ordem estabelecida, na medida em que é convocado pelo governo central a combater o que então reputava-se uma tremenda ameaça: a Coluna Prestes.

Insistiu, até morrer, em recuperar suas ordens eclesiásticas, algo impossível de se desprezar em favor de sua postura sempre como sacerdote.

9 Comments

  1. SUSY MORAES

    De fato, o tema relativo ao Pe. Cícero (a suspensão) merece nova análise no Vaticano. Não se está afirmando a priori que houve injustiças contra o sacerdote. Contudo, cem anos depois as razões de sua suspensão podem ser sopesadas de forma distinta. Veja-se que, atualmente, casos de desvios gravíssimos, como pedofilia, parecem não ser apenados com tanta severidade.

    • andrei barros correia

      Susy,

      Fica-se em situação complicada. Se não houve injustiça contra o padre Cícero, então não há razão para reabilitá-lo.

      É difícil o Vaticano sair em paz com Cícero e com a lógica se quiser reabilitá-lo sem reconhecer que foi injusto com ele.

  2. Sidarta

    Andrei,

    O livro citado parece ser muito bom e o seu comentário está de um conteúdo e de uma elegância de estilo e de exposição tão altos que despertam ainda mais a curiosidade por acessar todo o pacote de informaçãoes do livro sobre o padre Cícero.

    Quando criança ainda fui programado em casa e na escola a ver o padre Cícero como um contestador da “igreja de poder temporal” do bispo e não entendia bem como as massas locais iam em desconfortável romaria ao Juazeiro do Padre Cícero em caminhões “pau-de-arara”.

    Um pouco de Zen vem me fazendo me libertar, devagar, reconheço, das dualidades e do refúgio na ignorância que a minha educação infantil religiosa e familiar, sem opções, meteu na minha cabeça até quando passei a questionar a tudo e a todos.

    Parabéns e um abraço,

    Sidarta

    • andrei barros correia

      A postura mais séria e lúcida que já vi sobre esse assunto foi do meu avô paterno.

      Ele não vivia pegado com padres, nem falando mal deles. Simplesmente, não dava importância a assuntos de igreja católica.

      E tinha uma estátua do Padre Cícero na sua escrivaninha, que recebera de presente de uma empregada doméstica que servira lá quase a vida toda e gostava dele.

      Não era grosseiro e não faria a deselegância de rejeitar uma oferta sincera de uma devota por conta das bobagens da religião oficial.

      Também não era devoto do Padre Cícero nem de nenhum outro, mas tinha lá a estátua!

  3. Maria José

    O “Padim´” é tão importante que meu marido ficou sem a missa de 30º dia por ter caido no dia da procissão dele.

  4. Alcides

    A sensação que fica, após a leitura do livro, é de que Cícero foi, de certa forma, injustiçado. A Igreja Católica comandada por eruditos sacerdotes mantinha uma distância deliberada da crença mística popular e não compreendia seus anseios, e o padre se tornou um refúgio para o povo caririense, alijado e esquecido.

    • Andrei Barros Correia

      Também tive reforçada essa impressão, Alcides.

      Principalmente porque situações semelhantes, na Europa, mereciam tratamentos bem diferentes.

      A idéia central de José Marrocos é interessantíssima, pois representa a coerência. Ora, não pode acontecer porque é no Juazeiro, no interior de uma região pobre, de um país pobre?

  5. Lira Neto

    Prezado Andrei.

    Muito obrigado pelos comentários generosos ao livro. Você fez uma leitura precisa e pertinente, expondo com sensibilidade o que está lá, mas apenas nas entrelinhas, subjacente ao texto.

    Abraços.

    • andrei barros correia

      Caro Lira Neto,

      O livro é realmente uma boa obra, o que não é pouco, considerando-se o assunto. Mantém um abordagem muito lúcida, em uma prosa muito agradável.

      Lerei o de Castello, já com boas expectativas, por causa deste, sobre Cícero.

      Agradeço-lhe a gentileza do comentário e da visita à Poção. Seja sempre bem-vindo.

      Abraços.

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