Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Os discursos de justificação do tráfico negreiro. Do Papa ao Senador da República.

Aplicação do castigo do açoite. Jean-Baptiste Debret.

Um texto de Andrei Barros Correia

Entre gente e bichos há duas diferenças básicas. Consistem em que os segundos usam a violência só para comerem e não se justificam por isso. O resto, são mais semelhanças que dessemelhanças, com grandes vantagens para os bichos que, inclusive, não têm a infelicidade de falar nem sabem o que é o serviço público.

As infelizes das pessoas precisam justificar-se e também às suas infâmias. Eventualmente, esforçam-se a produzir teorias embasadas em alguma ciência social, deformando-as consoante os objetivos visados. Outras vezes, mais inteligentemente, servem-se do Deus único que, como o papel, aceita tudo que se lhe ponha em cima. Acho que a grandeza desse Deus está precisamente nisto: perceber quanta infâmia as criaturas põem na sua conta e deixar para lá, evidenciando conhecer bem os limites de sua obra. Magnânino, esse adjetivo cabe-lhe.

Pois bem, a partir do século XV, os europeus começaram a disputar com os magrebinos o monopólio da venda de peças de Guiné, ou seja, de pretos da África Subsaariana. Os bérberes maometanos do Norte d´África já tratavam com os africanos do Sahel, trocando basicamente cavalos de montaria e armas por escravos pretos. Os maometanos não se constrangiam com a utilização de escravos, em geral, desde que não fossem fiéis. De certa forma, os monoteísmos agem similarmente!

O que os marroquinos faziam por meio de longas caravanas de camelos, ao longo de vasto deserto, os portugueses resolveram de fazer navegando. Como nem uns, nem outros, eram romanos – César tinha escravos sem justificar-se teologicamente – o Papa de Roma veio em socorro dos navegadores. Em 1453, a bula Romanus Pontifex, de Nicolau V, assumindo a inviabilidade de uma nova e desejável cruzada, abre as portas para outros tipos de saques.

Esse documento assume o tráfico de escravos como um efeito lateral das grandes tarefas da cristandade, ou seja, um mal menor diante da salvação da alma desses pretos que, por meio da escravidão, entravam no rebanho. Efeito lateral e até resultado positivo, assim se tornava a escravidão! Essa interpretação papal é um pouco brutal, convenhamos.

O poeta jesuíta António Vieira veio dar contornos mais suaves ao assunto, embora sempre no mesmo sentido. Com ele, o escravismo torna-se em missão evangelizadora, em oportunidade cuidados piedosos que se devem a um rebanho imenso que desconhecia as verdades cristãs e agora tem ocasião de aprendê-las, trabalhando para enriquecimento de quem as ensina! Vieira forja um discurso muito útil às pretensões de monopólio português do tráfico de pretos da África para as Américas, portanto. Inclusive, muito bem inserido nas conflitos que opunham interesses católicos a reformados holandeses e ingleses.

Noutro momento, as teses justificativas assumem contornos mais laicos: enfatiza-se, então, a civilização. Assim, os africanos traficados para as Américas estariam sendo beneficiados com o contato civilizador, que os purgaria de atrasos e costumes bárbaros. Enfim, primeiro se escraviza para salvar da infidelidade, depois da barbárie.

Hoje, no Brasil, discutem-se as cotas raciais para afrodescentes nas escolas superiores. Houve audiência pública no Supremo Tribunal Federal, que está a julgar uma ação ajuizada por partido político contra esta política inclusiva dos estratos sociais e raciais explorados historicamente. É auspicioso que haja as tais audiências públicas, onde se podem lançar várias teses, inclusive variantes daquelas tão caras aos séculos XV, XVI, XVII e XVIII.

E uma delas é descendente direta das de matriz religiosa e civilizadora. Um Senador da República teve ocasião de defender – sem a sutileza que seus defensores pretenderam ver na elocução – uma tese que consiste na culpa da vítima. O parlamentar passeou, sem muita coragem de dizê-lo claramente, em torno a idéias como as de estupro consentido e de culpa exclusiva da escravidão dos pretos africanos.

A primeira idéia calha bem ao intuito de invocar o nome de Gilberto Freyre, autor das loas científicas da miscigenação racial brasileira. Daí, o Senador foi ao ponto de sugerir que as negras entregavam-se sexualmente aos senhores brancos em contubérnios quase românticos, destituídos da violência que o escravismo supõe. Comovente essa abordagem senatorial.

A outra variante do discurso é apenas uma imprecisão histórica voluntária. Claro que das guerras entre tribos africanas resultavam os contingentes vendidos. Mas, está claro também que se não houvesse quem os comprasse – aos vencidos das tais guerras – eles não seriam escravizados. E esquece também que o negócio negreiro era uma grande e organizada empresa, muito distante do simples e eventual comércio desinteressado de alguns pretos vencidos por outros.

Como sempre, o domínio precisa justificar-se e negar-se a pagar os preços históricos. É mais do mesmo.

1 Comment

  1. Monte Alverne Sampaio

    Mas isto é pouco diante das atrocidades que a dita igreja já cometeu….por exemplo: saques, invasao de domínios, condenação e fogeiramento de pessoas e outras coisas mais que sao obscuras, tipo negociatas internacionais, guerras e vai por ai…..

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