O Brasil, contrariamente ao que se diz com ares de verdade absoluta, não se distingue pelos níveis de corrupção com dinheiros públicos e privados. Claro que isso acontece em patamares elevados, mas não tão diferentes do que sucede no restante do mundo. Ele distingue-se pela eficácia e sofisticação dos mecanismos psico-sociais de tolerância e supressão de riscos com a iniquidade.
Para ir direto ao ponto, adianto o que é a postura mental característica desse mecanismo: a noção de que qualquer insatisfação deve-se apenas ao insatisfeito não estar usufruindo da iniquidade. Não digo que essa linha seja uma simulação, porque ela realmente preside à maioria dos pensamentos; digo que ela é a base da tolerância e que antecedente a ela é a noção de que tudo está à venda.
A partir daí, viceja a interpretação de que qualquer acusação de iniquidade decorre do acusador estar a oferecer seu preço, ou seja, de que a acusação deve-se apenas à não contemplação do acusador pela mesma iniquidade. Rejeita-se, portanto, a possibilidade de contrariedade sincera, nivelando-se todos como potenciais subornáveis e aproveitadores das oportunidades de locupletar-se do ilícito.
Essa forma de pensar – sofisticada como mecanismo conservador – é defendida como atitude objetiva, calcada em uma suposta realidade absoluta e imutável. A tese tem enormes potencialidades e auto alimenta-se porque ela tem ares de justificadora de conflitos.
Na verdade, a maioria das pessoas que vive a acusar práticas ilícitas e a distribuir seu moralismo de ocasião está querendo fazer parte dos mesmos ilícitos e imoralidades que acusa. Basta verificar as práticas de políticos, antes e depois de eleitos, de funcionários públicos e de grupos econômicos antes e depois de aquinhoados com alguma vantagem estatal.
Todavia, embora aparentemente residual, existe a insatisfação de quem acha que o ilícito não devia ser tolerado, simplesmente porque é ilícito, e não porque queira tomar parte nele. Aí começa a tragédia resultante do triunfo avassalador de uma forma de pensar. Quem se insurgir contra alguma patifaria sem querer beneficiar-se dela será compreendido como um postulante de alguma parte do saque. Será compreendido como um chantagista, enfim, que acusa para vender seu silêncio.
Imagine-se, como exemplo, que duas pessoas conversem sobre um roubo, consumado ou por consumar-se. Os dois interlocutores principiam o diálogo com uma e outra palavra a evidenciar que são contra o roubo. Um deles mantém-se mais retraído, não crendo ser conveniente derramar-se em impropérios e invectivas morais contra o ato. O outro assume a postura mais radical, acrescentando-lhe algum sarcasmo e ironia.
Em pouco, esse excesso de moralismo e o sarcasmo de um dos interlocutores acaba por transparecer seu pensamento, pois é bastante difícil ser-se totalmente insincero. Aqui e acolá, em uma e outra frase , percebe-se que o problema não é o roubo, mas quem tem oportunidade de pratica-lo. No fundo, esse interlocutor inveja a posição do ladrão e acha apenas que no vale-tudo que concebe como a vida, a questão é estar ele próprio nessa posição.
Ora, caso o outro interlocutor repudie roubos por achá-los indesejáveis, e não por querer ser o beneficiário da ocasião, verá essa manifestação de cumplicidade como uma verdadeira indignidade. Como a confidência que só se faz a quem se reputa das mesmas idéias. E aí está uma coisa verdadeiramente terrível nessa atitude mental: ela pressupõe que todos têm, no fundo, a mesma idéia e que ser-se contra uma iniquidade é somente questão de poder ou não pratica-la.
Não há qualquer problema em medir tudo com a própria régua – embora seja estupidamente limitador – mas achar que ela é a única começa a ser o triunfo do mecanismo conservador da tolerância com a iniquidade.
Tens toda razão. E esse mecanismo de relativização e seletividade é facilmente detectado nos fariseus de plantão. Outro dia ouvi de um desses que o filho de Lula era funcionário de zoologico e passou a empresário graças a lobi com o setor telefônico. Questionei o que achava do filho de fhc ser, segundo se comenta, um importante lobista e viver disso ha muitos anos e ele calou. Na mesma linha vão os que criticam o fato de que muitos dirigentes sindicais estão assumindo cargos de confiança mas não se incomodavam quando os mesmos cargos eram ocupados pela parentalha. Ou seja, para além do farisaísmo vem outro aleijão igualmente hipócrita que é o ódio de classes. E certas pessoas, verdadeiros psicopatas, assumem estas posturas com a maior naturalidade e sequer cogitam estar em contradição. E como as idéias vão ocorrendo, lembro agora de carlos lacerda, que depois de “provocar as extravagâncias militares em seus bivaques” por muitos anos, não teve com eles o sucesso planejado e buscou JK e Jango, os mesmos que ele demonizava, para formar a Frente Ampla.
Julinho,
Apontaste algo que a maioria está fazendo um tremendo esforço para negar: ódio de classe. Pretendo deter-me sobre isso, brevemente.
Acabei de ler uma boa biografia de Castello Branco, que ainda estou digerindo: Castello A marcha para a ditadura, de Lira Neto. De logo, afirmo que é um bom livro.
Parte significativa da trajetória de Lacerda está no livro. No fundo, era um tremendo irresponsável, além de profundamente hipócrita.
Mais que Juscelino, quem soube tratar com ele foi Lott. A propósito, espero a chegada de uma biografia dele, Lott, O soldado absoluto.