Militares reestabelecendo a democracia no Brasil.
Um texto de Andrei Barros Correia
Em 01 de abril de 1964, tropas do exército brasileiro davam um golpe de estado para depor João Belchior Goulart, presidente constitucionalmente legítimo. Há fortes indícios de que os serviços secretos das forças armadas viriam a assassiná-lo, mais de uma dezena de anos depois.
Não houve, desde a proclamação da república, em 1889, até o golpe de 1864, qualquer governo brasileiro que se tenha dedicado a alguma política que mereça o nome de esquerdista, ou seja, voltada para uma melhor distribuição das riquezas produzidas no país. Isso deve ficar bastante claro.
Houve, sim, governos, democráticos e ditatoriais, que privilegiaram grupos nacionais em detrimento de estrangeiros. Getúlio Vargas, por exemplo, no período ditatorial do Estado Novo, inaugurado em 1937, desenvolveu uma política que desagradou aos representantes dos interesses externos. Beneficiou camadas da burguesia local e, marginalmente, camadas populares.
As polarizações, no Brasil, não se davam, como não se dão, principalmente, entre ricos e pobres. Elas operavam, das classes médias para cima, entre grupos de iniciativa nacional e grupos de iniciativa externa. Em torno a esses grandes grupos, vicejavam sub-grupos de apropriadores das migalhas. De um lado, partes da burocracia estatal e de um incipiente operariado urbano, de outro, os servidores dos corretores de venda do país.
Juscelino Kubitschek, que presidiu o país entre 1955 e 1960, promoveu uma intensa industrialização do país, recorrendo a capitais externos. Nada que se aproximasse minimamente de um governo de esquerda. E cultivou a democracia, vencendo um golpe que pretendia impedir sua posse, após consagradora eleição democrática. É notável que Juscelino, simplesmente um democrata liberal, foi proscrito pelo regime ditatorial implantado em 1964.
Jânio Quadros sucedeu a Kubitschek, em 1961. A historiografia da superficialidade quis fazer dele um louco, que não era. Na verdade, os eternos fascistas brasileiros pensavam que o tinham sob estrito controle, o que não era verdade. Jânio não tinha apreço pela democracia ou, pelo menos, deixou de tê-lo depois de assumir a presidência. Queria governar sem compromissos com os dois lados.
Tentou um golpe Gaullista, mas, embora inteligentíssimo, nem ele era De Gaulle, nem o Brasil era a França. Com oito meses de mandato presidencial, apresentou uma carta de renúncia, subitamente. Ao invés de se fermentar uma comoção popular e pedir-se a permanência de Jânio nas condições que ele quisesse, nada disso aconteceu. De forma desconcertante, o Presidente do Congresso Nacional leu a carta de renúncia, manuscrita em conciso e impecável português, e declarou o cargo vago!
João Goulart estava na China, na ocasião. Os interesses norte-americanos e seus corretores brasileiros civis e militares inquietaram-se com a assunção do cargo por Goulart. Complicadas manobras levadas a cabo por Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul, e pelo comandante militar da Região Sul permitiram a posse de João Goulart.
O Presidente era um homem bem-nascido, fazendeiro de gados no Rio Grande do Sul e herdeiro político de Getúlio Vargas. Qualquer pessoa que o medo e a estupidez não turvassem a vista sabia que Goulart não tinha a menor inclinação marxista e mantinha, inclusive, em seu ministério banqueiros e grandes próceres do direitismo liberal, como Walter Moreira Salles e Roberto Campos.
Claro que fazia política falando para as massas urbanas, como fizera sempre seu mentor, Vargas. Mas, não iria tirar o chão debaixo dos pés dos grandes proprietários e dos corretores de venda do país, nem iria subverter a democracia. Sempre deu provas de jogar o jogo instituído e negociou, em mais de uma oportunidade, as dívidas brasileiras em Washington, falando com o Presidente Kennedy, por quem tinha apreço.
Os norte-americanos, como de resto frequentemente ocorre, foram estupidamente inflexíveis. Qualquer insatisfação que houvesse na época podia ser resolvida com mais dinheiro. Ora, se hoje as massas são incultas, na época eram-no muito mais. Apenas um louco acreditaria em perigos de sublevação de massas no Brasil, porque elas não saberiam fazê-lo. Era preciso, na verdade, diminuir o garrote financeiro.
Mas, os corretores captaram a oportunidade e levaram o governo Goulart ao estrangulamento. Convenceram seus patrões da oportunidade de dar um golpe e conseguiram todo o apoio necessário. Em 01 de abril de 1964, para varrer qualquer dúvida quanto às origens do movimento, havia uma esquadra norte-americana ao largo do Rio de Janeiro. Ou seja, se não corresse tudo bem, havia o porta-aviões norte americano e todas as suas bombas.
Os golpistas, no que foi deixado totalmente para eles, comportaram-se exemplarmente, quer dizer, cumpriram o roteiro de mentiras e hipocrisias que caracteriza tão bem a alma política nacional. Proclamaram que o golpe dava-se a bem da democracia! Carl Schimitt ficaria orgulhoso da materialização de suas idéias da exceção a bem da regra permanentemente afastada. Instituiram uma ditadura mal-disfarçada para proteger a democracia.
Não há como negar os malefícios dessa aventura, que deformou o já bastante deformado pensamento nacional. A violência tornou-se em meio de ação e a autoridade em arbítrio. Isso, em um país que forjou-se na dicotomia senhor e escravo, significava aumentar uma febre já elevada. Como não poderia deixar de ser, a superação disso veio em catarse trágica e de uma loucura passou-se a outra. A redemocratização, além de ser uma farsa negociada trouxe a idéia, absolutamente falsa, de que era proibido proibir.
Andrei, nunca te espantou a cobardia da Ordem dos Advogados do Brasil frente ao golpe de 64?
Falo daquele silêncio de trolhas amedrontadas que só veio a se romper depois de Raymundo Faoro assumiu a presidência da ordem, já em tempos mais amolecidos em 1977.
Completando,
É que muitas vezes o silêncio fala mais que muitos gritos.
Neste sentido, uma história do silêncio seria algo interessante.
André,
Esse pessoal tem um tremendo senso de oportunidade. Se, no início, ficaram calados, era porque iam na onda do pessoal do golpe.
Acho que sentiram os ventos mudando e abriram espaço para gente como Faoro. Quer dizer, quase como quem entrega espaço porque não o quer mais ocupar.
Agora, André, vou te dizer uma coisa. A OAB é um negócio hiperavaliado na sociedade brasileira. Ela conseguiu vender essa estória de defensora de interesses amplos, sendo representante de uma categoria.
Em momentos como aqueles compreendidos entre 77 e 85, faz sentido, porque outros grupos não preencheram o espaço.
Hoje, não faz sentido algum. Para o que a OAB vive falando existe o ministério público. Então, acho que vai recuar, mais e mais, e ser o que é: uma organização de classe, defendendo os interesses dessa classe.
André,
Lembrava-me de outra coisa que deixa evidente quanto foi nocivo o período 64-85. Primeiro, a descompressão faz-se súbita e, aos absurdos que se admitiam, somam-se outros.
Segundo, criam-se falsos heróis de falsas resistências. Tá cheio de herói consentido por aí.
Quanto a esses aspectos, tive uma vez ocasião de ouvir um taxista de Roma dizer o que a academia não consegue, com páginas e páginas.
Conversávamos e o camarada, a propósito de fascismo e pós-fascismo, disse que a bem de sepultar essa época e regime, na Itália, toda sorte de absurdo e estupidez foi praticada, com uma desculpa prévia.
As tragédias geram isso. O exemplo do sionismo e de Israel dá outro exemplo. É quase impossível discutir o assunto honestamente com algum judeu, porque se ele quiser obstar tudo lembra do holocausto. Ou seja, funciona como absolvição para o futuro.
Muito bom o texto. Assim como as lembranças do Raboni no Acerto de Contas. Sempre que penso no assunto, cada vez mais de convenço da estupidez que foi o golpe de 64. Mais ilegal que a tomada do poder por hitler. E do enorme mal que causou ao País. Foi a vitória da ignorância, da brutalidade, do medo (do cafona, para usar um termo da época)…Todo um país nas mãos de uma corja de estúpidos. Na reportagem de Raboni ficou evidente que não havia um debate ideológico, uma guerra-fria a ser vencida. O que se vê é a covardia bajulatória de setores da imprensa. Execrável sob todos os aspectos. Sempre que penso no golpe, recordo-me de minha infância, cuja televisão era habitada por energúmenos extremados como hebe camargo e silvio santos. Mataram a cultura ali. O mesmo se dá com as escolas públicas, com as universidades e seus estúpidos sistemas seriados. Mataram o legado franco-uspiano, em nome de um sistema vendilhão fundamentado no malfadado acordo mec/usaid. Meu Deus, fizeram algo de bom? Cravaram na alma nacional “personalidades” como sebastião curió, fleury, outros, armando falcão e os daqui…
Andrei, e a livraria cultura de Campina Grande? E aqueles sebos em uma praça no centro da cidade?
Germano,
A Livraria Cultura tornou-se em uma papelaria e vendedora de livros didáticos dos 1º, 2º e 3º graus, apenas.
Uma briga de família decretou seu fim. A Nobel também fechou, há mais tempo. Não há, sem exageros, livrarias em Campina Grande!
Claro, há uma e outra bem específica, principalmente de livros religiosos, de neo-pentecostais. E há as jurídicas.
Tem um sebo com grande acervo, o Cata-Livros. Mas, é extremamente desconfortável e meio ruim de chegar. Mas, é o jeito!
Muito bom ,parabéns.Não preciso dizer mais nada.