Autor e obra são coisas diversas e, exceto por quem gosta mais de fuxicos que de arte, o segundo é importante e o primeiro quase o não é. Talvez a contundência dessa afirmação deva-se ao paroxismo a que chegou o interesse por descobrir detalhes biográficos dos autores, numa atividade de investigação obstinada e fetichista em busca provavelmente de nada.
A biografia do autor é algo fundamental como referência histórica e isso vale até para artes que se pretendem abstratas.
Machado de Assis é tido como o maior escritor brasileiro e, particularmente, concordo com a opinião. Assim, é frequente a busca de um Machado que se revelaria fugazmente nas suas obras, numa espécie de jogo ambíguo do fino esteta que, dizem, era muito reservado com relação a detalhes de sua vida. Parte da crítica abandonou a crítica e passou a buscar a reconstrução de uma personagem a partir de várias.
Buscar conhecer as circunstâncias sociais e históricas de um autor é interessante, porque, afinal, sociologia e história são interessantes. Fazê-lo como investigação de causas e efeitos é, por seu turno, exercício de ficção ruim em segundo grau.
O fetiche está em crer que a obra é um jogo de chaves semi-ocultas para o próprio autor, mesmo que ela obra esteja lá, bela, imensa, válida por ela mesma e totalmente distante de ser um místerio de chaves subjetivas. Se as obras fossem sempre essas hagiologias de si mesmo, enigmas que conduzem ao psicológico do autor, seriam religiões iniciáticas e não peças de arte.
Por outro lado, é claro que as circunstâncias do autor descobrem-se nas obras, porque ele não é atemporal e porque o conhecimento imediato não é imediato, posto que ainda mediado por linguagem. O autor fala da única forma que pode, ou seja, a partir do que lhe fizeram seu tempo, sua classe social, sua educação, seu lugar.
Há pouco li um livrinho de Machado interessantíssimo: Casa Velha. A obra não foi publicada em forma de livro em vida de Machado. Ela surgiu em fascículos semanais ou quinzenais que saiam em períodicos, como se deu com outras obras dele. Todavia, somente foi editada em livro na década de 1940, trinta e tantos anos depois da morte de Machado.
Inicialmente, a crítica fez o que mais gosta: debruçar-se sobre uma lateralidade. A controvérsia era se Casa Velha era romanca pequeno ou conto grande. Pouco importa o rótulo, Casa Velha é obra valiosíssima e não tem qualquer coisa de autobiográfica, que foi a seguinte suposição da crítica.
Tem nada de autobiográfico, mas tem precisamente o que só poderia perceber quem viveu situação muito próxima aquela que se desenha no livrinho. A figura dos agregados a famílias ricas e muito ricas, não é suficientemente compreendida senão por quem a viveu.
O agregado é o ponto de contato entre a inflexibilidade social e a solidariedade no pequeno grupo. Ele entra num sistema de solidariedade e de intimidade familiar sem que as fronteiras invioláveis do pertencimento de classe sejam banidas. Talvez seja o elemento a explicar não ter havido desagregação social maior numa sociedade profundamente desigual e quase estamental, como era o Brasil no século XIX.
É pouco menos que óbvio que o primor do desenho de Casa Velha advenha de Machado ter ele mesmo sido de uma família agregada a uma grande casa senhorial no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX. Não há artificialidades na casa senhorial – a Casa Velha – e nas relações que há nesse subsistema social.
O livro diz – é audacioso e até temerário dizê-lo, mas o livro diz mesmo – que a violação das fronteiras de classe por nascimento é o delito mais grave e portanto o que mais esforços deve implicar para ser evitado. E di-lo deliciosamente ao mesmo tempo em que expõe laços de solidariedade e intimidade cultivados com imensa força.
O paradoxo é fascinante. A agregada é afilhada da senhora, é acarinhada por ela, é por ela educada, é a quase-filha, é dotada pela senhora, mas resta-lhe uma única inviolável fronteira. Ela não se pode casar com o filho da senhora.
Ela é da Casa, mas não é da classe. Para evitar a união, a senhora é capaz de lançar mão do maior tabu social e sexual existente: o incesto. A mentira, a sugestão do incesto, a desonra que haveria por trás dessa suposição se verdadeira, tudo isso vale para fechar a última fronteira. Fica clara a hierarquia de valores instalados na cabeça da senhora, de todas as senhoras e senhores.
A imperatriz da Casa Velha é capaz de inventar que a agregada é filha de uma aventura extraconjugal de seu falecido marido – ex-ministro do Império – com toda a vergonha para si e agressão à memória do extinto que isso implica, para estancar um namoro que na verdade não violaria regras contra o incesto, violaria regras de imutabilidade social.
Machado percebeu muito bem a escala de valores dominantes e que o valor supremo permite uso e recurso às maiores mentiras e ao maior dos tabus, neste caso o incesto não ocorrido, mas sugerido como meio de separação.
O autor fala de situações que ele conheceu e compreendeu os mecanismos subjacentes à dinâmica social do tempo. Não se cuida de narrativa do que se passou com ele próprio, nem de fornecimento de chaves dissimuladas para a compreensão de algum enigma que tenha sido a vida dele autor. Essas duas última inclinações da crítica decorrem de impulso irrefreável para a superficialidade, para o culto do subjetivismo do autor e para o fetiche biográfico.
O Memorial de Aires, última obra machadiana, publicada no ano mesmo de sua morte, rende ainda mais ensejos à visão de enigmas e chaves autobiográficas. Aqui, creio que Machado fez de caso pensado, sabedor ele desse fetichismo e superficialidade que fazem a crítica e parte dos leitores tomarem a obra como objeto de curiosidade relativamente ao autor.
O Memorial – talvez mais que em outras – é culto à beleza da língua como raro ocorreu na literatura brasileira. O esteta inteligentíssimo dá-se a formas narrativas pouco habituais, relativamente livres e escreve numa concisão de coluna dórica. Essas bobagens de realista ou parnasiano, ou mistura dos dois, são prisões que conduzem o crítico e o leitor a nada, tratando-se desta obra. As memórias são do diplomata Aires, não do escritor Machado.
Aqui, a crítica vê as suas sempre presentes chaves autobiográficas no casal sem filhos e em que a esposa é cultuada. Machado e Carolina não tiveram filhos e a admiração séria dele por ela é conhecida e foi reforçada pelo soneto A Carolina, composto logo após a morte dela.
É claro que ele pode compor um casal harmônico no companheirismo e cumplicidade profundos e sem filhos porque deve ter vivido conjugalmente assim e sem filhos. Mas, daí a fazer desse casal o que ele compunha com Carolina vai imensa distância. Machado era, segundo todos dizem, profundamente reservado e até distante no que se referia à sua vida pessoal. Seria estranho que quisesse, assim impudica e superficialmente, expor no derradeiro livro ela e ele, postos a nu, a claro, às vistas de todos.
Por outro lado, nada leva necessariamente a crer que Machado e Carolina tivessem a ausência de filhos como alguma ferida, como dá-se com as personagens Aguiar do Memorial. Novamente, pode haver aqui a inteligente piada e talvez a pista falsa deixada para os intérpretes que funcionam a partir das categorias sentimentais pré-ordenadas. Sagacidade e ironia para fazê-lo ele tinha a sobrar.
De qualquer forma que seja, essas duas obras são as que revelam mais precisamente o que Machado viveu, quais as circunstâncias sociais em que viveu. Todavia, isto vai longe de serem as pistas para a percepção do que foi um personagem a ser biografado em termos psicológicos, ele que tão psicólogo social não faria o que sabia impossível e, ademais, redutor.
É profudamente redutor supor que Machado não soubesse da enormidade de sua obra em termos artísticos e quisesse, assim, propor os enigmas que conduziriam à sua hagiografia de falsas sutilezas por professores críticos profissionais. Também é bastante improvável que os mesmos críticos tenham percebido isto, presos que são ao que são.
Casa Velha não chega a ter a ironia rasgada e um tanto quanto cômica como em Mamórias Póstumas de Brás Cubas. Mas continua irretocável na descrição da natureza humana, quase sempre medíocre. Belíssima, impressionante e impactante obra.
Foi a impressão que tive, Alcides.
Embora seja uma obra despretenciosa, tem o fundamental de Machado.
Poucas vezes vi a inflexibilidade social tão bem retratada. Os meios de impedir o rompimento das barreiras sociais e de nascimento, mesmo servindo-se da infâmia, da mentira, da vergonha, da insinuação do maior tabu existente.
É esplêndido como os fatos são colocados e narrados: Dona Antônia (a rainha/imperatriz da Casa Velha) joga um verdadeiro jogo de xadrez e estrategicamente utiliza o padre como peão para armar suas jogadas, chegando a pôr em xeque a ascensão social da afilhada com um inverossímil possível incesto. Dois tabus sociais colocados frente a frente, os dois igualmente intrnasponíveis.
Mestre, sabendo desde já que você discordará, acho que o fato de Lalau não consentir em reatar o romance com o filho de Dona Antônia, surge uma pitada de orgulho. Não que seja crucial para a decisão dela, mas de alguma forma chegou a influenciar. Quando leio Machado, tenho a impressão de que o intuito último é identificar o podre do humano. E nisso, segundo suas obras, ninguém escapa, nem Lalau, ainda que reconheça mais virtudes do que vicissitudes nela.
Mestre Alcides, tornou-se comum a identificação de dignidade com orgulho, o que serviu à diminuição da primeira inclinação.
É difícil pormos-nos a qualificar ações de personagens literarias, mas creio que dignidade responderia melhor aos móveis da ação da Lalau.
Nesse particular, invoco o texto e quiçá o autor. Lalau é a moça que encanta primeiro a sua protetora, a imperatriz da Casa Velha, e depois o padre.
Para encantar a senhora da Casa Velha ela teria que compartir com a velha algo que esta tinha como só dela: a altivez.
Para encantar o Padre, convenhamos que beleza e graça jovem talvez bastassem. Mas, emerge do texto que vivacidade, no sentido mais amplo, desempenhou papel fundamental. Uma espécie de vivacidade de alma e corpo e de alma só alma e também racionante.
Quer parecer-me que Lalau, se aceitasse afinal o casamento porque a velha fora derrotada no seu afã de fixitude social se diminuiria. Como se tivesse vencido apenas pelo cansaço, o que as almas grandes não costumam aceitar.
Dileto Alcides, é só piada o que segue e muito cheio de vergonha, se o muito não se desdissesse pelo tê-lo dito: mas não terei feito o último comentário muito machadianamente?
kkkk
Sim. Você o fez. Kkkkkkkkkkkkk
Ou seja, há pintada de orgulho em Lalau. kkkkkkk
Corrigindo: pitada, afinal não houve incesto.
E nem poderia haver, afinal não eram irmãos.
O comentário acima foi maldoso por acaso.
O Conselheiro Aires sabia travar as palavras nos dentes, antes de ganharem o espaço público. Eu não consigo e assim arrisco-me à inconveniência e à chatice.
Mas, lá vai.
Alcides, terias vontade de escrever algo sobre Machado para ser publicado aqui?
Tu tens conhecimento do assunto; esse espaço tem vantagem e desvantagem: a primeira é que só poucos o comentam, embora alguns o visitem; a segunda é que poucos o visitam e menos ainda comentam.
Ou seja, seria apenas altruísmo teu que eu agradeceria. Feito o convite.
Mestre, tentarei. Vindo da sua parte o convite é uma honra.
Agradeço-te tentativa e ia tentar respoder mais como os bilhetes – cartões – de Aires, mas falta-me talento.
Espero, então.