Todos os anos acontece, em Campina Grande, na época do Carnaval, um encontro chamado Nova Consciência. Era para ser um evento com ares ecumênicos e um certo sabor a exotismo. Nos inícios havia um predomínio de Hare krishnas e toda sorte de orientalismos superficiais, com os mantras, incensos e gente trajada com aqueles bonitos mantos bracos e sandálias de couro.
De uns tempos para cá, o que era interessante e pitoresco foi tornando-se uma espécie de conflito pelo predomínio, a partir da reação dos evangélicos fundamentalistas, que devem ter visto naquela agradável confusão de vários tipos de gente alguma arte do diabo, que eles vêm o príncipe do mundo por toda parte.
Esses fanáticos barulhentos criaram um evento próprio deles, na maior área pública da cidade e o chamaram Consciência Cristã, para deixar bem claro que não tinha nada de nova, ampla ou aberta, era só cristã, exclusiva e pronto.
Essa consciência cristã reune-se aqui pertinho de casa e faz um barulho dos infernos, como todas as reuniões dessa gente. Não sei, mas o medo dos demônios deve fazê-los gritarem como se no inferno estivessem.
Todavia, o grupo mais interessante desses todos é o dos judeus que se dizem Amigos da Torá. Prova que no Brasil são possíveis todos os fundamentalismo, mas nenhuma ortodoxia. No início, tratava-se de uma tentativa de harmonização dogmática que atendia pelo nome Beit Teshuvá.
Era um grupo de autodenominado judaísmo messiânico, que buscava por em um mesmo saco judaísmo e cristianismo. Essa incoerência flagrante ficava clara na impossibilidade de achar que o messias veio e achar que ele ainda vem, ao mesmo tempo! E também em achar possível algum judaísmo que aceite o filho de Deus consubstancial a Ele, suprema heresia.
Devem ter percebido que lidavam com elementos impossíveis de se misturarem conceitualmente e partiram para dizer-se judeus, assim mais pura e simplesmente. E agora são os Amigos da Torá, que divulgam o seu quinto encontro Judaico por meio do panfleto acima.
O papelzinho tem muito pouco de judaico, pois o meio próprio de fazer proselitismo deles não é esse. Tem, sim, ares de propaganda de auto-ajuda, o que se percebe no subtítulo Judaísmo: mais que uma religião, um estilo prático e ético de vida!
Parece coisa de feira de curiosidades e tem sessões de Cine – kasher. Ora, diz-se kasher a comida própria, ou seja, conforme às prescrições da Lei. Não se sabia da existência de um cinema kasher, quer dizer, adequado àlguma lei judaica, mas tudo bem…
Não há propriamente absurdo em haver judeus que se redescubram, aqui em Campina Grande. Com efeito, poderia haver um e outro indivíduo com ancestralidade distante naqueles poucos sefarditas que ficaram no nordeste do Brasil depois da expulsão dos holandeses.
Todavia, as tradições desses sefarditas de origens predominantemente ibéricas foram diluindo-se até quase perderem-se totalmente. Diferentemente, os asquenazitas chegados mais recentemente, notadamente nos princípios e meio do século XX, têm sua identidade bastante marcada e não precisam redescobrir-se judeus.
Então, a coisa toda é bastante inverossímil, embora seja possível, claro. Mais provável que a redescoberta de origens judaicas remotas é o anseio de ser judeu, que se percebe, por exemplo, em certos grupos reformados, como alguns batistas. Há certa fantasia de pureza original e exclusividade no judaísmo e isso seduz um e outro nesse caldeirão de superficialidades que é o país.
Deviam, agora, deixar-se seduzir pela mania das genealogias, uma das formas mais interessantes de loucura que acomete as pessoas. E traçar linhas extensas desde Campina Grande até às muralhas de Jerusalém!
Interessante suas colocações sobre nosso evento, no entanto pra o esclarecimento do público, aqui no nordeste em trezentos anos de colonização aportaram mais de duzentos mil judeus, cristãos novos, e cripto judeus, basta ver a lista da torre do Tombo. Os sobrenomes dos paraibanos mais de noventa por cento são encontradas em cemitérios judaicos, e sinagogas mundo a fora. Os judeus que daqui sairam foram apenas 23 famílias que fundaram Nova York. Portanto o que buscamos é a identidade de nossos antepassados escondida, mas tão viva em nossos costumes familiares. Quanto ao “Cine Kosher” é apenas uma neo logismo, uma forma de chamar atenção para os filmes exibidos no evento, nada mais, para usarmos esta palavra não precisamos fundamentar em nenhuma lei bíblica, é apenas uma forma inteligente de fazer o marketing do encontro. Quanto a sua forma sarcástica de lidar com nosso movimento, toleramos, só ressaltamos que somos reconhecidos como descendentes do povo judeu até em Israel, seja em projetos do Kenesset, seja na mídia e aqui cito o “yediot aharanot” ,”ultimas notícias”, simplesmente o maior jornal de circulação em Israel, que declara em reportagens de cinco páginas, Campina Grande, como uma das cinco cidades do nordeste a ter mais descendentes de judeus. Já foi traçado nossa linha até jerusalém, e já faz tempo!
Davi Meneses,
O que chamas sarcasmo, utilizo-o em porções iguais com todos os preconceitos organizados de forma corporativa, o que é chamado comumente religião.
Por isso mesmo, sinto-me à vontade para escrever como escrevo, porque não viso especificamente a nenhum grupo, nem viso especificamente a qualquer pessoa, nem ainda à religiosidade em si.
Chama-me muito a atenção é a organização corporativa e clerical das religiosidades.
A existência de cristãos-novos e criptojudeus no Brasil remonta aos princípios da colonização, de fato. A partir de 1536, não havia muitas alternativas para os judeus portugueses.
A maior parte foi para Constantinopla e é um grupo que ainda se encontra no poder, na Turquia, pois compunha o grosso do movimento dos novos turcos, bem recentemente, no início do século passado.
Muitos vieram para o Brasil, notadamente para o Nordeste. Eram já cristãos-novos, batizados em pé, como se dizia. Cultivavam, de porta para dentro, o judaísmo, embora formalmente se tivessem convertido.
Tenho, só para ilustrar, um exemplar da relativamente rara edição dos Autos de Visitação do Santo Ofício às Capitanias de Itamaracá e Pernambuco, da editora Cepe.
Aí, encontra-se o caso mais interessante, o de Branca Dias, por exemplo, que foi processada e enviada a Lisboa, por práticas judaizantes.
O caso é que esses traços diluiram-se muito, como disse no texto. Diluiram-se de tal forma que é praticamente impossível buscar-se identificação por história com esses primeiros sefarditas que aqui tiveram.
Diferentemente acontece com os asquenazes que chegaram desde os finais do século XIX. Esses não precisavam escamotear seu judaísmo e, por isso e por terem chegado há pouco, têm nítido judaísmo.
Tentar traçar origens remotas, a partir de nomes e traços de práticas e dizer que implica um pertencimento, parece-me algo forçado.
Mas, enfim, estejas certo que a ironia minha é distribuída em parcelas iguais.