Analisar como o domínio estabelece-se já é tarefa bastante difícil, pois envolve extensa atividade descritiva. Apontar um e outro aspecto por trás de seus mecanismos de manutenção parece-me mais fácil, até porque os fatores isolados fazem mais sentido relativamente à manutenção que ao estabelecimento. Há, também, a sedução de observar causas psico-sociais que passam despercebidas na maior parte do tempo.
Manter um domínio, antes de qualquer outra coisa, recomenda fazer o dominado crer que está em situação inevitável. A forma mais comum é caracterizar qualquer anseio e qualquer dignidade nacional subjacente ao anseio como frêmitos por uma ação inútil. Ou seja, deve-se incutir a apatia na defesa dos interesses próprios como atitude de inteligência de quem reconhece suas limitações. O sofisma aqui é facílimo de apontar, pois encontra-se na identificação – falsa – entre limitação e impossibilidade.
As variações da linha de ação mencionada acima são muitas. A mais eficaz é desdobrar a noção de apatia inteligente e fazer surgir a de possível ridículo caso tente-se o possível. Outro desdobramento – esse talvez mais infame que eficaz – é fazer crer que certas tentativas foram calculadas a partir de motivações absolutamente estranhas às declaradas.
Um exemplo auxilia a compreensão dessas linhas de ação. No início da década de 1980, a Argentina empreendeu uma guerra para retomar as Ilhas Malvinas dos ingleses, que as tomaram aos platinos. As diferenças de riqueza e de poderio militar sugeriam a inviabilidade da empreitada para os argentinos. Todavia, a provável inviabilidade não se confundia com a impossibilidade porque também era plausível que os ingleses não se empenhassem na guerra por um objetivo desprezível.
Na ocasião, a Argentina vivia uma violentíssima ditadura militar, fortemente rejeitada pela sua população. A guerra pela retomada das Ilhas Malvinas, todavia, encontrou forte apoio popular. Estava pronto o cenário para a estratégia de dizer-se que era apenas uma manobra diversionista do governo militar para afastar ou diminuir a rejeição popular. Pode ter sido, mas não afasta o fato de que a população – uma realidade maior que o governo – apoiava a ação!
Qualquer um que se disponha a assumir as premissas e não distorcer as conclusões percebe que, se foi cálculo, foi um péssimo cálculo. A idéia de retomar as ilhas teve apoio, o governo que empreendeu a guerra para tanto, não. Não seria o caso de retomar aquelas causas tão desprezadas e assumir que todo um povo queria uma coisa, embora isso não significasse querer um certo governo? Ou seja, que esse povo tem alguma identidade?
Presentemente, por acasião do mundial de futebol, pode-se observar outra variante dos mecanismos de manutenção do domínio. Trata-se de fazer algum conjunto de dominados pensar que seus problemas são os vizinhos e, não os dominadores. Assim, desagregam-se identidades muito mais fortes que as que se pretende pôs no lugar. Aqui, o ridículo avizinha-se sorrateiro: o dominado identifica-se aos dominadores para desprezar seus vizinhos.
Para que funcione é necessários que entre os dominados haja os corretores dos interesses dos dominadores, remunerados por uma e outra migalha, e ávidos em servir e, quem sabe, tomar uma e outra apalpadela no rabo, que para eles será um gesto de carinho. Empenham-se na crença – sempre duvidosa, ante as evidências – de que são assimilados, ou seja, quase iguais. Aceitam a formatação social que lhes é imposta e não vêm alternativas melhores.
Assim, por exemplo, em alguma ex-colônia portuguesa na África havia colonizadores, pretos e mestiços assimilados e pretos selvagens. O grupo intermédio prestava um enorme serviço ao de cima, na medida em que era o maior multiplicador e mantenedor do sistema.
Hoje, ainda no campo dos exemplos, algum mexicano, chileno, brasileiro ou colombiano de média ou alta classe acha-se muito assimilado aos seus modelos norte-americanos ou europeus. Esquece-se que, em situações-limite, mesmo que tenha cartões de crédito, seja meio branco e articule palavras em outras línguas, será um selvagem sul-americano e, pior, estrangeiro.
Lembro-me – a terrível memória não me deixa em paz – que estávamos na enorme fila para entrar no Palácio de Versalhes, há um ano, e circulavam de um lado para outro um senhor mexicano e sua família. Devia ser um fulano riquíssimo, com relógio e pulseiras de ouro, chapéu de vaqueiro norte-americano, botas, e mostrava enorme pachorra e papel social de pai de família subjugador de esposa e filhos. Estava exasperado pela demora, mas não havia o que fazer, e talvez por isso oferecia exemplo de maus modos.
Ele certamente não podia ou não devia – para não esquecer as falas de seu personagem – perceber que era alvo de reprovação dos circunstantes, fossem holandeses, espanhóis, franceses ou alemães. Ele não podia perceber que aquelas pessoas à sua volta já deviam estar pensando: olha o xicano riquito e mal-educado, pensando que está montado em um cavalo na Disneilândia. Claro que esse episódio é muito caricato e extremo, mas não lhe dei cores mais fortes que as que teve.
Não há qualquer problema na conduta do mexicano de Versalhes. Começa a haver na circunstância de ele não ter compreendido previamente que não era tão assimilado aos seus patrões quanto pensava. E tem enorme problema na circunstância dele certamente sentir-se plenamente à vontade para recriminar e ridicularizar as mesmas condutas de seus compatriotas, na sua própria terra. E vai aos píncaros na provável repugnância que expressara diante dos hábitos ou vontades de um boliviano do planalto.
Não lamento os corretores por eles. Lamento pelos que estão abaixo deles, que não assumiram a identificação com o dominador de caso pensado nem por estarem a receber algo. Receberam somente doses maciças de informação que lhes fez esquecer que estão mais próximos que distantes dos vizinhos. E que estão muito distantes daqueles que pensam emular e louvar.
É crível que a audiência brasileira alinhe-se com a Espanha contra o Paraguai? Se um brasileiro extraído de entre noventa por cento da população fosse posto em uma mesa de café ao lado de um paraguaio e de um espanhol, com que se imagina que esse brasileiro se identificaria mais?
É crível que muitos brasileiros manifestem-se dispostos a torcerem pela Holanda contra o Uruguai? E que achem a maior glória da vida ver a equipe argentina perder? De minha parte, o que acho vai em outra perguntinha: alguém foi saqueado por paraguaios, uruguaios ou argentinos?
Claro que não. Trata-se de propaganda mediática tenaz, que leva as pessoas a crerem em rivalidades cujas razões nem minimamente imaginam quais seriam.
Andrei. Me lembro de um fato passado comigo no carnaval de Olinda quando moleque. Tinha uma argentina muito bonitinha com uma camisa da sua seleção assistindo o freje. Cheguei perto e brinquei com o fato dela estar usando a camisa do rival. Ela se saiu com essa: É mentira a rivalidade entre Brasil e Argentina! Eu, que desde o início não estava mesmo disposto a qualquer hostilidade, fiquei à vontade pra dar andamento às negociações diplomáticas.
Julinho,
A moça era inteligente!
Tem horas em que a manipulação, meu caro, e seus resultados amplos, deixam-me realmente desolado.
Findo o tal jogo, ouviam-se bombas por todos os lados. Mas, experimente-se perguntar a alguém, aqui em Campina Grande por exemplo, quantos argentinos viu na vida. Ou até o que é a Argentina, o que aconteceu na história dela. Ou qualquer coisa.
Ou a pergunta mais óbvia: por que raios você se acha rival da Argentina?
Não quero falar do regozijo infame e realmente agressivo da rede bobo. Eles agrediram os paraguaios, gratuitamente.
Nós, que já somos um nada identitário cultural, temos instilados ódios sem quaisquer razões.
A coisa é irracional mesmo. Tratam mal a maioria dos latinos chamando-os de índios como se isso fosse ofensa. E tratam mal aos argentinos por serem arrogantes, violentos, mal-educados, etc. Hoje mesmo, a seleção argentina saiu da copa goleada e não deu um pontapé nos adoráveis alemães. Aos poucos a doutrina vai se enraizando e passa a se alimentar dela mesma, prescindindo de qualquer incentivo da mídia.
Quando eu digo que o Brasil é imperialista nas relações com a América Latina as pessoas torcem o nariz.
E tende a ser mais, à medida que enriquece.
Por isso são imensamente tolas e prejudiciais as posições como as assumidas por José Serra relativamente ao Mercosul e à Bolívia.
Na verdade, convinha que aumentasse a integração, inclusive cultural, para minimizar os efeitos perversos desse imperialismo.
Realmente, imperialismo de um povo extremamente inculto e desenraizado culturalmente é potencialmente muito perigoso.