A constituição brasileira de 1988 é uma lei mal feita, porque feita para superação nenhuma. Na verdade, ela trouxe duas novidades básicas em relação às duas anteriores, a de 1969 e a de 1967: primeiramente, um extenso catálogo de direitos fundamentais, fartamente enumerados; e, em segundo lugar, a democracia representativa eletiva para todos os cargos executivos e parlamentares.

Não foi pouco, do ponto de vista formal. Formal porque os direitos fundamentais seguem francamente desprezados, embora enunciados solenemente, e a democracia eletiva é pouca coisa em termos de efetividade participativa, principalmente considerando-se o défice de educação formal e de democratização do acesso a informações.

Ela perdeu a oportunidade de fazer o que os momentos de ruptura geralmente propiciam, talvez revelando-se assim seu verdadeiro caráter de continuísmo mal disfarçado. Deixou de dar nova conformação ao estabelecimento, manutenção e queda dos governos. Em palavras poucas e comuns – e evidentemente restritivas – deixou de separar o Estado do Governo de forma clara e garantidora da estabilidade política.

Não vou seguir tentando evitar o lugar-comum: deixou de estabelecer o parlamentarismo. E, por isso mesmo, permitiu que a discussão da adoção desse sistema viesse à tona casuisticamente, de tempos em tempos, conforme imediatismos que o próprio sistema poderia restringir.

O parlamentarismo, de certa forma, é o golpe de estado institucionalizado em uma forma menos drástica de golpe de governo. Institucionalizado, ele funciona de maneira menos drástica que sem balizas formais, permite a alternância de governos sem implicar a ruptura constitucional, sem implicar a desestruturação do Estado, sem reclamar conspirações que se socorrem de interpretações jurídicas mágicas.

Quando a chefia do Estado e a do Governo vestem o mesmo personagem, a dignidade do Estado entra em jogo de varejo sempre que se ataca o Governo, muito embora as instituições sejam diferentes. Ao mesmo tempo, uma só figura humana tenta desempenhar dois papéis de difícil conciliação. Ao tempo em que tenta encarnar a estabilidade e posição de superior magistratura do chefe de Estado, tenta também – na verdade, é obrigado – desempenhar o ativo, fluído e instável papel de governante, submetidos a todas as vicissitudes da dinâmica política.

Caso não se vivam crises políticas, a coisa até funciona nessa confusão de papéis. Todavia, nas crises políticas que põem em questão a legitimidade do governo, seu apoio parlamentar ou seu apoio popular, o risco transborda para atingir o que a princípio não estava em causa, ou seja, as instituições do Estado.

No Brasil, vêm e vão discussões sobre o parlamentarismo, todas ao sabor de interesses imediatos – geralmente golpistas – que são precisamente o que o sistema preveniria, pelo menos nas formas mais traumáticas. Poucos tratam do assunto a sério e muitos mudam ou omitem opiniões segundo o momento.

O ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso é um caso exemplar. Antes de suas duas e sucessivas presidências, era defensor aberto da adoção do parlamentarismo. Durante seus governos demonstrou um apego enorme ao presidencialismo, tão grande que fez o Congresso aprovar a possibilidade de sua reeleição – muitos dizem que à custa de subornos – e manipulou as taxas cambiais para, criando artificial sensação de riqueza, ganhar a segunda eleição. Depois, algum dilúvio, como sempre.

Presentemente, o mesmo Fernando Henrique, tomando o cuidado de não o fazer em períodos eleitorais, para evitar demasiado caráter casuístico, volta ao assunto, com alguma frequência. Os câmbios de opinião levam a crer que ele move-se pela vontade de restringir os poderes do titular do cargo que não seja ele mesmo.

Embora atualmente não haja crises políticas, notadamente porque a economia vai muito bem, há frequentes insinuações de golpismos sob vestimentas jurídicas. E nada impede que o golpismo mais franco ou a situação de perda profunda de legitimidade de um governo volte a repetir-se. Por isso, conviria que se discutisse a mudança na forma de composição e queda dos governos, separando-os da chefia do Estado.

É muito mais simples dissolver-se um parlamento, convocar eleições a buscar as vontades populares e compor novo governo que fazer algo semelhante ao tumultuado e pouco compreendido processo que culminou no afastamento do ex-Presidente Fernando Collor de Mello. Processo em que nada mais havia que uma insatisfação com o governo – que se revelou pouco confiável para muitos interesses – gerou uma tremenda confusão institucional a atingir o Estado, na medida em que o seu chefe e maior autoridade entrou na cena.

Os governos vivem de ter, manter e perder prestígio político. As presidências não podem viver ao sabor das mesmas forças, porque encarnam coisa muito maior e menos contingente. Outra saída era um Imperador, mas os bourbons nacionais parece que entraram em franca degeneração…