Tínhamos acabado de chegar a Lima, Olívia, eu e Daniel, e pusemo-nos a caminhar, que é o melhor que se faz. Chegamos na Plaza San Martín e ficamos a olhar em volta e a reparar na beleza paisagística e arquitetônica dessa praça meio belle époque, meio neoclássica, tão bem desenhada e cuidada. Eis que surge uma equipe da TVSur, da Venezuela, em seis daqueles imensos jipes Hummer norte-americanos.
Um repórter e um câmera vêm até nós. Bom dia, são daqui? Não – dissemos – somos brasileiros. Podem gravar um testemunho para uma matéria sobre os caminhos da América Latina, que fazemos? O que não gostamos, nos persegue. Fiquei calado e todos ficaram. Olívia e Daniel, ajudem-me e corrijam-me, que a memória vai fraca.
Lembro que, pelas tantas, disse: meu castelhano não dá para isso. O repórter, que era argentino, disse: isso que falas é suficiente e emendou: o que acha da integração sul-americana? Gelei e pensei que ou gaguejava em um castelhano para lá de precário, ou emendava a dizer o que achava, e aí seria tomado por tolo, louco, ou idealista. Pouco importa.
Somos diferentes de vocês, de vocês que falam castelhano e lembram-se de San Martín encontrando-se com Bolívar aqui, em Lima. Não temos a cultura do Altiplano, nem a noção de vários países estarem ligados por uma língua e uma cultura indígena assemelhada. Para teres uma idéia, lembra de Ernesto Guevara. Ele saiu da Argentina e foi parar na Venezuela e não passou pelo Brasil. Isso não é bom, nem ruim, apenas a integração é possível, mas o Brasil é outra coisa.
O repórter ficou com cara de quem escuta um louco, mas parecia encantado. Acho que não era o que esperava. Lembro bem que minha intenção era realçar a beleza da relativa unidade cultural dos povos sul-americanos de fala castelhana e quéchua e aimará e guarani e outras línguas mais. E deixar claro que os brasileiros somos diferentes, nem melhores, nem piores, mas diferentes.
Acho que foi daquelas entrevistas que o editor elimina.
O sítio mais cosmopolita em que já estive: Cusco. Uma coleção de belezas pré-incáicas, incáicas e coloniais castelhanas.
Mil e uma recomendações quanto ao soroche, o mal da altitude, o que não é excesso de cuidado em uma cidade a 3.500 metros do nível do mar. Sempre se diz: chegando a Cusco, repouso de uma hora, deitado, e muito mate coca. Caminhadas suaves, nada de bebidas com gás ou comidas gordurosas no primeiro dia, principalmente à noite. O soroche não é brincadeira.
Não é mesmo. Daniel troçava comigo. Estás perdido, Andrei, não fazes exercícios, bebes, fumas, vai botar os bofes pra fora. Chegamos, cumprimos as recomendações, tomamos chá de coca, deitamo-nos por uma hora e saímos a caminhar bem lentamente. À noite, achamos um restaurante simpatissíssimo. Sentamos na varandinha pequena – só cabíamos os três – e pusemo-nos a comer truta grelhada e a beber Cuzqueñas. Lá pelas tantas, Daniel começa a ficar entre branco e verde, como uma folha de coca.
Era o maldito soroche. Chamamos o garçom, que diagnosticou o mal e prescreveu a receita. Entramos – porque na varanda fazia um frio danado – e ele trouxe um pratinho com folhas de coca. Amassou-as cuidadosamente e disse: põe entre os dentes e fica a pressionar, em pouco estás bom. Como em pouco não era tão pouco, Olívia e eu ainda pudemos tomar mais umas Cuzqueñas até que nosso estimado desportista ficasse bom.
Machu Pichu é objeto de desconfiança de muitos, do tanto de que se fala do sítio. Bobagem, é belíssimo mesmo. Saindo de Cusco, de trem, percorre-se um caminho que, descendo de 3.500 a 2.400 metros de altitude, permite ver a transição do altiplano – da serra dos Andes – até as elevações que antecedem a vasta planície amazônica. Uma fartura de montanhas e água e verde.
Ao pé da montanha está Machu Pichu Pueblo, ou Aguas Calientes, onde se situam as hospedarias. O rio faz a curva em Aguas Calientes, abraçando a vila toda e lembrando de sua existência com o permanente som das águas rápidas em leito de pedras. Fomos lá para passar apenas dois dias e voltar no dia seguinte.
Falar de visita a Machu Pichu deve ser algo econômico, para não alinhar a coleção habitual de lugares-comuns. As vistas são bonitas a ponto de surpreender e surpresa é algo que raramente se tem. Voltamos a Aguas Calientes, muito cansados, e resolvemos retornar a Cusco mais cedo, no dia seguinte. Foi idéia da mente clara de Daniel e foi ótima idéia.
Fomos à estação do trem tentar marcar a viagem para mais cedo, mas não foi possível. Então, surgiu uma alternativa. Pegávamos o trem que saia mais cedo, para Ollantaytambo, e de lá apanhávamos um carro com o Edgar. Deu certo. O Edgar era uma figura fantástica de peruano índio do Altiplano. Saímos serpenteando pelas estradas do Vale Sagrado, rumo a Cusco.
Próximo a Cusco, antes de uma aldeiazinha, o Edgar aperta os olhos, vê mais longe, e entra à direita, na aldeia. Pára e diz: esperem um pouquinho. Sai, vai até a esquina, olha e volta. Liga o carro e sai precisamente na hora que a polícia estava ocupada com outros carros. É que não se pode fazer transporte de passageiros, explica. Pergunto: a ellos, les gusta mucho la plata. Oh, solo les gusta eso!
Tiramos uma fotografia com ele, mas aqui imperará o princípio da impessoalidade fotográfica.