Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Psicologia social de mesa de café (Page 4 of 10)

Um forasteiro, um domingo qualquer e a redenção de pecados.

Um texto de Ubiratan Câmara.

POA

Amanheceu o domingo, mas não parecia, estava cinza, frio e chuvoso lá fora.
Quando esperanças não mais havia, os céus se abriram e um novo dia parecia acontecer.

Romper a inercia da comodidade era preciso, e na mesma medida se tornou imperativo aproveitar o dia, pois as dádivas do tempo e da disposição física não merecem ser despendidas sob amarras de lençóis solitários ou tolices virtuais… Era hora, portanto, de andar pela cidade.

Porto Alegre, cidade dos outros, que apática e caótica me recebeu, se tornou minha, ensolarada e prazerosa acolhida.

Destino não poderia ser outro senão um espaço público, onde meus descuidados passos fossem indiferentes e a fotográfica permanecesse alheia à cobiça de terceiros. O Parque Farroupilha, mais conhecido como Redenção, se apresentou como uma opção, enfim.

No Parque, nos dias de domingo em que o bom tempo permite, estranhos se reúnem para negociação dos mais variados artefatos. São antiguidades, artesanato, obras de arte, porcelanas, livros, vinis, quadros, mosaicos, cacarecos de pouca ou nenhuma utilidade também repletam as calçadas. Ao escambo dominical deram o nome de brique da Redenção.

Andar calma e despretensiosamente, sem receios de qualquer natureza, é algo que me apetece em desmedida e que sinto falta no calor excessivo do nordeste, onde sou refém de um automóvel, na imensa parte do tempo.

Além das sutilezas que são comercializadas, não passam desapercebidas as pessoas que dominam algum tipo de habilidade e, com isso,  deixam um chapéu emborcado para receber contribuições dos mais surpreendidos.

O primeiro a se apresentar foi um argentino, que me lembrou Segovia, ao dedilhar com destreza, em seu violão cansado, Asturias. Ofereceu, em seguida, Piazzola, Gardel, Paco de Lucia e, até mesmo, para o deslumbre das maduras mulheres que ali passavam,  Roberto Carlos.

Nao ficou por aí. Eis que solta o violonista de rua, desta vez para delírio meu, o tema de Zorba. O meu tímido e improvável ímpeto de sozinho começar a dançar hedonisticamente como o Grego, foi levado a cabo por alguns germânicos que descansavam abaixo do Monumento ao Expedicionário.

Talvez estivessem eles despreocupados com o jogo da Alemanha, que aconteceria com a Argélia no Beira Rio. Ou, quem sabe, já estivessem comemorando a profecia da conquista do mundial.

Ciclistas, cadeirantes,  bebês e muitos cachorros testemunharam a dança. As testas franzidas e os sorrisos incontidos, como os meus, distinguiam aqueles que não tinham a menor noção de que se celebrava, daqueles que sabiam, respectivamente.

O argentino precisou descansar.

Próximo dali, se ouvia ainda uma uruguaia cantando o hino francês, acompanhada com um tambor. Em seguida, ofertou gracias a la vida. Piaff e Mercedes foram lembradas, como diferente não poderia ser.

Alguns passos adiante, compatriotas tocavam, cantavam e dançavam alegremente O Barquinho. Cantaram ainda mais bossa, em harmonia, com um tom de samba. Imagino que Vinicius sorriu e dançou junto, esteja onde estiver.

Se não bastasse, pequenos peruanos, sob os olhos cuidadosos de uma mãe, tocavam el condor passa e outros tons andinos; confrontando com a gaita e o violão elétrico de um rapaz que tocavam blues, convidativo para um bourbon, se não fosse ainda manhã.

Opções de gastronomia – até mesmo tapioca, acarajé, quentão e cachorros quentes com duas, três,  quatro ou mais salsichas –  se encontravam com facilidade. Até uma boa confeitaria estava ao alcance, apesar do nome, no mínimo, curioso: Maomé Doces Bárbaros.

E assim foi passando o dia… suave e despreocupado, na Redenção.

Dele me despedi com a impressão de que minhas transgressões estavam redimidas, ou, ao menos, esquecidas em momento, tamanha a leveza do domingo…

O pequeno-burguês, a justificação, o exemplo e a tara.

As interdições morais não reduziram a sedução dos interditos, nem visaram a isto. Talvez tenha-se dado precisamente o contrário, o que é muito conforme à percepção do senso comum de que o proibido é mais saboroso. As interdições, em verdade, são impostas exatamente pelo exagerado gosto pelo interdito.

O gosto pequeno-burguês não é temperado pela liberdade, nem pela estética. Ele é curado numa vinha d´alhos de proibição moral, morbidez, sexualidade confusa e, principalmente, necessidade de justificação. O vulgo gosta de sangue, vísceras expostas, cabeças partidas, feridas purulentas, acidentes automobilísticos; gosta de todo tipo de sexo, pois é feito da mesma matéria humana; aprecia o grotesco, o humilhante, as quedas, o ridículo.

Esse acervo de preferências não é exclusivo do pequeno-burguês, porque o feio é parte da realidade e principalmente do que ela tem de natural. Ou seja, o feio é basicamente inumano, não criado, ele é natural como a putrefação. Todas as classes inclinam-se ou pelo menos têm seu número de integrantes que se inclinam ao feio.

Particular da pequena-burguesia é a vergonha e a necessidade de encontrar justificações para sua inclinação para a descomposição, o sangue, as carnes, as fezes, os vermes, o feio natural e fisiológico, enfim. 

As maneiras de justificar a busca e a envergonhada apreciação do feio são sua interdição moral e uma suposta aproximação por busca de conhecimento e fornecimento de exemplos. Ora, é claro que se abordam muito mais à vontade as coisas proibidas que as permitidas e que é livre o uso de qualquer coisa para dar exemplos moralmente edificantes.

Vem-me à memória algo exemplar: nas escolas de direito, é usual haver uma ou duas disciplinas de medicina legal. Há dois pólos centrais de interesse na medicina legal e são as psicopatias e os exames cadavéricos. Por isso, são usuais visitas dos acadêmicos, guiados pelo professor, aos institutos de medicina legal, onde se examinam cadáveres.

Poucas coisas são tão concorridas no curso de direito quanto estas visitas às morgues, onde há cadáveres abertos do externo à virilha, de ombro a ombro, escalpelados, onde há órgão internos a serem pesados, sangue por toda parte.

Embora concorridas estas visitas ao santuário dos corpos mortos e abertos, ninguém diz ter prazer nelas, o que é de uma mendacidade grande até para acadêmicos de direito. Convém dizer que estas visitas aos institutos médicos legais não são obrigatórias e não há sanções para os alunos que não quiserem ir. Quase todos vão, todavia…

Esse gosto tem de justificar-se por um discurso científico, ou seja, os apreciadores de cadáveres abertos dirão que recolheram muitas e preciosas informações naquele espetáculo de corta e costura, dirão que foi muito proveitoso cientificamente e coisas do gênero. Ora, ninguém aprendeu coisa alguma nessas duas horas de contato com a morte talhada, nem poderia, que não há como recolher conhecimentos de anatomia em duas horas.

Nesse ponto, é interessante notar que a única coisa a chegar perto de rivalizar, em volume, com a pornografia, na internet, são as imagens de acidentes com corpos destroçados, sangue, vísceras e coisas do gênero.

Semelhante a esta apreciação da morte justificada por aquisição de conhecimentos científicos, acontece com a interdição moral da homossexualidade. É precisamente esta proibição que permite a abordagem constante do assunto, o eterno retorno ao assunto com uma justificação moralizante.

Na verdade, o mergulho na proibição moral da homossexualidade, interdição nitidamente religiosa, deve-se ao gosto pelo assunto. É interessantíssimo observar uma aberração conceitual muito em moda recentemente, uma coisa que atende pelo nome de cura gay e é divulgada e praticada por pastores reformados neo-pentecostais.

A idéia é absurda, na medida em que não se curam coisas normais, mas isto não é o que interessa aqui. Interessa é que os ferrenhos praticantes da cura gay frequentemente são flagrados na prática de atos homossexuais! Muito frequentemente, na verdade, o que indica, além de sentimento de culpa, o interesse em estar em contato com o assunto com uma justificação, uma desculpa.

Erigiram a justificação moralizante e exemplar em muro a esconder os gostos e desejos reais, inconfessáveis porque o vulgo sente muita vergonha de ser humano.

Suárez, a FIFA, o fetichismo e a construção da anomalia.

Todas as entidades, sejam públicas ou privadas, com origens culturais no mundo greco-romano-judáico recorrem ao discurso jurídico para afirmar-se. O que caracteriza a cultura ocidental, mais que qualquer outra coisa, é a lógica de tribunal e a hipocrisia.

Justiça, no sentido de equidade, nada tem a ver com lógica de tribunal. Na verdade, esta última é a grande avalizadora da injustiça, o que não representa problema algum para nós, que afastamos esta contradição com boas doses de hipocrisia.

A FIFA é aquela entidade a cuidar do futebol no mundo todo, servindo-se de seus tentáculos em cada país. É um negócio multi milionário mesmo se não se contabilizarem os dinheiros sujos que por ela passam.

Recentemente, a inclinação da FIFA para a delinquência financeira, notadamente o pagamento de subornos e o branqueamento de capitais, vem merecendo mais destaque. Aqui e acolá sabe-se de algum caso e não é de todo impossível que algum funcionário menor tenha que haver-se com a justiça na Suíça.

Suárez é um brilhante atacante uruguaio que atua no Liverpool, atualmente. É o atual artilheiro do campeonato inglês, tendo marcado apenas trinta e um gols…

Eis que Suárez, num lance típico de área, em que atacantes e defensores se agarram numa cachorrada imensa, mordeu o ombro do defensor italiano. Começou um movimento estranhíssimo para tornar esta imensa banalidade num ilícito gravíssimo.

Pois bem, a FIFA puniu Suárez com suspensão de nove jogos, multa de U$ 247.000,00 e banimento por quatro meses, por este nada acontecido no jogo entre Uruguai e Itália. Um dia depois de anunciada esta punição redentora, de caráter preventivo, como tem que ser alardeado para seduzir as massas, a própria vítima da mordida disse que era um despropósito.

Coisas muitíssimo mais graves ou nunca foram punidas, ou mereceram punições muito mais suaves. Basta lembrar a cotovelada de Leonardo em Tab Ramos, que caiu desacordado imediatamente, no jogo entre Brasil e EUA, em 1994. Por esta ação violentíssima, Leonardo foi punido com suspensão de quatro partidas.

O mais significativo desta encenação de vaudeville no caso Suárez é como é fácil tornar uma banalidade, um nada, em algo a espelhar a seriedade da entidade, que pune exemplarmente as ações violentas. A construção dessa fraude discursiva faz lembrar o pensamento de Foucault.

O discurso baseia-se fortemente na premissa de que é necessário punir para evitar que ocorra novamente. E todos dizem, a todo momento, que esta já foi a terceira mordida dada por Suárez, como se isso tivesse alguma importância. Há futebolistas que dão dez ou mais pancadas violentas por partida, enquanto o sacrificado Suárez deu três mordidas em toda a carreira.

Aqui, novamente, algo que Foucault sempre chamou atenção relativamente à construção discursiva da figura do infrator: há que se fazer um arrolamento de condutas, uma listagem pregressa que constitua um fio delitivo contínuo a indicar que se trata de uma personalidade anormal.

É curiosíssimo perceber como a enumeração de três condutas iguais leva a frêmitos e acusações de reincidência, como se não houvesse dezenas de casos muito mais graves e mais constantes, que não merecem qualquer punição.

A coisa tem ares de fetichismo, por outro lado. Das mordidas de Suárez não resultaram quaisquer danos aos outros jogadores. Muito diferente das cabeçadas, cotoveladas, soladas na canela, carrinhos por trás a prender o pé de apoio da vítima, pontapés e até socos, que não são incomuns. Muito ao contrário, o futebol, hoje, é bastante violento e duro.

O que mais escutei falar disso, depois de opinar que se trata de uma palhaçada, foi: porra, mas foi uma mordida! Sim, foi uma mordida, e daí? Acaso é pior que uma cotovelada? O caso é que poucos param para um momento e daí, em que se pensa com calma e se vê a bobagem erigida em delito grave.

Qual o problema que foi uma mordida? Nenhum. O caso é que mordida é como se fosse algo impróprio ao futebol, como se houvesse algum tipo de violência própria a este esporte. Este é o campo da interdição simbólica, do medo e do fetichismo.

Não pode morder, embora possa dar pontapés, por em risco tíbias, perônios, tendões e outras coisas mais cujas lesões são graves e de difícil recuperação. A mordida foi erigida em quase tabu e um mal em si mesma, independentemente de considerações sobre sua lesividade potencial e real no caso concreto.

As interdições de matriz no tabu são assim, elas não são por parâmetros objetivos e racionais dirigidas a condutas mais graves que quaisquer outras. Elas são graves porque subjaz algo de sexual nessas condutas, algo de fetichista e algo de religioso.

A gravidade da mordida que não machuca é semelhante à interdição católica da masturbação, algo cuja lesividade é zero e cuja reprovação é puramente baseada em simbolismo.

Fato é que esta comédia em que se sacrificou Suárez no altar da delituosidade criada a partir de fetichismo serviu à FIFA, que pode pôr em prática o discurso de tribunal, invocar a sedução das punições exemplares e preventivas e distrair a atenção do público das coisas reais que são seus casos de profunda corrupção.

Segregação por aparência.

Toda lógica de atuação social tende a tornar-se inercial e, portanto, autoreplicar-se sem que os agentes percebam claramente o que fazem e porque o fazem de tal ou qual maneira.

O domínio de poucos sobre muitos depende bastante deste tipo de inércia percebida como um estado natural de coisas. Claro que isso tudo, de tempos em tempos, é temperado com pequenas pitadas de razoabilidade e de aparência de igualdade formal.

Em junho, acontece algo extraordinário nestas bandas do nordeste do Brasil: festas de São João que levam quase o mês inteiro. Em Campina Grande, precisamente, há um espaço dedicado à realização desta farra de trinta dias, que hoje pouco tem de tradicional, na verdade.

Como é intuitivo, o espaço fica cheio de gente, e nos finais de semana fica tão repleto que é quase intransitável. Esse tipo de aglomeração é ideal para a prática de pequenos furtos e alguns roubos. Assim, são tomados certos cuidados com a segurança.

Todo o amplo espaço é fechado no seu perímetro, a partir das cinco horas da tarde, e há quatro ou cinco locais de entrada e saída. Nestes pontos, há dois corredores de entrada, um para mulheres e outro para homens.

Neles, fiscais passam rapidamente aqueles detectores portáteis de metais, em busca de armas brancas ou de fogo. Caso os detectores acusem metais, o que quase sempre ocorre, por causa de moedas e chaves, faz-se uma rápida revista com as mãos. Realmente, não é nada constrangedor, nem invasivo.

Não gosto de multidões concentradas, nem gosto dessa música ruim que o atrevimento sem fim da indústria de entretenimento achou de chamar de forró, nem gosto de pagar caro por coisas ordinárias. Assim, só vou lá bem cedinho, pelas seis, sete horas, para uma brevíssima volta, pois nesta altura há pouquíssima gente e apenas trios de forró de verdade.

Eis que entrava e o detector de metais apitou. Claro, tinha um bolso cheio de moedas e no outro as chaves de casa. Parei e fiz menção de meter as mãos nos bolsos e retirar o que lá se encontrava, para provar ao sujeito da segurança. Ele balançou a cabeça e disse: nada, pode entrar, vocês são gente de bem… 

O maluco concluiu que éramos gente de bem – o que quer que isso signifique – e não fez em mim a revista com as mãos, que é de praxe quando o detector apita. Tudo bem, segui em frente. Mas, detive-me brevemente, apenas o suficiente para entrever uma cena que daria uma tese de doutoramento.

Atrás, entravam pai e filho, sendo este último uma criança à volta de quatro anos de idade. O detector de metais apitou quando o pai entrou e ele foi rapidamente apalpado nas pernas. Em seguida, entrava o menino, que devia ter qualquer coisa metálica no bolso e foi revistado manualmente.

A revista não teve nada de agressiva, intrusiva, humilhante, nada disso. Foi rapidíssima e superficial. Acontece que um menino de quatro anos foi revistado e eu não fui, mesmo que o detector de metais tenha apitado nos dois casos.

O menino de quatro anos e o pai eram pretos, assim como o sujeito da segurança…

A pequena burguesia e a necessidade de levar a classe baixa ao suicídio político.

A política é o espaço dos conflitos de interesses de grupos e classes, ou seja, o espaço próprio da luta de classes. Na política, está pressuposto o escolher, o tomar decisões a partir de alternativas possíveis. Não se trata, portanto, do âmbito do bem e do mal, não é o campeonato da moralidade. Aqui, está em jogo a apropriação de parcelas da riqueza gerada num certo espaço; quem fica com quanto.

Os grupos minoritários precisam esconder essa realidade a qualquer custo e, por isso, oferecem o discurso moralizante como forma de afastar o que efetivamente está em jogo. Os grupos minoritários, que correspondem aos dominantes, precisam evitar que os maioritários percebam que não há correspondência de interesses entre as diversas classes.

No Brasil, a disparidade na apropriação das rendas é de fazer corar qualquer pessoa bem alfabetizada que não esteja a soldo de interesses maiores. Ela, em resumo, justifica-se discursivamente na mitologia do mérito, o nome que se usa para inércia social. 90% dos meritocratas brasileiros estão onde estão porque nasceram onde nasceram. Mas, para a rapina é preciso crença, então essa gente acredita na mistificação da meritocracia.

Pois bem, de alguns anos para cá, anos que correspondem precisamente aos dois governos do Presidente Lula e aos quatro da Dilma, a desigualdade recuou. A melhora na distribuição das rendas resultou bem para todos, mas evidentemente esses benefícios não foram proporcionalmente iguais para todas as classes.

Os mais acima ganharam muito, tanto vendendo bens de consumo e imóveis, quanto vendendo dinheiro. Os mais abaixo ganharam mais, relativamente, porque tiveram acesso a pouco, depois de muito tempo com acesso a nada. Os do meio também ganharam, mas menos que os demais estratos. Os do meio e principalmente da parte superior do meio, são a pior gente que há, não apenas no Brasil. Incapazes de guerra, recorrem à sabotagem.

A redução das desigualdades fez-se de maneira óbvia: programas de rendimentos mínimos e aumentos do salário mínimo. Isso, além de certo conforto material, levou às fronteiras do rompimento do pensamento da eterna servidão e às raias da crença quimérica na igualdade. Os de muito de cima acharam ótimo, à exceção de um e outro profunda e sinceramente imbecil e fascista in pectoris. Os de cima celebram o aumento do mercado interno, salvo quando são entreguistas a ponto de trabalharem contra si próprios.

A classe média alta, esta não perdoa a inclusão social de vastos milhões de concidadãos. Ela é capaz de perceber que o movimento de ascensão dos pobres reduziu tensões e criou mercados para seus serviços, mas não tolera que o Estado tenha despendido com os ascendidos dinheiro que ela classe média alta queria para si. A questão é de divisão do roubo e de simbologia do poder.

Hoje, às vésperas de eleições presidenciais, a classe média alta vota para tomar para si os dispêndios estatais com programas de redução de desigualdade social. São contra aumentos do salário mínimo e contra o bolsa família porque querem estes dinheiros para si, na forma de isenções de imposto de renda e de isenções de imposto de importação de automóveis.

Para essa gente, a disputa é por dinheiro e, secundariamente, por manutenção de símbolos de poder. Os funcionários domésticos encareceram, no Brasil, de doze anos para cá. O trabalho doméstico é estigmatizado como o mais próximo ao nada e ainda permanece destituído de direitos e assimétrico a todos os outros trabalhos, sem que haja razão para isso.

A classe média alta viu-se obrigada a gastar mais para manter seus servos domésticos e, mais que isso, obrigada a fazer de conta que os considerava iguais, embora apenas pessoas com salários menores. No íntimo, encheram-se de rancor e buscam reverter esta situação. Aí está a esperança de quantos se oferecem contra a candidatura da Presidente Dilma: o rancor da classe média alta.

Precisam convencer os da classe baixa a votarem contra quem lhes melhorou a vida materialmente. Contam com a preciosa ajuda da imprensa dominante, que é contra qualquer coisa que diminua a concentração de riquezas, porque teme que venha na esteira a desconcentração do poder mediático. Só há uma forma de levar a classe baixa a votar contra si mesma: fazer acreditar na identidade de interesses.

Para tanto, é fundamental fazer acreditar na inexistência da luta de classes e na indiferenciação política. Isso implica espetáculo e moralismo, o que é ofertado maciçamente na imprensa. Tal estratégia tem boas chances de êxito, mas resta algo a considerar.

Caso a direita ganhe as eleições presidenciais de outubro e tenha mandato para executar seu programa concentrador e entreguista, terá que dispor de meios para aplacar as reclamações que emergirão inevitavelmente dos que rapidamente regridirão. Será difícil fazê-lo somente com editoriais de jornais televisivos e novelas. Mais difícil ainda será fazê-lo com repressão policial.

Como quer que seja – e não é remota a possibilidade da direita ganhar – fica para a classe baixa e para a esquerda clara a necessidade de evidenciar que política é conflito de interesses e não campeonato de moralidade.

O saque do Estado e os dilemas e interesses da classe média.

Não há nobreza senão no proletariado e na aristocracia. E não há inteligência em negar as estratificações que se conhecem pelos nomes consagrados. Isso deve ser dito, aqui no início, porque tornou-se moda negar não apenas a existência de classes, mas a própria classificação e sua terminologia própria.

Convém ainda anotar que classe média, como está no título, significa realmente classe média alta, porque ela pode realmente ser dividida. Dividi-la é negar o grande negacionismo patife que se instalou e oportunisticamente chamou de classe média todo um grupo heterogêneo que se aproxima tenuemente por critério de rendimentos auferidos.

É tolo por duas pessoas no mesmo grupo apenas por terem aparelhos de televisão do mesmo tamanho.

As identidades não se fazem mais fortes por similitude de rendimentos que por outros fatores mais sutis e etéreos. E o alargamento de banda de rendimentos permite colocar no mesmo saco muita gente que está distante, tanto nos rendimentos, como na instrução, nos anseios, na percepção da história.

Assim, essa estória de nova classe média é qualquer coisa de vaudeville ou então estratégia pensada para confundir. Realmente, interessa bastante à parte alta que a parte baixa acredite-se partícipe de um mesmo núcleo de aspirações e não perceba a realidade: a luta. Não há sucesso maior que fazer o oprimido acreditar-se em comunhão com o opressor.

Neste ponto, entrego-me à uma lástima antiga, que sempre me assalta quando penso no Brasil: não há liberais clássicos neste país, exceto por um e outro isoladamente, que recebeu por herança o pensamento juntamente com os bens. Resulta que quase todos os discursos liberais não passam de desonestidade e insuficiência intelectual.

A tal classe média alta deu para achar que faz discurso liberal, quando defende apenas a apropriação do que tem sido gasto pelo Estado com políticas de rendimentos mínimos e outras iniciativas de seguridade social. Ora, o liberalismo não postula o alargamento da desigualdade como objetivo a ser perseguido. Na verdade, o liberalismo define-se bem pela ausência de objetivos definidos; não é um programa, senão uma reunião de meios. Os objetivos têm que ser cuidadosamente disfarçados.

Essa gente, na verdade, sempre está a meio caminho de algum fascismo de defesa corporativa, talvez por nostalgia do que a fez ascender, que certamente não foram os méritos que proclamam. Têm alguma repugnância pela estética puramente fascista, mas desejam ardentemente a impressão de ordem e o assalto compacto do Estado.

As classes baixa e média baixa tampouco são liberais ou têm alguma noção mais precisa do que seja isso. Elas estão em verdadeira ebulição, vivem a mistura dos anseios de progresso material e estabilidade, ou seja, temem profundamente os retrocessos.

São a matéria perfeita para a edificação de um fascismo clássico, que permite ver o Estado a desempenhar o linchamento do diferente, a propósito de dar espetáculo em data certa. Vão em busca da técnica com empenho sincero e dedicam-se à superficialidade nas humanidades clássicas. Seu flerte com o bacharelismo jurídico gera os rebentos mais monstruosos que a sociedade vê.

É difícil conceber um acordo real e consciente entre as classes média alta e baixa, na medida em que não comungam de interesses e de identidades na medida do que a parte de cima quer fazer crer. O acordo é possível a partir de inverdades e traição pura e simples a posteriori. Em bases claras, não vai adiante porque ninguém o aceitará.

Curioso é perceber que a parte alta vem apostando em alguma sinceridade narrativa, nestas vésperas de eleições presidenciais, o que significa dizer que postula abertamente a cessação das políticas de redução das desigualdades sociais. Ora, estas políticas beneficiam as partes mais baixas, o que implica a necessidade de enganá-las para apoiarem a supressão do que as beneficia.

De qualquer forma que se olhe esta tentativa, há que reconhecer que carrega boa dose de audácia e crença na burrice alheia.

As raízes do ódio medio-classista ao Bolsa Família.

Há meses, escrevi pequeno texto a demonstrar que o programa de rendimentos mínimos Bolsa Família é algo realmente mínimo e inferior ao que os médio classistas apropriam do Estado por meio de simples isenções tributárias, como aquela decorrente de ter um menor dependente. Basta um pouco de informação e de honestidade intelectual para perceber que o bolsa imposto de renda é maior que o bolsa família dos miseráveis.

A cruzada contra os programas deste tipo, e marcadamente o Bolsa Família, não dá sinais de arrefecer-se; antes, ao contrário, assume ares cada vez mais histéricos. Dois argumentos disputam a primazia na composição do sofisma contra os rendimentos mínimos: um, de caráter nitidamente moralizante, diz que estimula a vagabundagem; outro, pseudo-econômico, diz que enfraquece as finanças públicas e corrói o equilibrio fiscal.

O argumento farisáico plebeu é desmentido diretamente pelos números. Ora, ao mesmo tempo em que avançam as políticas redistributivas baseadas em rendimentos mínimos reduz-se a taxa de desemprego para mínimos históricos, à volta de 05%, o que, em termos econômicos, equivale a pleno emprego. É pueril demais até para moralizantes medio classistas brasileiros defender tamanha contradição.

A segunda bobagem tem maior conteúdo político, embora esconda-se sob o disfarce econômico. As contas públicas brasileiras vão muito bem, hoje, com endividamento público relativo ao PIB realmente baixo. Além disso, se se trata de levar o fetiche da redução do gasto público adiante, como idéia fixa, podem-se cortar inúmeras despesas e não necessariamente o Bolsa Família. Que tal suprimir as deduções de despesas médicas e de educação do imposto de renda de quem tem rendas?

As motivações reais percebem-se se nos mantivermos no âmbito do pensamento político, da disputa pelo poder a partir de seus maiores pilares: dinheiro e prestígio social.

Quem fala contra Bolsa Família não acredita seriamente – exceto uma minoria realmente estúpida demais – nisso de estímulo a vagabundagem, nem está preocupada com o número de vagabundos, até porque quanto maior este número melhor para a Casa Grande. Tampouco há alguém seriamente preocupado com equilíbrio fiscal, desde que o desequilíbrio o favoreça.

A Casa Grande e seus médio servos quer mesmo é apropriar-se deste dinheiro. Ou seja, quer que ele seja gasto com ela e não com os miseráveis. Quer que seja despendido na forma de mais isenções de impostos por despesas que fez porque quis. Quer aumento na cota para importar espelhinhos comprados em Miami sem incidência de impostos. Quer redução de impostos nos bens de consumo de luxo e outras formas de assaltar o Estado.

Por outro lado, a obtenção de níveis mínimos de dignidade impede que os miseráveis submetam-se à escravidão da Casa Grande, sempre disfarçada em bonomia e generosidade. Aquela que troca trabalho por três pratos diários de comida e a falsa intimidade dos que se cruzam dentro de casa. Isso diminuiu, encareceu a mão-de-obra não especializada e retirou algo preciosíssimo para as classes médias e altas: a simbologia do servo à disposição.

É notável que se vejam, com frequência assustadora, as figuras tão clássicas como anacrônicas da senhora que caminha à frente da babá com o filho nos braços. São muito simbólicos o andar à frente e o não precisar fazer esforço físico. Esta é a simbologia do prestígio social, a permanecer quase inalterada mais de cem anos depois das belas pinturas de Debret.

Ei, me dê seis pão aí!

As trivialidades, quando estamos em bom estado de humor, são as coisas mais deliciosas que há. Porém, quando os líquidos corporais conduzem mais análise que divertimento, são terríveis portas abertas para a percepção da brutalidade.

Isto que se encontra acima do texto, como título, foi dito na padaria, domingo ao final da tarde, por uma senhora daquelas repletas de doirados, desde os óculos até às sandálias, passando, é claro, pelos punhos, dedos e cintura.

A típica criatura que, provavelmente feia até mesmo antes de envelhecer, enfeita-se. Enfeitar-se é o reverso da beleza, seja de formas e proporções, seja de gestos. Mas, a feiúra não percebeu que grande piada fizeram-lhe, ao convencer-lhe que enfeitar-se minimiza. Dá-se precisamente o contrário.

Mas, não é de feiúra, nem de doirados, que quero falar. Não é, tampouco, apenas dos rotineiros erros nas colocações pronominais, na eterna confusão das ênclises e próclises, da supressão dos plurais e da incapacidade de usar os pronomes no caso oblíquo.

Essas agressões à estética, mais que às normas, revelam muito mais que ignorância formal ou que suposta grandeza de cultivas oralmente o coloquial.

Primeiro, apontam algo delicioso, que é a profunda democratização homogenizante a que chegamos: as diversas classes falam da mesma maneira, embora uma aquinhoe-se muito melhor que outras, materialmente e em termos de prestígio social. Devo dizer que a senhora adoiradada dos seis pães transportava-se em automóvel de não menos que R$ 80.000,00.

Outra coisa que me chama profundamente a atenção é a brutalidade que há numa frase tal como esta, usada para pedir pães. Não houve um boa tarde, um por favor, nem um obrigado e certamente as ausências são se deveram àlgum intuito deliberado de ser brutal.

A perda quase absoluta da estética, do culto das formas e da precisão, por quem teoricamente teve acesso aos treinamentos escolares, vem de mãos dadas com um à vontade feito de imperativos desacompanhados das formas consagradas de lubrificação das comunicações.

Ainda há quem use da cortesia básica de dia-a-dia, como se usam roupas do século XIX, ou seja, naturalmente e sem afetação. Há quem use como a desempenhar uma personagem exótica, efeito obtido porque o número maior não usa e percebe o usar como realmente exótico.

O normal, este é a brutalidade de mão dupla. Sim, de mão dupla, porque é realmente democrático e quem ordena em dialeto a entrega de seis pão está pronto para ouvir alguma negativa ou o simples mau humor da moça da padaria, no mesmo tom.

A comunicação dos desiguais econômica e socialmente faz-se no mesmo dialeto, o que é extraordinário. Se assumo que brutalidade de imperativos não precedidos de bons dias, por favor e obrigados – além dos erros estéticos – é algo que não caracteriza os melhores, devo ficar um tanto incomodado com as possíveis conclusões.

Os mais bem aquinhoados não são melhores em nada além da inércia decorrente da classe em que nasceram ou de terem sido bem aquinhoados com os predicados do oportunismo e o talento para a vigarice.

Há nisto um tantinho de transição inconclusa do rural para o urbano. A cortesia por fórmulas consagradas, mais que um adereço barroco de dândis, é um óleo a reduzir os atritos prováveis no convívio de muitos e com interesses diversos.

A brutalidade do imperativo constante, que não se permite quase exceções, é muito caracteristicamente rural e vai bem neste meio, que funciona sem travar com menos óleo lubrificante. Transposta para outras realidades culturais, leva à duplicidade que necessariamente antecede à fixação pelo menor padrão ou à rutura definitiva.

 Sempre houve quem compreendesse e desculpasse às classes mais baixas e aos anacronicamente provindos do meio rural essas formas no discurso cotidiano. Não creio absolutamente que façam mal estes que percebem e desculpam, porque se trata de algo que espontaneamente vem de onde poderia vir.

Todavia, é artificialíssimo, por um lado, que o mesmo se procure desculpar em quem reivindica superioridade, cosmopolitismo, maiores rendimentos e alguns discretos privilégios de classe.

Poderíamos aprofundar a democracia para além dos seus evidentes aspectos de liberdade de sufrágio. Seria algo em que a funcionária da padaria voltasse para casa num automóvel de R$ 80.000,00, como faz a senhora dos doirados; ou algo em que ambas retornassem a pé ou em transporte coletivo. Afinal, elas são as mesmas pessoas!

Conversa com um tolo fascistóide.

Tenho enorme receio de ocasiões propícias para conversas indesejadas. Muito embora o mutismo a me caracterizar quase sempre afaste as pretensões tagarelas de desconhecidos em lugares públicos, sempre haverá os tolos mais tenazes e necessitados de expansão.

A fila no supermercado é, talvez, o local mais arriscado para quem tem estes receios de contatos aleatórios com desconhecidos. Geralmente, iniciam-se com alguma reclamação. Isso é mesmo curioso, porque leva a crer que a reclamação é algo conducente ao ponto em comum.

O interlocutor crê – e na maioria das vezes está certo – que terá a confirmação no outro daquela sua insatisfação, que pode ser a respeito de qualquer coisa, até da maior insignificância.

Outro dia desses, estava eu na fila do mercado e aproxima-se um fulano, com ares de pequeno-burguês na altura dos 50 anos, com uns papéis na mão. Percebi imediato o risco. Chegou-se próximo e, depois de poucos instantes, começou a reclamar das dificuldades de se pagarem as contas tais ou quais. Anui com um aceno de cabeça.

Se estas pessoas não fossem tolas nem impelidas por uma força invencível de comunicar-se por nada, perceberiam o aceno de cabeça como sinal do obstáculo à conversa. Todavia, a tolice é muito afirmativa, pois as maiores parvoíces e, no âmbito político, as maiores barbaridades fascistas precisam ser ditas.

Após não ter compreendido o aceno de cabeça, o fulano emendou a seguinte frase, que nada tinha a ver com a reclamação anterior sobre as dificuldades de se pagarem contas: aquela mulher acha que tem direito a ser reeleita…

Se escrevesse para pessoas semelhantes ao que proferiu a frase acima, não seriam necessárias explicações, porque compreenderiam imediatamente. Todavia, não é este o público visado, então convém explicar.

Essa mulher, a que se refere o sábio, é a Presidente do Brasil, Dilma Rousseff. O sábio não se digna a chamá-la pelo nome, nem a referir-lhe o cargo ocupado. O dizer aquela mulher é muito revelador, tanto de um machismo anacrônico, quanto de um desprezo pequeno-burguês muito próprio do fascista inculto seguro de si e de suas pequenas verdades.

Habitualmente, permaneço calado ante tais derramamentos caudalosos de mesquinheza e burrice, mesmo se a insistência for demasiada. Porém, nesta ocasião, estava com algum humor e resolvi verificar se o interlocutor ainda tinha algum traço de pensamento próprio.

Disse-lhe: isso não é questão de direito, é de votos. O fulano ficou um pouquinho desconcertado, mas ainda insistiu na histeria: mas, não tem o direito de querer reeleger-se…

Redargui: claro que tem. Esse direito foi criado pelo sábio Fernando Henrique Cardoso, a um custo e a partir de métodos de convencimento nada ortodoxos…

O rolezinho, os novos-ricos, os novos-pobres e a demofobia.

O maior risco de ensinar por meio de exemplos é ter êxito…

A vacuidade, os maus modos, a forma atabalhoada de estar, o ser barulhento e a busca incessante da redenção no consumo foram diligentemente ensinados às massas, independentemente de suas classes sociais. Óbvio que cada classe age segundo seus interesses e que adota uma estética própria, o que é meio de identificação externa.

As partes mais aquinhoadas financeiramente das massas erigiram o centro comercial – shopping center, na nossa abissal caipirice – em mais que templo. Tornaram-se os espaços privilegiados porque seguros e plenos de um grupo mais ou menos uniforme socialmente. Fica claro que essa essência de segurança baseia-se pura e simplesmente na segregação por classe, o que revela a identificação dominante de pobreza com criminalidade.

Insegura da eficácia do discurso gerador da crença nos lugares adequados, ou seja, insegura de que os pobres saberiam reservar-se aos seus espaços exclusivos, as classes mais altas cuidaram de resguardar suas áreas de convívio de algumas maneiras. A mais evidente é geográfica e com dificuldade de acesso: os centros de compra são erigidos em locais cujo acesso ideal dá-se por automóvel, por exemplo.

Outra estratégia de resguardo passa pela estética, por signos que levam o diferente a perceber-se inadequado e envergonhar-se. Isso ainda é resquício de fases mais sofisticadas de exclusão, fases bem caracterizadas pela expressão pobre que sabe o seu lugar. Assim, o excluído é que cuida de excluir-se, posto que a crença na inabalável diferença solidificou-se nele.

Ocorre que a sedução consumista fincou raízes profundas e afastou as barreiras físicas e a aceitação das crenças. Jovens de periferia inundaram centros de compras reservados à classe alta e expuseram aberta e francamente sua estética. Isso assustou a clientela preferencial, que viu nos episódios dos rolezinhos algo semelhante aos famosos arrastões, embora de criminalidade não se trate.

O que escandaliza, deixando eufemismos de lado, é a predominância da pele escura, uma estética dos trajes, do falar, da gestualística diferentes das marcas de pertencimento dos frequentadores habituais. Não é mais feio nem mais bonito que a estética da classe alta, mas é diferente.

É demofobia, sem mais nem menos. Mas, ela precisa esconder-se e lançar mão do discurso do medo da violência, ainda que não tenha havido mais violência que a comumente produzida pelos adolescentes de classe alta.

Dizem que esses espaços são privados e que, por isso, é legítima a discriminação e o impedimento da entrada dos jovens das periferias. Inclusive, essa variante nova do apartheid foi confirmada judicialmente, em São Paulo, o que está longe de surpreender quando se sabe para quem trabalha o poder judicial. Todavia, não se cuida de espaços meramente privados, na medida em que os centros de compras são espécies de sucessores das praças públicas.

Não é aplicável ao centro de compras a lógica própria de um condomínio residencial, em que os donos escolhem quem entra e quem não, porque o critério de discriminação que pretendem aplicar aos centros comerciais não é lícito e a clientela a ser admitida não é composta de condôminos do espaço comercial.

Todavia, aqui aparece algo bem revelador: o grupo dos clientes a serem admitidos age como se fossem condôminos, como se fossem os donos dos centros de compras e assim legitimados a exigirem a obstrução aos que não se incluem na categoria dos proprietários do espaço. Da mesma forma essa classe dominante age relativamente aos espaços inteiramente e conceitualmente públicos, mantidos pelo Estado.

Enfim, o escândalo com os rolezinhos dos jovens da periferia é resultante da mistura de duas coisas muito antigas: demofobia e patrimonialismo.

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