Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Psicologia social de mesa de café (Page 3 of 10)

Você sabe atirar?

A esquerda de academia sabota a que assume riscos reais. O que eles produzem já existe, reinventam a roda cotidianamente, fazem auto celebração e menções cruzadas, vivem do Estado, falam bem ou mal dele conforme a ocasião.

Não ganham eleições. Mas, sentem-se à vontade para tentar extorquir algo de quem as ganha. E se a extorsão não resulta em tudo que querem, estão disposto a emprestarem suas penas para a segunda volta da chantagem. Se, afinal, der errado, recomendam mea culpa a quem deu a cara a tapa e pulam fora.

Uma reunião dessa gente é um campeonato de currículos. Cada um que fala faz a declamação do resumo de sua tese de mestrado ou doutorado, ou tudo junto. Não saem das suas teses e ficam a celebrar-se interminavelmente.

Como todo esquema clerical, são perfeitamente compreensíveis a partir da luta de classes. Estão nas classes superiores e, portanto, contra as inferiores, pouco importando a embalagem em que porão seus reais anseios.

Não assumem quaisquer responsabilidades, certos de que ganharão assim ou assado. Têm muita razão em pouco temer, porque nada ameaçam. Não há que temer, nem por razões formais, nem materiais. Acontece que não era necessário ser além de irresponsável oportunista de funeral.

Lula foi o maior presidente que teve o Brasil. Seus oito anos de governo melhoraram as vidas de todos, sem exceções. Ele é um capitalista esclarecido que apostou no mercado interno e na aliança com a grande burguesia nacional. Vem da classe baixa e isso é inédito.

É claro que a esquerda da academia não o tolera. Ele assume riscos e encara responsabilidades. Sacrifica no altar da academia como em qualquer outro, sem mais reverência aqui que acolá. Não tem graduação, nem pós-graduação; não estudou metodologia, não é epistemológico. Ele é apofático. Não é acadêmico, não é comunista, não é direitista, não é escravo da Casa Grande, mas fala com ela.

A esquerda da academia quer mandar nele, todavia. Agora que ele é o alvo de todo o golpismo enraivecido, a esquerda de academia recomenda-lhe penitência. Recomendam-lhe estudar a situação, com ênfase nesse termo estudar, como a lembrar que formalmente ele não estudou. Eles vingam-se.

Dilma Rousseff estudou. Mas, além de ser economista, ela sabe atirar. Isso não agrada o clero, pois ela tem uma competência que denuncia a incompetência do clero: ela já brigou a briga de verdade, algo que o clero nunca fez, pois terceiriza os limites, terceiriza a violência. Mais que temer, sentem repugnância pelo real.

Quem ganhou quatro eleições seguidas não foi qualquer integrante do clero e, portanto, não foi o discurso do clero. Lula é o branco que assim não é percebido na África, onde branco e dominador são sinônimos. Foi ele a ganhar duas eleições presidenciais, depois de perder três. Suas vitórias não foram vitórias do clero, embora um e outro clerical lhe fizesse vênias.

Quem ganhou foi o operário que nasceu pobre e não estudou. Agora, quem ganhou foi a que estudou mas brigou; a que sabe atirar, algo muito mais difícil que alinhar notas de rodapé e citar os citandos corretos.

Não há perdão para eles, obviamente. O clero dirá que não ganhou porque não quis disputar, porque sua posição é alheia e equidistante, é teórica. Dirá que a massa não compreende o discurso clerical, ou seja, que não compreende a verdade, posta em linguagem dos deuses.

O clero não ganha eleições; nem com a ajuda da imprensa. Mas, tem raiva e tem espaço para externa-la.

Eu, centro do mundo…

Pela manhã cedo, costumo estar de bom humor. Isto foi essencial no episódio falado a seguir, porque não é sempre que altas doses de ridículo e egocentrismo levam a reações adequadas.

O edifício em que moro é próximo de um terminal de integração de linhas de ônibus de transporte coletivo urbano. Assim, a rua em que está localizado é roteiro de muitas linhas, ou seja, nesta rua passam ônibus com destino ao tal terminal.

Manobrava o carro na garagem, em vias de sair para trabalhar, quando uma senhora, vizinha, bateu levemente no vidro do lado oposto ao meu. Parei o carro, baixei o vidro e dei-lhe bom dia. Ela respondeu educadamente e de forma meio complicada iniciou o discurso a que se propunha.

– O senhor sabe, aqui na rua passam esses horríveis ônibus. Desde esse terminal aí, o de integração, tem essa maldição.

– Sim, passam ônibus…

– Olhe, é uma poeira que Deus do céu! Fica tudo sujo, o tempo todo, a empregada tem de ficar limpando o tempo todo. Um horror!

– É, realmente o tráfego dos ônibus traz muita fuligem.

– Precisamos fazer alguma coisa. O senhor precisa falar com alguém.

– Como assim?

– Falar com as autoridades, em nome do condomínio. Pedir para não passar mais ônibus na rua!

– Entendi… A senhora quer que eu peça às autoridades de trânsito para proibirem os ônibus de passarem aqui na rua? Certo, certo, vai dar certo isso…

– Vai, eles vão entender o absurdo que é isso.

– Claro, vão… Olhe dona Fulana, vamos fazer o seguinte, pra dar mais substância a essa justa reivindicação…

– Diga?

– Vamos fazer um abaixo-assinado! A senhora, penso eu, é aposentada, não é?

– Sou, sim.

– Pronto, a senhora tem mais tempo que eu e conhece mais gente. Daí, a senhora colhe as assinaturas de todos os moradores da rua. É fundamental pegar as assinaturas de todas as freiras aí do Convento das Clarissas, aí em frente, e dos mórmons aqui do lado; isso tem peso, sabe.

– Sim, sim, tem, mas será que isso é preciso mesmo?

– Claro! Depois é só reconhecer todas as firmas em cartório e nós procuramos as autoridades.

– Olhe, vou ver, vou ver… Até mais senhor Sicrano, tou vendo que o senhor tá saindo para o trabalho.

– Até, dona Fulana. Disponha. Bom dia.

O mais extraordinário deste episódio é que a minha interlocutora não pensou nem um minuto que o desejo dela esbarra nos interesses de toda uma coletividade que se transporta em ônibus, nos interesses do poder público e nos interesses do capital!

Ela simplesmente acha que o absurdo para ela – o tráfego dos ônibus na rua em que mora – é um valor absoluto e que, ou não há milhares de outros interesses, ou eles devem sucumbir frente ao dela. É autorreferência em estado quase puro.

Interessante também é que dá para forçar um recuo quando se trava a tentativa do autorreferente de terceirizar ridículo e trabalho. Neste ponto, muitos começam a pensar um pouco…

O dr. Stanley Milgram tem algo a ensinar ao contra-golpe.

Além das experiências e posteriores teorizações dos professores Roger Sperry e Michael Gazzaniga com secção dos corpos calosos e suas assombrosas consequências em termos de consciência e vontades autônomas, as investigações do doutor Stanley Milgram parecem-me o que há de mais interessante em termos de humano.

O doutor Milgram elaborou o experimento em obediência à autoridade, na Universidade de Yale, a partir de 1964. Dez anos depois, descreveu os experimentos e avançou hipóteses de conclusões no livro Obedience to Authority: An Experimental View.

Feliz ou infelizmente – mais provável o segundo advérbio – a coisa veio a seguir ao julgamento de Eichmann, após sequestro dele e condução para Jerusalém. Infelizmente porque tudo que se associa, por mais tenuemente, ao holocausto dos judeus entre 1940 e 1945 torna-se complicado, mais ou menos proibido e passível de interpretações axiomáticas. Mas, deixemos Eichmann para lá.

A experiência, em termos de equipamentos e tecnologia envolvidos, era muito simples. A encenação que ela implicava, também. Nem tão simples são as conclusões que se podem extrair, notadamente se nos detirvermos, ao depois, no que pode significar autoridade, no alcance deste termo, no que a constituiu e suporta.

Basicamente, três pessoas estavam envolvidas no experimento: o pesquisador e dois voluntários supostos. Destes últimos, um faria o papel do educador e o outro do aluno. Milgram convocava os voluntários por meio de publicações em jornais e oferecia uma módica recompensa – quatro ou seis dólares, não sei ao certo – para quem se dispusesse a participar da experiência científica. O propósito declarado era investigação sobre memória.

À partida, no recinto do experimento, o pesquisador trajado adequadamente de cientista, com jaleco branco e a indefectível gravata, recebia os dois voluntários; um dos voluntários era um ator, circunstância desconhecida do voluntário real. Em seguida, apresentava ao real voluntário dois papéis dobrados que seriam a forma de sorteio dos papéis. Ambos os papéis continham o nome educador. Sempre o voluntário real seria o educador, portanto.

O experimento consistia no seguinte: educador e aluno ficariam em salas diferentes, sem se verem. O educador leria para o aluno uma série de substantivos relacionados a adjetivos. Vinte pares associados, como, por exemplo, céu azul, vento fresco, maçã vermelha, carne apetitosa, etc. O aluno deveria prestar atenção à leitura inicial e pausada dos pares de substantivos e adjetivos relacionados.

Depois, o educador diria ao aluno, por um sistema de comunicações entre as salas diferentes, substantivos da lista, a que o aluno deveria responder o adjetivo correlato, conforme ao que tinha ouvido na leitura da lista toda, anteriormente. A cada erro do aluno, o educador deveria aplicar-lhe um choque elétrico que era incremental de 15 em 15 volts, a cada resposta errada, até ao máximo de 450 volts, choque potencialmente mortal. O educador, isto é essencial, não sabia que o aluno era um ator e que os choques na verdade não ocorriam.

Muitas vezes, antes do início do experimento, era dito ao educador que o aluno sofria de alguma cardiopatia. Os equipamentos dispunham de um sistema que a cada choque, conforme a intensidade, reproduzia gritos previamente gravados. O pesquisador, com ar fleumático e importante, ficava ao lado do educador que perguntava e aplicava choques punitivos no aluno.

Contrariamente ao que esperavam cientistas previamente ouvidos por Milgram, na primeira rodada de experiências, 65% dos voluntários no papel de educador foram capazes de chegar ao choque máximo de 450 volts…

A enorme maioria chegava ao ponto extremo com sinais imensos de estresse e desconforto psíquico. Hesitavam, ficavam aturdidos com os horríveis gritos dos alunos que supostamente levavam os choques, mas iam adiante. O pesquisador ao lado do voluntário educador, a sinais de hesitação e conflito interno, mantinha postura compenetrada e instava o educador a continuar, com frases padrões como: por favor, continue; a experiência necessita que você continue; é totalmente essencial que você continue; você não tem alternativas, deve continuar.

Essa experiência foi replicada em outros locais com resultados muito pouco divergentes. Os voluntários eram capazes de punir e infligir sofrimentos imensos a terceiro sem qualquer outra razão além da obediência à autoridade, representada pela presença do cientista. Há uma variação significativa na ida aos máximos em função da proximidade física do cientista e do educador; isto é relevante.

Observou-se uma redução da disposição a punir severamente quando o cientista estava mais distante fisicamente do educador ou quando o instava menos a prosseguir. A obediência é uma relação dinâmica, percebe-se. Com o cientista fleumático, de poucas e objetivas palavras, perto e pronto a instar o educador a seguir adiante, este continuava a fazer sofrer o aluno, mais e mais, mesmo em tensão psíquica.

O senso-comum rápido propôs a conclusão meio simplista: a obediência à autoridade suplanta os valores morais. Mesmo não apreciando nada que se sirva do termo moral, tenho de dizer que esta conclusão tem sua verdade. Mas, há mais que isso. Inicialmente, há para além disso: o conflito, em muitos casos, cessa. Um dos pólos da comparação extingue-se e há apenas obediência.

Em certo momento e em alguns casos, não se vai adiante a despeito do conflito entre obedecer à autoridade e valores morais, prossegue-se porque o conflito foi superado. Não há mais isto ou aquilo. Acaba-se a relação, na medida em que um dos pólos de comparação já foi excluído. Esta exclusão é basicamente decorrente da cessação do pensar autônomo. Deixar de comparar é deixar de pensar.

Na esteira da experiência e das hipóteses e mesmo conclusões avançadas pelo próprio Milgram e outros que se aventuraram a teorizar sobre a experiência, surgiu, claro, outro simplismo enviesado. Numa correlação ideologicamente óbvia demais, a autoridade foi imediatamente associada ao Estado.

Ocorre que o Estado não é, hoje, nem de longe, a maior autoridade a incidir nas vidas das pessoas, para desespero de quem ler Orwell como se tivesse sido escrito hoje ou há poucos trinta anos. Orwell é genial, mas 1984 é uma teoria em que no lugar do Estado pode-se por outra coisa, conforme mais adequada segundo o tempo. A teoria é boa, mas as personagens não são estáticas.

Muito mais que o Estado, a ciência, a imprensa e o tribunal são autoridades aptas a conduzirem à obediência cega. São mais legitimadas, para se usar linguagem jurídico-social da moda. Essa legitimação da autoridade advém da maior de todas as mentiras: a imparcialidade.

Certas instituições conseguiram criar e estabelecer o mito das suas imparcialidades, quase sempre a partir do discurso de verniz científico. Aqui, cabe menção a Foucault, que viu bem a narrativa e o discurso científico como indutores de legitimação para exercício de poder, do poder indiscutível e impassível de objeção dialética, exceto se se tratar de uma falsa dialética exercida dentro do círculo.

A imprensa e o tribunal tiveram de tornar-se científicos; perceberam-no logo. E foi fácil, porque alguém disse as palavras mágicas: método e sistema. Especializaram-se e se apropriaram da autoridade da ciência, esta, na origem, não destinada a basear narrativas para obtenção de poder.

Era bastante óbvio que instituições quisessem para compor sua narrativa algo como tudo que se soltar cai. Elas precisavam de suas leis da gravidade e as criaram a partir do uso da linguagem própria para enunciar leis físicas. Perderam o talvez e assumiram o axioma, com a chatice das mil e uma falsas dúvidas e da insistência em afirmar metodologias.

Hoje, especificamente no Brasil, imprensa e tribunal se retroalimentam  no jogo da afirmação que é legítima porque é e pronto. E, claro, isto tem propósitos políticos; isto visa ao comando do Estado sem a necessidade de jogar o jogo político, que foi tornado coisa feia, não científica, não imparcial. A autoridade da imprensa e do tribunal atua sobre os alunos como no experimento do doutor Milgram: eles a seguem, não a despeito de conflitos, mas sem conflitos.

 O problema disto – e aqui falo da situação do Brasil atual – é o mesmo da reação em cadeia dos núcleos de urânio que se desintegram: há um ponto em que não há barras de grafite que cessem o processo. Neste ponto, o conjunto dos cidadãos parece ter seus corpos calosos secionados e agir apenas pelo hemisfério direito do cérebro – aqui não há trocadilho, devo dizer.

A travagem deste tipo de processo tem a mesma chave de sua abertura: a autoridade. Ela cria-se; ela pode ser desfeita também, por outro discurso a ela contrário. As objeções dentro do modelo não resultam senão em morte lenta, retórica de nada e frustração.

A autoridade que alimenta os comportamentos irracionais e selvagens da pequena-burguesia brasileira deve ser contraditada. Ela não tem – porque não existe isso – as bases que afirma ter: imparcialidade e ciência. A imprensa e o tribunal não são veículos da verdade, não são instituições desinteressadas; são partes num processo. Isso deve ser dito.

A pequena burguesia, a hipocrisia e o direito a ganhar na loteria só porque jogou.

Deve haver por aí neste vasto mundo algo mais deformado que a classe média alta brasileira; eu, contudo, não sei onde isto se encontra. Duas marcas são-lhe inerentes e indeléveis: a hipocrisia e a percepção monstruosa do que seja risco.

Esta gente, que brada furiosa contra corruções que vê por todas as partes, sem saber bem de quê se trata ou como ocorra, é ávida pela exceção, pela relativização da regra, pela vantagem de algibeira, pelo argumento impertinente. Enaltece o estrangeiro precisamente pelo que ele tem de diferente deles e pelo que são incapazes de cumprir.

Tenho o infeliz encargo de administrar o prédio onde moro, porque exige muita paciência e dar explicações a gente que não admite ser contrariada. Prédio pequeno e antigo, com bons apartamentos à moda meio antiga; bom tamanho e bom acabamento, coisas de muito antes do fetiche do piso em porcelanato e de depois do bom gosto do piso em mármore.

No prédio, há um salão de festas na cobertura, onde também está uma pequena piscina. De regra, o salão está à disposição dos moradores, desde que o solicitem previamente e se comprometam a deixá-lo, depois, nas condições de limpeza em que o encontraram. Ou seja, o salão mantém-se fechado e a piscina é área sempre aberta.

Esta sala é nada mais que um espaço retangular de aproximadamente 250 metros quadrados, com mesas e cadeiras, dois banheiros e um pequeno balcão em granito e uma pia. É agradável; claro e bem ventilado. Não é adequado para banquetes ou grandes festas, evidentemente.

Eis que uma família moradora pede o salão para uso no domingo, das dez da manhã às dez da noite. Pede na quarta-feira, ou seja, com grande antecedência, e eu firmo a autorização e a ponho no elevador, no quadrinho de avisos, como de regra se faz para que os demais fiquem avisados.

Na sexta-feira, o porteiro procura-me com a cara meio contrariada e diz: a senhora fulana, do apartamento tal, quer falar com o senhor. Era a senhora da festa do domingo e perguntei se ele sabia o que ela queria. Disse-me que queria a chave do quartinho que fica lá na cobertura, acessível por uma porta ao lado da entrada do salão de festas.

Estranhei. Esse quartinho nada mais é que a casa de máquinas do elevador e espaço que tem uma escada de ferro que dá acesso à caixa d´água e, portanto, ao topo do edifício, onde não há muretas de segurança. Era óbvio que não poderia ser atendido o pedido da senhora fulana, tanto por não ter sentido algum, quanto por razões de segurança. Disse logo ao porteiro que não desse a chave.

Como infelizmente havia de ser, a senhora veio procurar-me…, hoje. Seguiu-se mais ou menos um diálogo assim, que que ela é fulana e eu sicrano:

– Bom dia.

– Bom dia senhora fulana.

– O senhor sabe, vou fazer uma festa de aniversário do meu filho, no domingo.

– Sei, sim. O porteiro me disse que queria conversar e me adiantou o que era. Acho que ele lhe disse que não pode usar o quartinho?

– Ele me disse e por isso venho explicar.

– Senhora fulana, permita-me interrompê-la. É uma questão de segurança, basicamente. Sei que a senhora compreende.

– Mas senhor sicrano, é o seguinte: contratamos um bufête. Vêm uma senhora e dois garçons. Eles precisam de um lugar para esquentar as comidas e preparar os pratos. Não dá pra fazer isso no salão! Fica feio!

– Eu compreendo senhora fulana, mas a casa de máquinas do elevador não é lugar pra fazer isso. Pode acontecer um acidente e será uma festa com crianças. Aquilo não é área de circulação. Se acontece um acidente, o condomínio fica exposto a ter de pagar uma indenização de quebrar as finanças.

– Mas senhor sicrano, é tudo gente responsável e não será área de circulação.

– Minha senhora, acidente é aquilo que conceitualmente acontece a despeito de serem todas as pessoas cuidadosas. Não estou dizendo que seus garçons, seus convidados e as crianças sejam irresponsáveis. Podem ser todos responsáveis e dar-se um acidente.

– Mas senhor sicrano, se não for assim perco a minha festa, o bufête!

– A senhora devia ter pensado nisso antes. Ao invés de achar que a sala de máquinas do elevador seria usada como cozinha.

– O senhor vai estragar minha festa!

– Não sei. Sei que não se pode usar uma área que não é do salão de festas para dar apoio a festa.

– O salão de festas não tem cozinha!

– Sim, não tem. A senhora sabia disso.

– A taxa de condomínio daqui é cara!

– É. São doze apartamentos só. A senhora sabia disso também antes de alugar o apartamento.

– Não tem jeito então?

– Não, não tem jeito. Espero que compreenda. Seria leviano e irresponsável se consentisse nisso.

– Mas meu filho onde o pessoal do bufête vai preparar as comidas? No meio do salão? Isso tá errado!

– Minha senhora, antes de contratar um bufête ou qualquer outra coisa, a senhora devia ter feito pensando no espaço disponível. Não devia contar com a sala de máquinas do elevador para isso. Isso é questão de segurança! E a sala de máquinas não é parte do salão de festas.

– Vai ficar mais caro pro condomínio, senhor sicrano! Vão ter que fazer na cozinha do meu apartamento e usar o elevador pra levar e trazer do salão de festas.

– Tudo bem. Pagaremos todos os custos adicionais da sua festa…

– Não tem jeito, então?

– Não. Não tem jeito. E não é um capricho. É que a sala de máquinas não é parte do salão de festas. Não sou irresponsável e isso pode dar problemas, acidentes. Espero que compreenda.

– Tchau.

– Até logo, dona fulana…

Este diálogo aconteceu. O que tem de formal e aparentemente falso deve-se a ter sido assim mesmo. Fui formal e preciso; não me alongo nestas ocasiões e uso de linguagem que beira o artificial. De certa forma obriguei minha interlocutora a também ser meio formal. Não no foi todo o tempo. Houve falas que extravasaram a raiva dela e a vontade da exceção.

Isso é um nada. Vários nadas desses são um retrato do caráter dessa gente. A gente que grita, que agride, que se indigna com corruções e outras coisas de moral de pequenos burgueses. Os indignados que pedem para instalar uma cozinha ao lado das máquinas do elevador…

O tolo prolixo.

Esse tipo social é interessantíssimo se o pudermos observar um pouco à distância. Interessante ainda que maçante e perigoso. Ele, geralmente, afeta mansidão, mas manso e pacífico não pode ser, tanto pelas idéias professadas, quanto pela forma de pensar não pensando. Sua aparente mansidão é efeito de preguiça, ou de covardia, ou de complexo de inferioridade – sua face mais sincera e portanto escondida.

É profundamente violento, pois são violentos os que mesmo prolixos não aceitam qualquer dialética e, ademais, operam a partir de um acervo prévio e limitado de idéias. Não gostam de ver correr sangue, mas pouco se lhes dá se este sangue correr fora do seu alcance visual. A hipocrisia evidentemente não poderia ser ingrediente alheio ao tipo.

O tipo não se pretende intelectual, o que, à partida, pode levar a crer não ser pretensioso; mas é profundamente pretensioso, contudo. Está certo de ser um ser atualizado – esta é sua marca e aspiração – e portador de informações gerais a comporem o acervo da conversação em sociedade.

Pretensioso também por julgar-se merecedor de feed back para todas as reproduções que faz do que recebeu da TV e de revistas supostamente informativas. Ora, não lhe passa pela cabeça que essas coisas não foram feitas para serem objetadas ou contrariadas, tamanha sua vacuidade. Não é capaz de um grama de originalidade – de nada que saia de sua própria cabeça – nem de reproduzir algo de nível.

Mas o tolo prolixo quer entreter uma conversação e aparenta querer ouvir opiniões contrárias ou diferentes. Quer opiniões até quando se trata de fatos ou absolutas desimportâncias que não dão ensejo a opiniões. Na verdade, o que quer é a discussão do detalhe sobre alguma idéia, do que absolutamente não infirma a tolice que reproduziu, de algum aspecto lateral. Assim, segue a conversa sem qualquer dialeticidade, mas repleta de lateralidades inócuas. E mantém-se o monólito da tolice inicialmente colocada para discussão.

O mais terrível, contudo, é não aceitar o silêncio, esta grande homenagem que se faz a si mesmo e ao tolo prolixo…

O espelho de Narciso e o suicídio involuntário.

A pequena-burguesia brasileira foi levada a crer que é importante, ou seja, que é o centro das atenções, o ponto em torno a que tudo gira, que suas opiniões são importantes e principalmente que ela tem algo relevante a dizer sobre tudo, como sói acontecer com Caetano Veloso. Essa obra de ilusionismo deve-se à imprensa mainstream, naturalmente.

Esse tipo de fantasia ajuda bastante a imprensa, na sua cruzada incessante contra qualquer governo que desconcentre, ainda que pouco, a apropriação de riquezas no Brasil. Além de imbecilizar as classes sociais suas clientes, a imprensa consegue aumentar a já enorme auto-referência. O narcisismo exacerbado, por seu turno, retroalimente a imbecilização.

As classes médias altas acham que ganham pouco dinheiro e querem que o dispêndio com programas sociais para os mais pobres seja-lhe dirigido. Por isso, com raivinha da atual presidenta da República, marcham em ordem unida com as outras duas candidaturas viáveis: a de Marina Silva, financiada pelo banco Itaú, e a de Aécio Neves, da direita de longa data e não aventureira.

Acontece que nenhum dos dois, nem a do Itaú, nem o queridinho da imprensa, suprimirá, caso eleito, dinheiro de programas sociais para entregá-lo às classes médias altas. Esse dinheiro, a parte do que for suprimido, será destinado ao grande capital, nomeadamente por meio do pagamento de juros remuneratórios de títulos públicos.

 Mas isso, que não é tão difícil de perceber para quem pensa sem se colocar como centro do mundo e sem recorrer a veículos de imprensa, não ocorre à maioria da pequena-burguesia e principalmente àqueles que são funcionários públicos. Mais extraordinária é a ausência de memória desta gente, que apagou os registros de como foi tratada no exemplo anterior mais próximo à candidata do Itaú e no exemplo eloquente que foi o governo do patrono do queridinho da imprensa.

Nada obstante, o ódio a que foi conduzida larga parcela da pequena-burguesia pela imprensa brasileira cegou-lhe totalmente a vista e obstou-lhe qualquer rasgo de sensatez, ainda que eventual e rápido. Se é verdade que o exemplo ensina, também é que se lhe esquece rapidamente…

Assim, pensando com o fígado e alguns poucos neurônios, muitos votarão contra si mesmos e contra o maior número, porque acham-se injustiçados por não receberem o que se acham merecedores, como centro do mundo que são.

Embrutecidos e atemporais.

Faz imensa falta ao Brasil uma direita bem alfabetizada, detentora de alguma cultura formal, liberal, capaz de juízos estéticos, capaz de ser delicada. Isso, ou o pouco disso que havia, extingue-se a pouco e pouco. A delicadeza, esta entrou no rol das coisas fora de moda, anacrônicas, aptas a causarem vergonha, associada à tibieza de caráter e à incapacidade de ação.

O espaço que poderia ser ocupado por tal direita bem alfabetizada não ficou vazio, evidentemente, que a sociedade não tende ao vácuo. Foi ocupado por uma gente embrutecida e que parece viver o presente constante, ou seja, são profundamente anti-históricos. Incultos, indelicados, incapazes de passar por um simples cotejo de contradições, essa gente ocupou todo o espectro ideologicamente direitista.

Em grande maioria vivem na dependência do Estado, seja direta ou indiretamente, mas não sentem vergonha de reproduzir um discurso anti estatista raso, que lhes é ofertado por uma imprensa tão ou mais envilecida que seu público. Chegou-se a tal nível de impermeabilidade intelectual que nada adiante expor este pequeno-burguês embrutecido às suas contradições gritantes: ou ele não compreende, muito simplesmente, ou torna-se irracionalmente reativo, dando mais uma volta ao parafuso da incoerência.

Mas, o inconveniente desta malta não se resume às opiniões políticas rasas e filonazis. Seu embrutecimento significa a perda de qualquer sensibilidade estética, a par com a idéia de que ele é o tipo único e invariável. Assim pensando, o embrutecido age como se o mundo todo fosse igual a ele.

Tenho a infelicidade de conviver obrigatoriamente com um número de pequenos-burgueses brasileiros, cotidianamente. O silêncio pauta minha conduta, por medida de segurança e higiene mental. Abro-me para coisas de pouco risco, tais como futebol, carros, piadas de salão, pois falar a sério é a antesala da guerra.

Acontece que certos espécimes são proativos e vivem a tolice afirmativa. Nem percebem o silêncio, nem o apreciam, nem apreciam algo falado a sério se não for a confirmação linha por linha das vulgaridades que apreende nas revistas e TVs. Esse tipo é cansativo e perigoso e mais frequente que seria de imaginar.

Outro dia desses, o pequeno-burguês proativo e incontido típico quis mostrar-me umas fotografias no telefone. Tão logo fez menção de passar-me seu telefone, para que eu recebesse o presente das imagens, compreendi o que viria: cenas de algum acidente, corpos mutilados, rios de sangue, carnes cortadas, ossos partidos. Não poderia ser diferente e não era.

Caso é que há poucos dias ocorrera uma tragédia. Um rapaz com problemas mentais matara as duas irmãs degolando-as e, depois, matara-se. Os pais perderam três filhos na mesma ocasião e desta forma realmente trágica. Não é algo agradável nem de supor, quanto mais de revirar-se no assunto, como se se pudesse descobrir novas nuances.

Pois as tais fotos eram precisamente da cena das três mortes… Afastei o telefone com a mão, não me contive. Afastei-o e afastei-me, não consegui disfarçar a repugnância. Sai sem falar nada, simplesmente sai de perto.

Não aprecio essas imagens, não tenho inclinações mórbidas, mesmo não vendo nada demais em quem as tem. O caso é que esse tipo de imagens não me desperta um juízo estético, nem me ensina coisa alguma. Ou seja, não me diverte, nem me educa. Nem é exemplo de coisa alguma, como os moralistas gostam de dizer para disfarçar suas inclinações mórbidas.

Neste nível de embrutecimento encontra-se grande parte da gente e acham que este é o estado normal das coisas, não cogitam de algum gosto diverso, não cogitam que são bárbaros, superficiais, tendentes ao julgamento sumário, à abominação da arte, ao retrocesso civilizacional.

Nova política é direitismo messiânico.

Tudo que recorre aos adjetivos novo e moderno, como qualificação positiva, leva-me à desconfiança. Identificar o novo ao melhor é uma maneira de raciocinar na fraude, porque não há relação de necessidade entre o novo e o melhor. Isto é somente a indução discursiva para massas.

O novo é algo constante, porque o presente inexiste, na medida que é sempre superado. A novidade pode ser o mesmo, pode ser diferente, pode ser melhor ou pior, a depender de para quem se o considere. Ou seja, dizer novo como sinônimo de melhor é apenas desonestidade intelectual de propaganda, com base na sinonímia fraudulenta.

Hoje, no Brasil, uma postulação à Presidência da República ampara-se neste discurso: a de Marina Silva. Houve dois casos relativamente semelhantes, coisa que muitos estão apontando com propriedade: os de Jânio Quadros e Fernando Collor. Ambos tinham o discurso centrado na novidade de cunho moralizante e na proposta de supressão das mediações institucionais.

O caso atual, assim como os dois paradigmáticos antecedentes, filia-se à ideologia direitista, ou seja, creem na igualdade natural como igualdade social e de oportunidades, no mérito e na naturalidade das desigualdades e professam um aberto entreguismo. Propõem um modelo que aprofundará as desigualdades sabe-se lá até onde, porque não há limites para isso.

Interessante no direitismo messiânico é que ele leva ao paroxismo a incoerência ou, melhor dizendo, ele serve-se dum discurso que disfarça muito bem as intenções. Ele propõe a supressão dos canais de intermediação institucional, notadamente as que se fazem pelas corporações estatais. Propõe a ligação direta, como se se buscasse a chefia do Estado e do Governo para purgar a sociedade destas instâncias públicas.

Daí que é permeado de ligações com as famosas organizações não-governamentais – repletas de boas intenções – e impregnado de convites à sustentabilidade e ao socialmente responsável, embora estas coisas sejam impossíveis de se definirem.

A velha direita não pode propor ao sujeito comum sua desgraça, claramente. Estar impedida de fazer esta proposta impede-a de leva-la a cabo integralmente, também. Há um comprometimento vasto com os canais institucionais, não se oferece a supressão dos intermediários, nem a demonização irrestrita do Estado e de seus funcionários. Na verdade, a proposta da velha direita fala diretamente às porções altas da classe média, porque lhes oferece boas oportunidades de ampliação da predação direta do Estado, na forma de cargos, basicamente.

A nova direita messiânica tem um desenho quase anarquista. Uma figura ungida será posta no comando e todo o resto será desmantelado, esta é a idéia por trás de tudo. É interessantíssimo que este despudor seduza o pessoal habituado à velha apropriação do Estado ao nível de empregos, ou seja, é notável que a classe média deixe-se seduzir pela idéia messiânica de Marina Silva.

 

A ocultação da ideologia por meio da objetividade fraudulenta. Narrativa da direita.

Os números, todos sabem, dizem o que quisermos que eles digam. A direita, por outro lado, sente enorme dificuldade de abrir-se na sua coloração ideológica própria, numa espécie de vergonha mal-disfarçada. Precisa então construir uma narrativa que pareça ideologicamente neutral, ou seja, que remeta apenas a aspectos gerenciais, supostamente objetivos, de uma realidade que é naturalmente imutável.

Precisa, mais que tudo, ocultar e negar a existência de classes com interesses diversos e conflitantes, tanto relativamente à divisão e apropriação das riquezas, quanto culturalmente. Precisa, vistas as coisas por outro lado, construir e servir-se de um discurso de naturalizada objetividade e negar as experiências bem sucedidas de alteração das desigualdades.

Resulta que a pequena burguesia urbana, profundamente descontente com a melhora dos que estão abaixo de si e alimentada pela imprensa mainstream, reproduz um discurso de objetividade fraudulenta, que parece tratar de um mundo onde inexistem opções guiadas por ideologias.

Quem escuta essa narrativa fria e aparentemente sem juízos valorativos percebe que ela foi purgada de qualquer elemento de escolha, como se opções não houvesse e tudo se limitasse a aspectos gerenciais. Eis o grande fetiche da narrativa direitista: tudo é questão de gestão.

De carta forma, a base deste discurso é já meio antiga, pois cuida-se do triunfalismo que emergiu no final da década de 1980, quando alguns aspirantes a profetas anunciaram o fim da história. O fim da história seria o resultado de um consenso nunca havido, em que o liberalismo absoluto ter-se-ia afirmado como verdade revelada.

A desonestidade dessa gente saltava aos olhos já naquela época, porque nem mesmo o tal liberalismo tem a realidade que nos papéis é fácil aparentar. Realmente, os profetas liberais nunca abdicaram de apropriar-se do Estado para que seu liberalismo funcionasse na medida correta de apropriação, o que significa dizer sempre em maior medida.

Discutem-se números, indicadores, resultados de balanços de empresas estatais, variações da bolsa de valores, estatísticas, tudo quanto possa parecer sintoma de uma coisa natural a funcionar melhor ou pior conforme a administração que tenha. Isso, todavia, além de mesquinho é fraudulento.

Mesquinho porque é micro demais e nega o planejamento e possibilidade de alterar-se a realidade social. Fraudulento porque os números, a depender do ângulo porque se os vejam, dizem qualquer coisa. No fundo, trata-se de investir contra os movimentos de desconcentração de rendas com um discurso que não pareça ideológico.

Tudo que for aparentemente sem valor ideológico, que for terceira via, que for apolítico, que for gerencial é discurso de direita. Isso fica evidente porque o núcleo do discurso direitista é a instalação de um modelo que só resulta em aprofundamento das desigualdades e não sou eu que o digo de forma inovadora, é a história que o prova fartamente.

É compreensível a dificuldade que se põe para um discurso sinceramente direitista, porque a enorme maioria das pessoas não se sentirá atraída por uma proposta de empobrecimento, nem mesmo se ela vier cuidadosamente embalada em palavras complicadas. Daí a necessidade de se recorrer à objetividade fraudulenta e acusar os promotores da redistribuição de gestores ruins.

Interessante é perceber como a pequena burguesia que repete o recebido da imprensa sem pensar incorre em contradições a cada dois ou três meses. Fosse eu da imprensa e fosse mais refinadamente pérfido, teria muito prazer em divertir-me assim com as classes médias, levando-as a dizerem as maiores asneiras e a desdizer-se mês depois com outra asneira ainda maior.

Se se anuncia uma redução de um preço administrado, de um serviço prestado por alguma empresa concessionária de serviço público, correm todos a dizerem que isso é ruim porque a empresa perderá dinheiro e prejudicará seus acionistas! O sujeito vai pagar menos, mas reclamará disso porque foi ensinado que isso é ruim, embora seja… bom.

Pois bem, se este mesmo preço sofre uma elevação alguns meses depois, isso é ruim, o que é mesmo óbvio. Mas, isso é ruim como uma enviesada confirmação da profecia anterior de que baixar o preço também era ruim. A imprensa joga o jogo do ganha-ganha e leva seus alunos a repetirem felizes e lépidos as contradições mais atrozes.

Essa crítica mediática que sempre desagua no ruim, mesmo que duas coisas estejam nos extremos de uma escala – e pensemos no preço da gasolina, por exemplo – revela que se trata puramente de ideologia. Não há objetividade em ser contra a redução do preço da gasolina e contra o posterior aumento pelas mesmas razões. É ilógico para qualquer pessoa que pense com sua própria cabeça.

Detenho-me neste particular dos preços administrados e concernentes a empresas públicas porque o principal objetivo da direita brasileira é vender duas jóias cujo capital ainda é maioritariamente público: a Petrobrás e o Banco do Brasil.

Para vendê-los, caso a direita tenha êxito nas presidenciais de outubro, será  necessário algum discurso, porque não haverá condições, nem coragem de simplesmente vender porque é melhor entrega-las que receber os dividendos que repassam ao Estado como detentor da maior parte do capital social. É preciso dizer que estas empresas são um mau negócio para o Estado, mesmo que isso não faça qualquer sentido, principalmente quando se pensa na Petrobrás.

 Semelhante acontece com programas e órgãos voltados à segurança social e a ações redistributivas. É moda falar das contas da seguridade social como se se tratasse de uma sociedade anônima exploradora de atividade econômica, ou seja, como algo que persegue lucro. Aqui a fraude é enorme, porque os objetivos e a natureza dos órgãos e programas são totalmente esquecidos na construção da narrativa.

Esta narrativa aquela velha estória do Estado mínimo, que é recontada com tênues variações em todas as latitudes e em todos os tempos. Esse Estado só deve ser mínimo para as maiorias, porque ninguém da classe média para cima sobreviveria nos mesmos padrões sem parasitar o Estado de alguma maneira, seja por isenções fiscais, seja por salários, seja por empréstimos a juros baixos e mil outras formas criativas.

Um forasteiro, um domingo qualquer e a redenção de pecados.

Um texto de Ubiratan Câmara.

POA

Amanheceu o domingo, mas não parecia, estava cinza, frio e chuvoso lá fora.
Quando esperanças não mais havia, os céus se abriram e um novo dia parecia acontecer.

Romper a inercia da comodidade era preciso, e na mesma medida se tornou imperativo aproveitar o dia, pois as dádivas do tempo e da disposição física não merecem ser despendidas sob amarras de lençóis solitários ou tolices virtuais… Era hora, portanto, de andar pela cidade.

Porto Alegre, cidade dos outros, que apática e caótica me recebeu, se tornou minha, ensolarada e prazerosa acolhida.

Destino não poderia ser outro senão um espaço público, onde meus descuidados passos fossem indiferentes e a fotográfica permanecesse alheia à cobiça de terceiros. O Parque Farroupilha, mais conhecido como Redenção, se apresentou como uma opção, enfim.

No Parque, nos dias de domingo em que o bom tempo permite, estranhos se reúnem para negociação dos mais variados artefatos. São antiguidades, artesanato, obras de arte, porcelanas, livros, vinis, quadros, mosaicos, cacarecos de pouca ou nenhuma utilidade também repletam as calçadas. Ao escambo dominical deram o nome de brique da Redenção.

Andar calma e despretensiosamente, sem receios de qualquer natureza, é algo que me apetece em desmedida e que sinto falta no calor excessivo do nordeste, onde sou refém de um automóvel, na imensa parte do tempo.

Além das sutilezas que são comercializadas, não passam desapercebidas as pessoas que dominam algum tipo de habilidade e, com isso,  deixam um chapéu emborcado para receber contribuições dos mais surpreendidos.

O primeiro a se apresentar foi um argentino, que me lembrou Segovia, ao dedilhar com destreza, em seu violão cansado, Asturias. Ofereceu, em seguida, Piazzola, Gardel, Paco de Lucia e, até mesmo, para o deslumbre das maduras mulheres que ali passavam,  Roberto Carlos.

Nao ficou por aí. Eis que solta o violonista de rua, desta vez para delírio meu, o tema de Zorba. O meu tímido e improvável ímpeto de sozinho começar a dançar hedonisticamente como o Grego, foi levado a cabo por alguns germânicos que descansavam abaixo do Monumento ao Expedicionário.

Talvez estivessem eles despreocupados com o jogo da Alemanha, que aconteceria com a Argélia no Beira Rio. Ou, quem sabe, já estivessem comemorando a profecia da conquista do mundial.

Ciclistas, cadeirantes,  bebês e muitos cachorros testemunharam a dança. As testas franzidas e os sorrisos incontidos, como os meus, distinguiam aqueles que não tinham a menor noção de que se celebrava, daqueles que sabiam, respectivamente.

O argentino precisou descansar.

Próximo dali, se ouvia ainda uma uruguaia cantando o hino francês, acompanhada com um tambor. Em seguida, ofertou gracias a la vida. Piaff e Mercedes foram lembradas, como diferente não poderia ser.

Alguns passos adiante, compatriotas tocavam, cantavam e dançavam alegremente O Barquinho. Cantaram ainda mais bossa, em harmonia, com um tom de samba. Imagino que Vinicius sorriu e dançou junto, esteja onde estiver.

Se não bastasse, pequenos peruanos, sob os olhos cuidadosos de uma mãe, tocavam el condor passa e outros tons andinos; confrontando com a gaita e o violão elétrico de um rapaz que tocavam blues, convidativo para um bourbon, se não fosse ainda manhã.

Opções de gastronomia – até mesmo tapioca, acarajé, quentão e cachorros quentes com duas, três,  quatro ou mais salsichas –  se encontravam com facilidade. Até uma boa confeitaria estava ao alcance, apesar do nome, no mínimo, curioso: Maomé Doces Bárbaros.

E assim foi passando o dia… suave e despreocupado, na Redenção.

Dele me despedi com a impressão de que minhas transgressões estavam redimidas, ou, ao menos, esquecidas em momento, tamanha a leveza do domingo…

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