Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Psicologia social de mesa de café (Page 2 of 10)

Todos contra todos.

A contradição aparente permeia os processos desenvolvidos na dinâmica do espetáculo. No seu aspecto funcional, mostra-se muito óbvia: acrescenta camadas de confusão e, principalmente, de confusão cambiante. Cumpre, pois, a importante função de impedir ou, no mínimo, dificultar a percepção clara dos acontecimentos.

Porém, essas contradições são reais também, mesmo não deixando de ser aparentes. Conforme se as observe de perspectiva dinâmica ou estática, elas mostram-se aparentes ou reais, pois têm essas duas faces. Advirto que aparente não é o contrário de real, ou seja, não estou propondo uma oposição entre existência e inexistência, até porque à inexistência nada se opõe.

No processo em que se desenvolve o golpe de Estado no Brasil, parece ter-se chegado à fase da guerra interna total, do todos contra todos. Como supõe-se que os grupos envolvidos estão unidos para a consecução do fim, surge perplexidade quando suas comunhões de interesses mostram-se relativamente frágeis.

Na verdade, há três grandes grupos, ou linhas de atuação, que agem paralelamente e ajudam-se mutuamente em várias ocasiões. Porém, embora em última análise todos sirvam a um mesmo comando central, não é verdadeiro que suas relações sejam isentas de conflitos.

A finalidade primária do golpe de Estado é entregar aos estrangeiros as reservas de petróleo brasileiras e, subsidiariamente, desmontar outras articulações da soberania nacional, como as pesquisas nucleares e o reequipamento das forças armadas. Isso, em suma, é o que importa ao comando central do golpe, que não está no Brasil.

De certa forma, é possível afirmar a preponderância, entre os grupos operadores internos, da imprensa tradicional. Ela é que desencadeia os processos de destruição seletiva de pessoas ou grupos e ela é que protege também seletivamente pessoas e grupos. Ou seja, é o grupo agente mais ativamente definidor de estratégias e, por isso mesmo, o que mantém ligações mais estreitas com o comando externo.

A imprensa tradicional articula-se muito intimamente ao setor financeiro internacionalizado, ao mesmo tempo em que suga avidamente recursos públicos para suprir suas necessidades de fluxos de caixa. Sem publicidade estatal, estariam todos os principais meios golpistas impressos ou televisivos à beira da quebra.

Os grupos judicial e político, em condições ideais, conduziriam uma operação de destruição controlada dos representantes de interesses nacionalistas. Isto, porém, não foi possível. Dois fatores subjazem a esta impossibilidade: a enorme permeabilidade dos interesses políticos e o farisaísmo profundo de muitos agentes do grupo jurídico. Estas condições complicaram o processo.

A complicação do processo golpista, que em muito transmudou-se em algo pior que os célebres processos históricos de expurgos – inquisição católica, terror diretoriano e expurgos de Estaline são exemplos recentes – apresenta um sério problema para os grupos político e judicial, que podem ser inteiramente tragados na esquizofrenia que eles mesmos geraram. Para os interesses externos, contudo, isso não representa problemas; bem ao contrário, o caos serve-lhes bem.

Os grupos que vivem da institucionalidade, seja ela legal ou em fraude à lei, dependem de um mínimo de previsibilidade, algo que foi sumariamente afastado e deu lugar à lógica da espiral persecutória, em que se vive o hoje puro, como prévia de um amanhã inconcebível e incognoscível. É, de fato, estranho e contraditório que grupos dependentes do Estado trabalhem com afinco para a destruição deste Estado.

A única forma de superação das contradições é por meio da política, que não é atividade de santos nem de bandidos.

O golpista envergonhado.

Urubu tá com raiva do boi
E eu já sei que ele tem razão
É que o urubu tá querendo comer
Mais o boi não quer morrer
Não tem alimentação

Não sei se Anauld Rodrigues e Chico Anysio, quando compuseram a letra cuja estrofe central está em epígrafe, tinham a percepção de quão genial ela é. Carregada de humor, ela aponta um aspecto central da nossa psicologia social, aquilo que mais fortemente nos caracteriza: a hipocrisia triunfalista.

A vitória sempre repetida das classes dominantes é algo de direito divino e portanto impassível de discussão. Não se admite que se aponte o golpe de mão, a ação ilegal, a chicana, o oportunismo que sempre há por trás dessas vitórias. Não basta ganhar, há de se ter o direito ao segredo da infâmia.

A deposição da Presidenta Dilma Rousseff no congresso nacional avança rapidamente e breve estará consumada. É um golpe de Estado evidente, porque não há crime de responsabilidade, algo que a lei exige para tal processo.

Os golpistas agem como se nosso governo tivesse forma parlamentar e tivéssemos o voto de desconfiança ou o recall. Agem como se a Presidenta fosse apenas chefe de governo e não chefe de Estado também. Desonestos até os píncaros, esquecem que a desconfiança no parlamentarismo derruba também o parlamento…

Mas, têm vergonha de serem chamados de golpistas! Os apoiadores do golpe nas camadas mádias e altas têm vergonha da palavra golpe. Essa gente age como se tivesse direito divino ao silêncio quanto às evidências. Pode-se engendrar um golpe de Estado, mas é proibido chamar-lhe por outro nome além daquele que escolherem os próprios golpistas.

É a reivindicação da exclusividade na construção da narrativa nacional. É um reflexo da suprema hipocrisia que nos acomete desde sempre, aquela hipocrisia em que tudo é permitido desde que não se descubra. Nossa roupa por excelência é o véu.

O triunfalismo é tão patético que mostra sua face canalha na vergonha frente ao estrangeiro. Os golpistas estão envergonhados de serem chamados pelo nome correto e sua obra pelo nome golpe de Estado por meios de imprensa de fora do Brasil. Sentem-se à vontade para externar seu desconforto com narrativas diferentes das suas próprias.

Isso não é algo novo, evidentemente. Há um paralelo interessante com os torturadores da mais recente ditadura havida no Brasil. Todos sabem quem são e o que fizeram; a coleção de atrocidades a que essa gente se entregou – por prazer, diga-se, porque era inútil estrategicamente – é conhecida; seus nomes são conhecidos.

A despeito das evidências, não aceitam serem chamados de torturadores, o que está em diametral oposição à grande valentia que ostentavam diante de vítimas fragilizadas. Nos atos de torturar, os torturadores afirmavam-se plenos, mostravam-se, falavam, riam, tudo ostensivamente. Isso é contrário à vergonha que sentem de serem chamados pelo que foram.

Outra coisa bastante sintomática é que essa gente – tanto os antigos, quanto os novos torturadores e golpistas – sente mais vergonha frente aos estrangeiros. Enquanto são chamados pelos nomes corretos no Brasil, o incômodo não é tanto e eles conseguem até lidar, porque estão certos do triunfo dos que dispõem da narrativa da imprensa mainstream.

 Mas, quando a imprensa estrangeira chama a deposição ilegal de golpe de Estado e seus executores e defensores de golpistas, o mal estar é generalizado. Beira o desespero, pela percepção imediata da impotência relativamente à construção de outras narrativas.

Essa vergonha do estrangeiro é sintomática de algumas coisas mais ou menos veladas. A primeira é o complexo de inferioridade, a face outra da covardia do valente. A desonra e a covardia são evidentes nesta vergonha do estrangeiro.

Fosse gente realmente valorosa afirmava o que faz a despeito de outras opiniões, ou apenas as desprezava. Mas os covardes não desprezam, eles reagem desesperados, perplexos e servis, a suplicarem que as narrativas os protejam, que acolham suas mentiras sobre si mesmos, pois sempre foram tão obedientes.

Eles sentem-se traídos pelos patrões a quem serviram bem e lealmente. Eis o segundo aspecto: a vergonha do estrangeiro revela quem são os patrões desta gente golpista. Funciona de baixo para cima, como a vergonha da criança diante dos pais, ou a do cão que urina no tapete da sala. A vergonha do golpistas é frente ao seu dono que não lhe deu proteção discursiva quando ele agia para seu serviço.

O proselitismo duelista.

Como herança cultural e paradigma sempre invocado, a farsa dualista platônica nos teria bastado. Mas, a ela acrescentaram-se camadas de preconceitos semíticos e rudimentos de um teísmo de lei e tribunal. É claro que essa mistura fermentou bem e deu ao mundo nossa celebrada cultura ocidental.

Tão evidente quanto o triunfo deste modelo são suas consequências na formação do homem médio. Sofistas metafísicos mal instruídos são a matéria humana mais disponível que há. Eles são disputadores a afirmarem uma crença sincera na dialética quase lógica que os guia. São sinceros, isso é bem verdade, quando estão a mentir.

Não é a incultura o que me move a escrever ou o que me causa repugnância neste tipo médio que pulula, como a infestar o mundo de um ser cujo modelo é o advogado. É sua crença no que chamam convencimento. Ao mesmo tempo em que instintivamente e inconscientemente visam a poder e a dinheiro, afirmam uma racionalidade que de tão impregnada de moralismos é mesmo racional, sob esta perspectiva.

O debate que visa ao convencimento é uma heresia, no fundo, além de prazer do vulgo. Convencer é o prazer de levar o outro a repetir o que o convencedor já está a repetir. A busca pelo mínimo divisor comum leva ao que ela se propõe: ao mínimo. Enquanto os disputadores procuram convencer-se mutuamente, esquecem de buscar perceber mais claramente quais são seus interesses e em que eles se contrapõem aos outros interesses.

O bom disputador deve, necessariamente, achar que o absurdo não existe, ou, no mínimo, achar que ele é um estado quimérico que pode ser afastado pela sofística. Acontece que a sofística não é uma técnica de remoção de brumas, mas um meio de socialização por autocelebração e crença na inexistência do conflito de interesses.

O convencimento entende-se como uma forma de sedução; uma conquista; a atração de alguém para um discurso; a obtenção da adesão a uma narrativa. Essa é uma lógica de tribunal, que emula uma lógica bem própria de solicitação ao deus que habitava a árida faixa entre o Morto Mar e o mar vivo. Estranha religiosidade que se inicia por pedir as coisas ao deus e se esforçar por o convencer de algo, sempre em detrimento de outrem.

Essa racionalidade irracional é a maior garantia da perenidade do sistema. Haverá pontos e contrapontos, mas nunca pontos fora do campo pre-estabelecido, exceto pelos fascismos enfurecidos, talvez. O sistema prevê a dualidade operante na lógica do convencimento e gera hordas de perplexos com a ineficácia fundamental daquilo em que continuarão a crer.

Esse modelo implica crer nas noções de limite e de impossibilidade, noções cujo transplante das ciências naturais para as humanas é um crime de lesa epistemologia. O humano não conhece limites, nem impossibilidades; sua única impossibilidade é a imortalidade e isto não é humano, é biológico.

O ser médio atual, cujo protótipo é o rábula destituído de conhecimentos históricos mínimos, tem vergonha em quase tudo que faz; e tem medo. Por isso surpreende-se, assusta-se, mas não deixa de ser o que é, porque não lhe foi ofertado qualquer outro modelo a seguir. Ora, a causa da surpresa, de qualquer uma, é a ignorância e isto não é dito aqui como insulto coletivo ou por anseio de escandalizar.

Surpreender-se decorre de ignorar e é muito significativo que um dos locais discursivos mais frequentes seja precisamente a surpresa. O mundo vive de surpresas, umas após outras, a se fazerem esquecer nesta sucessão vertiginosa. A surpresa suspende, conduz a um torpor da suspensão da realidade, ao torpor da aparência do tempo parado.

Essa figura do tempo parado – uma impossibilidade fundamental – é reveladora de quanto a história ausentou-se do ferramental de pensamento. A suspensão do temporal, por choques sucessivos de surpresas, acontece na cabeça do homem médio, tamanha sua aversão pela realidade, que nada mais é que história, ou seja, um processo que se autorealiza.

A surpresa que acontece no não convencimento é também uma forma infantilizada de estar na vida. É semelhante à surpresa da criança à resistência à sua pretensão de apossar-se das coisas das outras crianças. Mas o homem médio acredita-se irresistível sedutor e portador das melhores armas sofísticas, o que só pode decorrer de imensa falta de autocrítica.

As coisas mostram-se.

Venceréis, pero no convenceréis.

Em 12 de outubro de 1936 dava-se a Festa da Raça, na Universidade de Salamanca, com a presença, entre vários outros, do Reitor Miguel de Unamuno, do Bispo de Salamanca Plá y Daniel, da senhora Franco e do general Millán Astray.

Unamuno, convém aponta-lo, havia apoiado a invasão da República pelas tropas africanas do general Francisco Franco. E o novo regime nazista já se tinha consolidado por ocasião desta celebração da festa da raça na Universidade de Salamanca.

Astray ataca violentamente a Catalunha e o País Vasco nesta ocasião: “… cánceres en el cuerpo de la nación. El fascismo, que es el sanador de España, sabrá cómo exterminarlas, cortando en la carne viva, como un decidido cirujano libre de falsos sentimentalismos.” Depois do ataque racista vil, proclamou e deu vivas à morte, o que era seu característico.

Miguel de Unamuno era vasco; o Bispo Plá y Daniel era catalão. E ambos tinham sido favoráveis à derrubada da República pelas tropas nazistas de Franco, que era galego! Do ponto de vista estritamente racional, o ataque de Astray a catalães e vascos era, além de uma imensa e desnecessárias descortesia, uma estupidez.

Unamuno reagiu, mesmo a saber os riscos implicados. E reagiu tão elegantemente quanto firmemente: “Dejaré de lado la ofensa personal que supone su repentina explosión contra vascos y catalanes. Yo mismo, como sabéis, nací en Bilbao. El obispo, lo quiera o no, es catalán, nacido en Barcelona.”

Dejaré de lado la ofensa personal! É extraordinário. A seguir, disse o principal, que não ficaria calado depois de ouvir o necrófilo e insensato grito “Viva a Morte!” e disse que o general Astray era um inválido de guerra e que: “Me atormenta el pensar que el general Millán Astray pudiera dictar las normas de la psicología de la masa. Un mutilado que carezca de la grandeza espiritual de Cervantes, es de esperar que encuentre un terrible alivio viendo cómo se multiplican los mutilados a su alrededor.”

Unamuno morreu, provavelmente de desgosto, pouco após o incidente. Após sua refinada objeção a Astray, este proclamou o célebre abaixo a inteligência, viva a morte. Fez-se confusão, Unamuno ainda disse que venceriam porque tinham força bruta, mas não convencerão. Foi, ao final da cerimônia que se tinha tornado confusão, protegido pela senhora Franco, mas sofreu prisão domiciliar. O general Astray venceu, como se sabe, e venceu por décadas.

As últimas palavras de Unamuno nesta ocasião, referentes à não possuírem os nazistas razão e direito na luta – mas apenas força bruta – inserem-se na grande corrente do racionalismo de origem grega, cantado com beleza no teatro trágico. Unamuno diz a Astray o que Sófocles fez Antígona dizer ao tio dela a propósito da sepultura a ser dada a Polinices.

Este e outros episódios – os acontecidos e os ainda não consumados – provam que a razão e o direito não são condições necessárias ou mesmo eficazes para a vitória. Isto, com relação a vitórias bélicas, pode soar muito evidente; todavia, deveria passar a soar, senão evidente, bastante plausível, também para vitórias políticas.

A força bruta é mais intensa que as outras que contendem no palco político e social e ela não consiste somente na força física. A força bruta intelectual – aquela que provém das mentes mais vazias – é bastante apta a ditar as normas da psicologia das massas. Essa aptidão provém dela ser muito mais naturalizante que humanizadora, e propor coisas muito naturais: como matar, segregar, torturar…

A força bruta intelectual criou ambiente propício a um golpe de Estado no Brasil; ele está em curso. De tão urgente para os interesses saqueadores externos, abriu-se a estrebaria e soltaram-se dois cavalos a correrem paralelamente. O que chegar primeiro entrega o serviço e o único compromisso mútuo dos cavalos é não se atrapalharem um ao outro. O que for mais rápido atende aos interesses entreguistas: congresso ou judiciário.

Para obter apoio nas classes intermédias, a psicologia de massas à Millán Astray foi posta em difusão e estimulada pela imprensa. Este, a par com os destruidores efeitos econômicos e sociais do golpe, será o maior preço a ser pago depois. O fascismo histério e profundamente ignorante foi instilado nas camadas sociais que representam o terreno mais fértil para este tipo de pensamento rasteiro e conduzido de fora para dentro.

Mesmo que se impeça ou que se retome o poder político e se restabeleça o Estado de Direito após o golpe, será dificílimo desfazer os efeitos destruidores desta psicologia de massas fascista ditada pela imprensa para os estratos medianos e muito bem assimilada por eles.

O monstro corporativo e a rejeição à democracia.

Acentua-se nas camadas médias da sociedade e principalmente naqueles instalados no serviço público a rejeição à democracia, seja explícita ou disfarçadamente. No estágio atual, as rejeições explícitas são minoritárias e isoladas em grupos extremistas de pouca elaboração narrativa.

Prepondera a rejeição à democracia da maneira mais vil e desonrosa, que é mediante o disfarce e o discurso profundamente hipócrita da defesa da própria prática democrática. Essa postura é de regra para algumas corporações que se apropriam do Estado em benefício próprio. Hoje, notadamente, todos os serviços jurídicos e adjacências, serviços de contenção social – polícias – e as universidades.

 Os grupos formalmente instruídos que compõem estas corporações insertas no Estado agem contra a prática da democracia representativa, mesmo que o façam dissimuladamente. A ação centra-se na democracia interna e transplanta para o público um discurso que somente tem coerência para o privado. Quem é pago por todos de forma impositiva não pode gerir-se como se fosse pago por serviços privados, optativos, específicos.

O protótipo do modelo por todos desejado encontra-se num arcaísmo destituído de sentido, mas nunca seriamente discutido, adotado pelas universidade. Trata-se da eleição dos reitores das universidades públicas pelos votos dos docentes, discentes e funcionários, eleição que, embora não tenha formalmente caráter vinculante do executivo, tornou-se vinculativa na prática reiterada de ser aceita.

Ora, a escolha do reitor da universidade pública no âmbito restrito da universidade – que via de regra tem um imenso orçamento alimentado por dinheiro coletado junto a toda a sociedade – é algo nitidamente anti democrático, embora seja divulgada como o ápice da prática democrática. Aqui, tem-se o triunfo quase completo dos interesses corporativos, pagos com dinheiro da sociedade, em detrimento dos interesses realmente públicos.

Isso é a democracia dos sem votos; a democracia que escolhe como gastar o dinheiro de todos sem perguntar nada a estes todos. Democracia haveria se o reitor, para ficar neste exemplo, fosse escolhido em eleições gerais ou simplesmente nomeado pelo chefe do executivo, que se submeteu a eleições gerais e majoritárias e, portanto, tem mandato popular e legitimidade para a escolha.

Os poderes judiciais – o de decidir e o de acusar – já contam com uma curiosa variante da restrição democrática corporativa. Ela não se conhece em parte alguma e atende pelo nome de autonomia administrativa. A corporação judicial brasileira conseguiu transbordar uma garantia essencial que é a autonomia funcional, isto é, para decidir, para um privilégio sem sentido que é a autonomia para gastar quanto quiser, como quiser, onde quiser, sem dar contas a ninguém.

Eis que corporações adjacentes à judicial anseiam pelos mesmos privilégios e chegam às raias da absurdidade de pretenderem escolher seus chefes por eleições corporativas internas e impor ao chefe de Estado – que teve a inglória tarefa de ir buscar 50 milhões de votos populares – suas escolhas internas, que só atendem aos seus interesses. É uma investida frontal contra o modelo democrático, embalada no costumeiro besteirol jurídico-moralizante, com uso de lugares-comuns da moda, claro.

 É contrassenso absoluto pretender a autonomia de órgão do Estado relativamente ao povo em geral e aos governantes eleitos em particular. Pelo menos é contrassenso postular isso e manter-se aparentemente alinhado ao modelo da democracia representativa. Isto que se propõe e que se deseja é um modelo híbrido do Estado fascista corporativo, com um pouco mais de desconcentração interna que os modelos históricos recentes.

É ilegítimo pretender atuar à margem de qualquer controle hierárquico e gastar dinheiro público à margem de qualquer crítica social. É patifaria embalar este desejo de apropriação do Estado em causa própria com os papéis e fitas do discurso democrático.

O sequestro do ex-Presidente Lula.

O golpe judicial-mediático segue um guia muito bem definido e hoje promoveu o sequestro do ex-Presidente Lula para humilha-lo. Falou-se em condução coercitiva para prestar depoimento à polícia federal. Ocorre que o sistema jurídico desconhece condução coercitiva de quem não se recusou a ir depor.

Montou-se uma encenação digna de filme ruim de hollywood; uma verdadeira palhaçada, cara e desnecessária. O sequestro de Lula implicou a participação de duzentos policiais vestidos como soldados de elite, todos a portarem metralhadoras. Envolveu dezenas de veículos e cinco helicópteros. Como se um velho de setenta e tantos anos oferecesse algum perigo…

A encenação faz parte da narrativa. É talvez a parte mais eloquente, posto que de apelo visual de uma linguagem a que a classe média está acostumada precisamente por ser a dos filmes que ela aprecia. É a linguagem visual da violência, cujo protótipo é o militar em indumentária de combate e fortemente armado.

De pouco adiantaria o golpe final a ser dado contra Dilma e o Estado de direito no TSE com um Lula politicamente viável para as eleições presidenciais de 2018.

Em dois anos ou pouco menos que isso as atuais oposições aplicam políticas brutalmente regressivas e condenam milhões de pessoas ao reempobrecimento, que isto se encontra no seu programa. Um governo das atuais oposições terá de satisfazer o anseio das classes médias de devolução dos servos às senzalas. Terá de cortar programas de rendimentos mínimos porque é isso que espera deles pelos que os apoiam.

Todavia, pouco menos de dois anos não serão suficientes para cumprir a íntegra do programa entreguista que prometeram aos patrões reais.

Daí que um candidato de esquerda como Lula, em 2018, depois da deterioração da qualidade de vida e do poder de compra dos que ascenderam nos anos de governo dele, seria muitíssimo competitivo. Exatamente por isso, talvez mais importante que derrubar Dilma é interditar Lula.

É possível que os golpistas adiram à mais vil das estratégias que é tornar o país caótico e ingovernável até o término do mandato de Dilma, sem contudo consumar o golpe de Estado. Assim, chegaríamos a 2018 sem candidatos nacionalistas viáveis e os entreguistas teriam reais chances de ganhar nas urnas e cumprir todo o programa de empobrecimento dos que ascenderam e entrega das riquezas nacionais.

Variante da síndrome de Estocolmo.

Há um processo nítido de golpe de Estado, levado a cabo pelo conúbio entre a imprensa e o judicial. O segundo faz tudo para derrubar a Presidenta da República a partir de qualquer argumento, por mais pueril que seja, além de tentar a humilhação do ex-Presidente Lula e sua interdição política, também a partir de vários nadas reunidos. O processo é jurídico apenas na aparência, pois viola quase todas as garantias constitucionais fundamentais.

A imprensa faz o papel de instigar nas classes médias um ódio moralizante e hipócrita cego. Levou este estrato social ao grau zero do pensamento autônomo. Além disso, leva os setores normais da burocracia judicial à inação diante das aberrações perpetradas, por conta do medo do linchamento público induzido pela imprensa. A parte sensata do judicial foi paralisada pela chantagem mediática.

Além de atender aos interesses dos operadores locais das oposições ao governo, este processo atende aos interesses de desnacionalização das reservas de petróleo e da indústria pesada nacional, que se articulou muito fortemente em torno à cadeia do petróleo e viu renascer um setor voltado às altas tecnologias, notadamente no âmbito militar. O golpe serve, preponderantemente, aos interesses entreguistas.

Por meio de barbaridades travestidas de medidas judiciais enfraqueceu-se a ligação entre o governo e a grande burguesia nacional. Grandes capitães de indústria foram e são chantageados por meio de privações de liberdade ilegais, de que escapam se disserem precisamente o que o sistema golpista quer ouvir, pouco importando a veracidade do que é dito.  A bem de investigar contratos entre empresa meio pública e empresas privadas, o golpe judicial trabalha assiduamente para quebra-las ambas, de maneira a serem adquiridas pelo capital externo a preço de quase nada, ou simplesmente destruídas.

Esse processo cansa e confunde. Não que este cansaço signifique, para as classes médias enfurecidas contra roubos que não compreende absolutamente, alguma regressão no estado de ânimo pre-fascista a que foi levada. Mas, no âmbito das pessoas que conservaram alguma lucidez e pensam com o cérebro e não com fígado o processo tem cansado e confundido, realmente.

Essa espécie de reação tem padrão histórico, ou melhor se diria que este tipo de reação advinda do cansaço e da confusão implica uma postura muito estável relativamente a processos semelhantes. O que muitos dizem hoje relativamente à situação da Presidenta Dilma, já disseram sobre os casos de Getúlio Vargas e de João Goulart. Este último catalisou o tipo de análise que chamo quase síndrome de Estocolmo.

Cansados e confusos, alguns começam a crer que o processo destrutivo que sofrem alguns governantes deve-se, em muito, à inação ou incapacidade políticas deles próprios, o que não deixa de ser identificação, mesmo que parcial, com os algozes da imprensa, dos partidos e do judicial. O processo é tão brutal e absurdo que muitos são levados a crer que aquilo não poderia nascer e crescer senão com a ajuda da vítima.

É um erro de análise abissal e o caso com João Goulart é exemplar. Passados muitos anos do golpe militar que o derrubou da presidência, começou a formar-se uma narrativa da tibieza e da covardia de Goulart, o que é apenas falso. O mito é que haveria reação eficaz ao dispor do Presidente, que teria preferido a inação.

Primeiramente, convém destacar que não havia reação eficaz alguma contra os navios militares norte-americanos fundeados ao largo do Rio de Janeiro, inclusive entre eles um pequenino porta-aviões da classe Nimitz… Em segundo lugar, mais da metade das forças armadas estava a favor do golpe, uns por estupidez, outros por dinheiro mesmo. Entre os movimentos ditos de apoio ao projeto nacionalistas, muitos não passavam de infiltrados que nunca foram realmente de esquerda ou nacionalistas. A imprensa era majoritariamente favorável ao golpe.

Ai, neste passo, quem insiste na possibilidade de reação lança a carta da defesa pelo povo. Ora, o povo não tem consciência de classe hoje, imagine-se há cinquenta anos. O povo cuida do dia-a-dia, de pagar suas prestações, de comer, de procurar trabalho, de algum lazer barato. É muito ingênuo, até para acadêmicos neo-cooptados, supor possível uma reação popular organizada contra o golpe de Estado desferido em 1964.

João Goulart foi extremamente responsável e sincero quando disse que não levaria as coisas a um estado que implicaria um banho de sangue. Se insistisse nessa quimera, geraria um banho de sangue por nada, porque as chances de êxito não havia. Seria um capricho movido por vaidade. Ele foi grandioso.

Pois bem, começam a surgir análises que põem, ainda que parcialmente, na conta de Dilma o massacre mediático de que ela é alvo diariamente. Isso é tolo e vil. Não era a habilidade ou inabilidade política de Dilma que evitava as coisas chegarem ao grau de efervescência golpista atual. Era o tempo demandado para a imprensa conseguir catalisar todas as piores inclinações do médio classista fariseu prototípico. Isso leva tempo; é preciso trabalho constante. Da mesma forma, a construção do processo judicial leva tempo.

Dilma não contribuiu para que o processo golpista chegasse onde chegou, com tamanha intensidade e probabilidade de levar o país ao caos subsequente. Um pouco de pensamento autônomo, amparado nas balizas clássicas da história e da lógica formal, permite ver que nada ela poderia fazer para estancar isso. Não havia, nem há, acordo possível com as forças do golpe, exceto se se tornar também golpista e decidir entregar as riquezas nacionais aos comandos e interesses externos.

O povo está ansioso por suprir suas necessidades – reais e quiméricas – materiais: quer comprar, enfim. Não sairá às ruas para defender um projeto nacionalista em oposição a um entreguista e de submissão, simplesmente porque não concebe nada nestes termos.

Hoje, muito mais decisivo que qualquer ação da Presidenta é o desenrolar da situação geopolítica, notadamente as eleições presidenciais nos EUA, sua situação financeira, sua capacidade de promover desestabilizações por todo o mundo. Se a margem de ação dos EUA reduzir-se, tanto por esgotamento financeiro, quanto por formação de nova vontade política, podemos ter alguma paz…

 

São Jerônimo: patrono da crítica?

Um bárbaro dálmata do século IV a.C. traduziu a bíblia hebraica e os evangelhos canônicos para o latim. Fê-lo mesmo alfabetizado tardiamente em grego e em hebraico, o que é notável! A Vulgata, tradução dos textos hebraicos e dos textos gregos do Novo Testamento para o latim, deve-se a ele.

O homem fez de tudo e devia ter um senso de oportunidade muito apurado, pois foi de asceta do deserto a proto acadêmico e acompanhante e confessor de senhoras ricas piedosas. Viajou o mundo que a cristandade conhecia, ou seja, a bacia do mediterrâneo oriental, a Palestina, a Síria, a Lídia.

Pegado a livros e principalmente a livros sem autoria definida – o que não constituía qualquer problema – ele desenvolveria a técnica da crítica, que é uma forma de tradução ou, no mínimo, uma derivação desta. Estabeleceu regras para a fixação de autoria, a partir basicamente de conceitos de continência. São critérios de validade e canonicidade por autenticidade consigo mesmo.

Assim, por exemplo, se de vários livros atribuídos a um autor, um apresenta nível inferior, ele deve ser considerado fora da obra. Deve haver uma constante de nível e uma obra inferior às demais retirada do conjunto. A obra que contradiga a corrente ideológica do autor deve ser considerada não dele. Este é um critério de coerência a afastar tudo quanto inicialmente desdiga a linha maior do autor.

O estilo também deve ser homogênio e, assim, a obra que se afaste estilisticamente das restantes tampouco pode ser do mesmo autor. Por fim, lança um critério histórico – o único, talvez, a ter algum sentido – pelo que a obra que se refira a fatos e personagens posteriores ao autor não deve ser considerada dele.

Esse padrão, esses critérios, lançaram as bases da fixação de autoria e, mais que isso, de toda a crítica ocidental posterior. Para ele e na época, isso calhou muito bem, pois tratava com a formação de uma tradição que precisava autenticar-se e autorizar-se. Ele acresceu método, aquilo que autoriza mesmo que signifique nada ou quase nada, posto que sempre dogmático, como qualquer parametrização científica.

O texto sagrado pede autor certo e pede intérpretes, assim como o texto jurídico da tradição judaico-cristã. Se por um lado é aberto e pede intérpretes, por outro precisa fechar seus furos de autoria e estabelecer uma unidade que lhe confira autenticidade e historicidade, mesmo que seja para se afirmar revelado e não histórico.

A crítica gira em torno a isso desde sempre e é crítica de autor mais que de obras. Cuida da unidade da obra a partir de elementos que a própria obra fornece. Ela aponta o diferente que não deveria haver porque proveniente do mesmo autor. Ela percebe melhor da coerência que o próprio autor que tem uma obra glosada por diferente em nível, estilo ou ideologia da linha geral. A crítica é basicamente o fetiche da coerência segundo a definição externa ao autor.

O biografo de autor é uma figura de crítico que sabe escrever mais que cinco páginas e quer ser considerado também autor. Evidentemente, isso é tanto inútil, quanto presunçoso, na medida em que não for história pura e simples. A biografia de Napoleão será uma coisa, a de Stendhal outra. Qual o sentido da biografia dum autor, senão o de lhe retraduzir mais uma vez?

A obra sobre a obra e a obra sobre o autor são a obra de alguém sem obra. Ora, se autor e obra forem o mesmo, escreve-se história. Se o primeiro existe sem o segundo, escreve-se psicologia de uma pessoa que pode ter existido. Se a segunda existe sem o primeiro, escreve-se uma tradução.

Embora não seja o que me levou a escrever essas bobagens, recentemente houve algo que, agora, me vem ao pensamento. Um fulano muito importante escreveu um livro a que chamou: Fernando Pessoa – Uma quase autobiografia. É extraordinário! Conseguiu ser extraordinário mesmo num mundo com tanta gente e com tanta gente proveniente das terras narcísicas da capitania de Pernambuco.

Uma autobiografia é a história de si mesmo, escrita pelo que a viveu. Uma quase autobiografia é obra de quem é quase o autobiografado. Assim, o autor da quase autobiografia de Fernando Pessoa é quase Fernando Pessoa!

Até então, nunca tinha visto alguém dizer-se quase outra pessoa, embora já tenha escutado a afirmação da identidade total. Quase Fernando Pessoa é algo interessante, porque fica a dúvida se quase o escriturário metódico ou o autor tão aparentemente diverso em estilos de prosa e de versos.

A presunção em afirmar-se quase Fernando Pessoa não passa por ser este autor algo muito grande e inatingível por outrem; não passa por o quase ser impossível de ser quase o paradigma. Não é uma questão de valor do paradigma ou do quase. É que é difícil saber o que é outrem na integralidade, para poder saber que é quase ele.

Quase algo só se afirma por saber-se totalmente o que é o outro. Assim, sabendo-se a integralidade, pode-se saber as diferenças que fazem o quase. Mas, saber a totalidade é quase presunçoso…

Michel Temer entra no golpe.

Para os reais patrões do golpe de Estado que está em marcha no Brasil pouco importa que ascenda à presidência Pedro, Maria ou João; pouco importa que seja preto, branco, amarelo ou verde, desde que entregue o petróleo.

Porém, para os agentes internos, políticos profissionais, importa muito, sim, quem ascenderá, porque o poder, mesmo num país espoliado de sua maior riqueza, é sedutor e meio de vida desta gente. O festim no Estado ainda é muito grande mesmo sem as riquezas do pré-sal.

A facção golpista funciona como uma máfia; todos desconfiam de todos e não é senão ingenuidade ou jogo de cena usar o termo confiança. Ninguém se esforçará para dar o golpe para a ascensão dos outros. Para ser sócio minoritário, pode ser melhor deixar como está, principalmente para o PMDB, partido do vice-presidente Michel Temer.

Recentemente, Temer entrou no golpe explicitamente. À partida, foi uma bela jogada que, a par com a manobra desesperada de Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, parecia ter sido o prenúncio do xeque-mate na honrada presidenta Dilma Rousseff. Todavia, a matemática do golpe é complicada.

A adesão do vice-presidente ao golpe seria capaz de envolver na manobra uma peça fundamental: o PMDB, partido sem matizes ideológicas, extremamente capilarizado, sempre sócio de todos os governos desde a redemocratização. À exceção de um ou outro quadro com densidade ideológica e honradez, o PMDB sempre tem sido um partido de aluguel; o maior deles.

Sem o apoio deste partido e depois que Eduardo Cunha admitiu a abertura do processo de impedimento da presidenta, qualquer governo cai, no Brasil. Acontece que o falso motivo jurídico invocado para o impedimento atinge também Michel Temer.

A abertura de créditos orçamentários que dependiam ainda de ajustes na meta fiscal – uma coisa muito corriqueira e sempre feita, para que o país não pare – foi feita também por Temer, em várias ocasiões em que esteve no exercício da presidência.

Logo, a puerilidade invocada como motivo para impedir Dilma atingiria o imaculado Michel e a coisa teria enormes chances de sair do controle e serem ambos derrubados por um falso motivo. Não é muito inteligente supor que o PMDB trabalhará para derrubar o puro Michel também, depois de perder o honesto Eduardo Cunha, que, hoje, precisa ser logo expurgado, pois mais dificulta que facilita o golpe.

O Eduardo Cunha tentou chantagear o governo com a abertura do processo de impedimento. Do ponto de vista dele, não resultou bem. Ele fê-lo como estratégia pessoal de defesa no processo aberto para sua própria cassação. Hoje, desesperadamente, ele retarda os andamentos de ambos os processos. Ou seja, para os golpistas é melhor que se vá logo, mesmo que leve consigo um ou outro parlamentar que navegou nas suas caudalosas ajudas eleitorais.

O Cunha fez o que se esperava dele, mas agora precisa ir-se para destravar o processo. Acontece que ele não quer sair de onde está, até porque, como muitos sabem e dizem, não é um mau lugar e ele precisa de mandato e de não sangrar, porque se verter sangue as piranhas da inquisição o pegam.

O golpe que leve Dilma e Michel juntos não interessa ao governador Alckmin, evidentemente, porque instalaria na presidência o senador Aécio. Obviamente, não interessa tampouco ao senador Serra, que queria ser ele mesmo o homem a servir aos patrões o precioso óleo mineral. Ademais, Serra não teria quaisquer chances para 2018, tanto por ser péssimo nas urnas, quanto por ser detestado por Alckmin, que hoje manda no PSDB.

Em um partido como o PSDB, nenhum desses dois políticos paulistas proeminentes acreditaria em acordo com Aécio para que ele, uma vez instalado na presidência, não concorresse em 2018. Haveria, isso sim, a desintegração do partido, em lutas fraticidas piores que as ocorridas nas últimas presidenciais.

Por outro lado, a tentativa de focar o golpe do impedimento apenas em Dilma, quando os motivos invocados atingem tanto ela quanto Michel, seria muito arriscada. As farsas devem ter tamanhos adequados, não convindo as exagerações demasiado grotescas.

Claro que sempre há um punhado de juristas de algibeira a soldo da imprensa dispostos a sustentarem a aberração de que o processo de impedimento é puramente político. Não é. Puramente político, do ponto de vista teórico, é o processo eleitoral, principalmente tratando-se de eleição para cargos majoritários.

O povo – detentor da soberania, ao menos em tese – vota diretamente para presidente da república. Os parlamentares, mandatários e, portanto, exercentes da soberania em segundo grau, em nome do povo, não podem decidir derrubar o presidente apenas porque o querem fazer. Os parlamentares não têm mandato para violar a vontade popular expressa na eleição do presidente, sem razões jurídicas sólidas para tanto.

Assim, o impedimento sem motivos antecedentes – a prática de ilícito que implique responsabilidade do presidente – é um impedimento de fancaria, uma inconstitucionalidade clara como o céu de Brasília, uma coisa que pode destampar reações inesperadas, de tão farsesca.

O chefe de Estado eleito por maioria do povo não é apeado do cargo por capricho ou porque o parlamento acha que está sem condições de governar. Não cabe ao parlamento revogar o mandato outorgado pelo povo por qualquer outra razão exceto a pratica delituosa nítida. E, no caso de tentarem separar os casos de Dilma e Michel, terão de partir para tal aberração.

Claro que aberrações têm sido comuns no jogo político, seja ele jogado no congresso, seja nos tribunais. A destruição do Estado de Direito já vem de algum tempo e é realizada sistematicamente pelo judiciário e pela imprensa. Todavia, nos últimos processos políticos conduzidos nos tribunais fez-se hercúleo esforço para manter as aparências, para que parecesse haver forma jurídica.

No caso do impedimento não antecedido de motivos e focado apenas na presidenta, a fraude será desmedida. Até os processos políticos que contam com o acobertamento da imprensa requerem proporcionalidade. Quando um processo é visivelmente desproporcional, acontece o que se dá diante do muito feio, diante do grotesco: a incompreensão.

A narrativa é mais poderosa que a experiência e que o interesse.

É impressionante como, nos confrontos entre as palavras e a experiência direta, a palavra frequentemente sai vencedora: muitas pessoas acreditam no que lhes é dito, e não naquilo que seus próprios sentidos indicam.

As linguagens do Cérebro, Horace B. Barlow

 

Todas as classes sociais defendem seus interesses. Uma delas nunca se confunde, nem discursa a favor do próprio suicídio: a dominante. Nas outras, as posturas são cambiantes e há o flerte com a prática real do discurso contra si mesmas.

As classes baixas são variadas; a média é muito mais uniforme nas suas contradições. O poder do 01% é exercido por meio da classe média, a mais tensionada e hipócrita de todas. Assim, ela tem funções demais, porque é a corrente de transmissão do poder do 01% e precisa simultaneamente emular padrões da classe altíssima e conter as aspirações das classes baixas.

O medo e o moralismo vicejam na classe média, que é relativamente pequena no Brasil, porque ela não se define adequadamente somente pelos padrões de rendas e consumo, mas por outras variáveis também. Ela, como a dominante, define-se por herança, ainda, mais que qualquer outro fator. Herança de hábitos, de modos, de linguagem, de bens e rendimentos.

Cresceu muito a classe baixa ansiosa por consumir bens duráveis e não duráveis e isso foi bom, porque além de ser anseio legítimo de um grupo acostumado às privações, impulsionou o mercado interno. Mas não fez destas pessoas médio-classistas no sentido próprio, que é aquele a implicar uma identidade que transcende a aquisição de capacidade de pagamento.

A classe média propriamente dita elaborou uma narrativa para ser levada a esses emergentes, com basicamente duas mensagens: 1) se vocês melhoraram não foi por nada devido ao Estado, mas por vossos próprios méritos e 2) vossos méritos esgotaram-se e assim não se vai adiante. Claro que esse discurso não vai em embalagem tão crua quanto enunciado acima.

As camadas médias fornecem mão de obra técnica especializada para fazer funcionar o poder real. A burocracia estatal e os níveis médios e altos das grandes corporações são lugares cativos da classe média. Os filhos dela estudaram, comeram, foram estimulados a ler e a escrever, tiveram onde dormir, tiveram adequada prevenção de doenças. Tudo isso põe por terra o mito da meritocracia, porque evidencia a inexistência de igualdade à partida entre classes diferentes. Claro que há competição dentro da classe, mas há bastantes lugares cativos.

Dizer que o Estado é um mal é lugar-comum nos discursos elaborados pelos intelectuais, acadêmicos ou não, médio classistas, que alugam suas penas ao 01%. É algo essencialmente tolo, porque tanto os patrões do 01%, quanto a própria classe média vivem da predação do Estado, que põem a seu serviço para predar o povo.

Caso isso que chamam redução do Estado seja posto em prática, não haverá problemas para o 01%, que manterá formas mais sutis de predação. Todavia, se isso implicar redução de número de funcionários e de contratos pequenos e médios, a classe média sofrerá com isso, mesmo que tenha defendido as medidas.

O discurso, na essência, visa a dar legitimidade à redução de despesas com programas sociais, como os de renda mínima. E, contra essas despesas, as cabeças pensantes da classe média dispõem-se a elaborar discursos meio científicos, supostamente elaborados, para serem repercutidos na imprensa, basicamente. Ocorre que esse processo anti-Estado, como todos os que se baseiam em falsas premissas e histeria de cunho moral, pode sair do controle e assumir uma dinâmica mais concentradora que o inicialmente planejado.

O que se observa nestas tensões entre interesses de classes e nas narrativas que o poder utiliza para pregar medidas concentradoras é que há muita tendência ao suicídio involuntário. O sujeito apropria-se de um discurso que é essencialmente contra seus próprios interesses, sem se dar conta disso, porque foi ensinado a não pensar ou a pensar a partir de dados e conclusões pre fornecidos.

Na sofreguidão de se distanciar ou, ao menos, manter a distância pelos de baixo, a classe média trabalha para os de cima e produz e reproduz narrativas que, ao final e ao cabo, são contra ela mesma. Em determinado momento, o sujeito passa a acreditar naquilo que foi produzido por ele mesmo como um trabalho encomendado. Ele acredita na narrativa mais que na realidade sensível. A partir deste ponto, não adianta mostrar dados, números, nem lembrar que existe história…

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